X - A CRUZ: A MÃE
Dizem que quando Jesus foi
condenado à morte e entregue aos judeus para ser crucificado, elevou-se na
araçá tão formidável clamor, que a Virgem Maria, refugiada numa casa da rua
principal que seguia o fundo do vale do Tyrópeon, ao pé do Pretório, compreendeu,
àquele grito de ódio, que tudo estava terminado: ergueu-se logo e, amparada por
mãos amigas saiu à frente da porta para aguardar a passagem do lúgubre cortejo.
Este se formava a toda
pressa no interior do corpo de guarda; requeriam-se pelo menos quatro soldados para levar
os pregos, os martelos, as cordas, as escadas: um centurião romano deveria
presidir à execução; estes cinco homens estavam escalados para a emergência.
Não é fora de propósito pensar que vários outros, criados do Pretório ou soldados
romanos, tenham pedido e conseguido agregar-se ao cortejo do famoso Rei, ou que outros mesmos lhe
tenham sido acrescentados por dever oficial.
Pilatos tinha entregado
Jesus aos judeus; no sopé da escada do Pretório, aquela turba sequiosa esperava
pela Vítima: na primeira fila os sacerdotes, os escribas, os anciãos, os notáveis do Sinédrio e,
provavelmente, a sua tropa de criados e de soldados. Isto fazia uma escolta
compacta, cerrada. A cruz que de há muito haviam preparado para Barrabás é trazida: aguarda em pé,
sustentada por um homem ao pé da escadaria. Jesus aparece no topo dos vinte e
oito degraus, hoje transportados a Roma; desce devagar, regiamente, escoltado por criados e
soldados. Tem as mãos atadas.
Nunca monarca algum que
descesse para um carro de triunfo manifestou mais altivez, mais magnitude do
que deixou transparecer Jesus nessa curta descida que ia ter à cruz. Através
das vestes, sob os passos, qual púrpura real e roçagante, marcava-Lhe o Sangue as
pegadas e a passagem. Chegado em baixo, é
violentamente agarrado pelos algozes: adaptam-Lhe a cruz aos ombros; quer a
tenha carregado num só ombro, quer deitada sobre as costas, ocupadas então as
duas mãos em suster-lhe os dois braços dela, é sempre certo que o pé da cruz arrastava
em terra. A cada passo, portanto, os tropeços do caminho, as pedras, o calçamento,
as asperezas imprimiam um solavanco ao pé da cruz, e este solavanco repercutia
dolorosamente nos ombros ensangüentados do Mestre.
Aliás, é-Lhe o corpo todo
uma ferida só; os milhares de golpes da flagelação, as contusões repetidas das
bofetadas, dos socos, das pauladas, não deixaram lugar algum sem pisadura; cada
passo, cada movimento, o própria roçar das vestes são outros tantos padecimentos. Mas o sinal é dado: soam
os clarins, os clamores avultam, a onda se abala e logo, numa marcha que se
quer apressada, lá se vai o pobre Jesus, cedendo ao peso, curvado, dobrado
quase, com a cruz a dançar-lhe nas costas a cada passo; o suor, o Sangue, um palor
lívido o rosto. A cabeça está por força abaixada, os cabelos caem-Lhe ante a
face em longas mechas empapadas de Sangue e suor. É através deste intrincado
sangrento que a multidão, ávida desses espetáculos, busca apreender o trabalho
dos sofrimentos passados e o da morte que se aproxima.
Tudo se faz com pressa e
precipitação nesse último acompanhamento. Os judeus estão pressurosos por
acabar com aquilo, ou porque queiram quanto antes ver expirar a sua Vítima, ou
porque o grande dia do sábado, que principiará naquela noite, os instigue e anime,
ou porque no fundo receiem algum surto de magia no condenado. As ruas de
Jerusalém são estreitas, a multidão apaixonada é tumultuosa. Jesus é assim esbarrado,
sacudido, o pé da cruz se desvia; todo o corpo do pobre condenado segue essas
oscilações e esses contra-golpes.
À saída da grande porta de
três vãos por sobre a qual haviam apresentado o Homem, Ecce Homo! a rua desce
rapidamente, em ladeira íngreme, para emendar em ângulo reto com a via
principal que se estendia ao longo do vale do Tyropeon. A escolta que O acossa, as
vaias que O ensurdecem, o impulso dados pelos sacerdotes e anciãos que precedem
o cortejo, sobretudo a cruz que O sobrepuja, que O verga e O impele para a
frente: tudo isto faz com que a marcha de Jesus seja precipitada, de tal sorte
que, chegado ao termo da ladeira, impelido por aquele declive doloroso, Ele cai
bruscamente, e a cruz esmaga-O com todo o seu peso.
