CAPÍTULO II
AS TENTAÇÕES NÃO SÃO SINAL DO MAU
ESTADO DE UMA ALMA EM RELAÇÃO
A DEUS E A SUA SALVAÇÃO.
Ordinariamente, as tentações
frequentes bem podem assinalar um coração sujeito a paixões e propenso ao mal,
porém não assinalam um coração mau e afastado de Deus, quando essas inclinações
são desaprovadas. Esse pendor para o mal, que nós trazemos ao nascer, pela
desordem que o pecado de nosso primeiro pai pôs nas nossas inclinações, às vezes
é fortalecido pela dependência em que a nossa alma está dos sentidos. Essa
dependência torna-nos mais ou menos sujeitos às tentações, conforme seja mais
forte ou menos forte a impressão dos sentidos; sendo tudo isso independente da
nossa vontade, e não vindo do fundo do coração, não assinala nele um vicio
particular. Ele não é a causa dessa disposição dos sentidos; pelo contrário, sofre
com ela, e, quando a corrige pelo seu apego à virtude, por mais forte que seja
a inclinação o coração nem por isso se torna mau.
Essa resistência às tentações
assinala, antes, um coração cristão, e faz conhecer o apego que ele tem a seu
Deus, e a proteção que Deus lhe concede; coisa que deve consolá-lo e enchê-lo
de confiança. A determinação em que ele se acha de resistir à Inclinação que o
arrasta, recebe-a ele da misericórdia divina, que o sustenta por uma graça
tanto mais particular quanto mais exposto ele estiver ao mal e ao perigo de
sucumbir.
É raciocinar mal o dizer: Se a
minha mente e o meu coração estivessem em bom estado, se fossem bem de Deus,
teria eu estas ideias, estes sentimentos, que ferem a caridade, que são oposto à
fé, à submissão, à paciência, e que me metem horror a mim mesmo? Se essas ideias,
se esses sentimentos dependessem de vós, se estivesse na vossa escolha tê-los
ou não os ter, com razão julgaríeis estar muito afastada de Deus quando os
experimentais. Mas tudo isso absolutamente não depende de vós. Essas ideias, esses
sentimentos insinuam-se sutilmente, ou se abatem com impetuosidade sobre o
vosso espirito e sobre o vosso coração, sem consultarem a vossa vontade; e, o
que é ainda mais forte, perseveram na vossa alma a despeito da vossa vontade,
que quereria desvencilhar-se deles, e que emprega toda sorte de meios para os afastar.
Eles não são, pois, a expressão livre da vontade; não são da escolha desta: não
podem, pois, decidir coisa alguma contra o bom estado da alma e contra o seu
apego a Deus e à virtude.
O coração só se apega pelos seus
sentimentos refletidos e deliberados. Pode, pois, um coração ser inteiramente
de Deus, embora experimente indeliberadamente sentimentos contrários à virtude,
desde que estes lhe desagradem em vista de Deus.
Digo mais: o desgosto que ele sente
de se ver atacado por tais inimigos, o horror que tem destes, são uma prova bem
decisiva de que ele está apegado ao dever e ao amor divino. Se ele amasse menos
a Deus, se temesse ou se detestasse menos o pecado, não teria nem esse
desgosto, nem essa perplexidade, nem esse horror; seguiria a sua inclinação,
satisfaria os seus desejos. Não pode ele, pois, ter prova mais segura do seu amor
a Deus do que a fidelidade que Deus lhe dá em combater essas más inclinações.
Os maiores santos foram postos a
essa prova; S. Paulo não foi eximido dela: e eles amavam a Deus perfeitamente. O
nosso divino Salvador quis submeter-se a ela para nossa instrução: e era o
Santo dos Santos. O que Ele quis experimentar na sua humanidade santa não pode
ser um mal, nem mesmo uma imperfeição: Ele era incapaz de um e de outra. Não
podemos, pois, ser culpados quando experimentamos isso da mesma maneira que
Ele, quando nos defendemos disso como Ele o fez, em proporção da nossa
fraqueza.
(Tratado das Tentações, PADRE MICHEL da Companhia de
Jesus)
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