O Sangue, dizem, escorreu-Lhe
da boca e das narinas. Foi preciso certo tempo para reerguer a cruz e Jesus.
Este estava tão macilento, tão lívido, que um murmúrio de compaixão prorrompeu
num grupo de mulheres que O seguia. Entretanto, sem dó O sobrecarregam de novo.
O cortejo vira à esquerda;
a rua é reta, sem acidente, por alguns metros. Com as vestes cobertas de poeira
e de Sangue, o Mestre se adianta, mais curvado que nunca. Súbito, à esquerda, à
frente de uma porta e amparada por algumas mulheres, – Ele distinguiu Madalena,
– avista Ele Sua Mãe. Ela estende instintivamente os braços: esse gesto da Mãe
diante de quem tudo desapareceu e que só vê o Filho.
Ele soergueu um pouco a
cabeça rorejante de Sangue e olhou-A. O cortejo passou, impelido numa onda de
empurrões e pó. Maria continuava a estender os braços, mas a figura do Filho já
desaparecera no turbilhão humano que o rodeava. Que olhar! Que silêncio! Há
sofrimentos que não se podem exprimir; desnaturá-los-ia a palavra; tudo se diz
com um olhar e em silêncio. É nessas horas que as almas comunicam entre si
diretamente, através do invólucro da carne que sofre.
A vida espiritual tem
estados semelhantes. Jesus passa: a alma estende os braços e quer segurá-lO... Ele já
passou. Mas olhou-a. E, como Maria, a alma se põe no encalço de Jesus: aquele
olhar fascinou-a, ela irá até o Calvário, espezinhada, padecente por todos os poros, a sangrar, porém
irá, porém se manterá lívida, de pé, junto à cruz. Assim Jesus manifesta o
Seu poder divino até no meio das ignomínias e das inferioridades padecidas em
Sua Paixão.
Uma palavra pôs por terra
os algozes que O vinham prender no horto.
Um olhar traspassou Pedro
e transtornou-lhe a alma: Et conversus Jesus respexit Petrum.
Um outro olhar cai sobre
Sua Mãe: Ela segue arrastada pelo Seu Amor que vai adiante.
Dentro em pouco ouviremos
uma palavra de Jesus dar o Céu ao bom ladrão. É mister quebrar a casca
sangrenta da Paixão para lhe achar o fruto da divindade. Está lá, ainda que
oculta. Por assim dizer, desde que subiu ao Calvário Jesus só age e só opera
nas almas através do sofrimento que as oprime. Não há serem salvos e
predestinados senão os que são conformes a Jesus Cristo, e a Jesus Cristo
Crucificado (Rm 8, 29).
Ó minha alma, inveja, pois
esta semelhança, rejubila-te se alguns traços sangrentos daquela face lívida,
desonrada, desprezada, se imprimirem em ti. Olha, a multidão grita, os braços
se agitam e empurram Jesus, a cruz Lhe pesa, os amigos são poucos... onde estão
mesmo? A estrada se faz ascendente e desolada até à porta judiciária por onde
se sai da cidade. Há na tua vida algo deste sombrio cenário? Então estás na
estrada real. Praeit Dominus: o Senhor vai na frente; é lá em cima, no Calvário,
que Ele dá o paraíso.
A lembrança do doloroso
encontro de Jesus e Maria permaneceu cara à piedade dos fiéis amantes do Calvário.
Mostra-se ainda hoje, em Jerusalém, no lugar presumido desse encontro, numa
cripta sombria, sobre um mosaico antiqüíssimo, a dupla efígie de dois pés, dois
pés de mulher: estão desenhados sobre o fundo escuro do mosaico, em pedras brancas
e brilhantes: era ali que se postava Maria quando Jesus passou. Gostam as pessoas
de ver esse lugar e a posição dos pés: estão voltados obliquamente para o lado do pretório, frente para
Jesus que dali vinha. Minúcia alguma é indiferente quando se trata de uma Mãe –
e que Mãe! – a aguardar, na angústia e na desolação preditas pelo profeta
Simeão, a passagem do Filho que caminha para a morte.
XI- A CRUZ: SIMÃO DE
CIRENE