IV- OS ESCARROS E AS
PANCADAS
Não há expressão mais viva
do asco do que o escarro à face de um homem. Vai isto ainda mais longe do que a
bofetada, parece que se apanha tudo quanto se tem no fundo de si de cólera, de
reprovação, de sumo desprezo, para lançá-lo com a própria saliva ao rosto do
inimigo.
Mal foi Jesus em casa de
Caifás reconhecido réu de blasfêmia, que toda barreira se rompeu em torno dEle.
O Sumo Sacerdote, deixando bruscamente o estrado, rasgou violentamente a veste.
Todos os outros juízes sentados em semi-círculo à volta dEle, pularam dos seus assentos.
Os dois secretários, ocupados nas duas extremidades em recolher os depoimentos
pró e contra o acusado, jogaram fora as suas tabuinhas.
Uma palavra estrondeou
como um clamor, pôde-se ouvi-la do átrio: “blasfemou, é digno de morte”.nÉ um
sinal. Alguns dos que estão na sala, juízes sem dúvida, aproximam-se-Lhe logo e
Lhe cospem no rosto.
Vendo isto, os criados, os
oficiais subalternos já se não contêm: cada qual quer fazer melhor. De
ordinário havia na própria sala do julgamento criados e soldados armados de
látegos e de cordas para baterem o acusado ao primeiro sinal. É esta turba que
se desenfreia. Breve já não bastam os escarros: esbofeteiam-nO; a bofetada é
ainda nobre demais, dão-Lhe socos.
Podiam ser três ou quatro
horas da madrugada: empurram Jesus, sempre atado, para algum canto; é Ele recebido
por aquela criadagem, passa como um objeto desprezível e desprezado, batido
pela frente, batido por detrás, batido ao passar. Entrementes, os sinedritas se
retiraram, com os cumprimentos de praxe; tornar-se-ão a encontrar nos alvores
do dia para um novo conselho.
Jesus nesse ínterim é
entregue sozinho aos soldados. Sabe-se o que seja uma soldadesca grosseira, de palavreado e
gestos asquerosos, a divertir-se brutalmente, bebendo em excesso e tendo duas
horas a passar em face de um condenado de marca, decaído juridicamente de
grandeza. Só a meditação do coração, os olhos do amor podem penetrar esses
horrores. Sabemos nós, com efeito, até onde tenham podido ir ultrajes contra o
meigo Salvador?
Há uma emulação de ódios
contra Ele.
“Examinemos,
interroguemos, experimentemo-lo pelos tratos e pelos ultrajes; disse-se Filho
de Deus: vamos a ver se as suas palavras são verdadeiras” (Sb 2, 17-18). Ademais,
Ele está sozinho, abandonado, entregue. Os juízes, com a aparência sempre
temível da legalidade, já não estão lá. Passa Ele por um sacrílego e por um
blasfemador; é um condenado pela mais alta autoridade moral: os Sacerdotes. Se
eram judeus os soldados, bastava isto a explicar-lhes e a cobrir-lhes todos os
ultrajes. Se se lhes mesclavam os romanos, obsequiosamente prestados para a
conjuntura, bastava ser Ele judeu e vencido: Roma não costumava sensibilizar-se
inoportunamente.
E depois, é noite, e os
guardas, quaisquer, estão cansados da sua tarefa, provavelmente enervados
daquela faxina suplementar que lhes foi imposta. Portanto, agitam-se, gritam, riem,
batem a torto e a direito, e babam nEle. E bateram só na cabeça? Ou até onde
levaram a insolência?... “Batiam-no e diziam muitas coisas contra Ele
blasfemando”, nota São Lucas. Sem dúvida escarnecem principalmente o Seu título
de profeta, a Sua magia, o Seu poder! É este ponto que se comprazem em repisar,
porque vêem esse poder abatido!
Parece porém que o olho
dos Profetas tenha sido ainda mais dolorosamente impressionado que o do
Evangelista. Jó exclama: “Arremessaram-se sobre mim como por uma brecha
aberta... prostraram-me com as ondas da sua violência... Para eles tornei-me
como lama, pó cinza!” (Jó 30, 14.19). Como melhor pintar a opressão e o
aniquilamento? “Abandonei meu corpo aos que me batiam, dizia Isaías, não
desviei o rosto... quando escarravam em mim... arrancavam-me a barba, e eu
deixava!” (Is 50, 6; 13, 5). “Busquei em redor alguém para me socorrer; não
havia ninguém!”
Ó esta solidão no meio dos
inimigos!
“Sou como o pelicano no
meio do deserto... como a coruja numa casa desolada. Vê-lo, estou sozinho” (Sl
110, 7), insiste Ele. Finalmente, foi dito: “Será saturado de opróbrios”.
Cumpre, pois que os tenha todos. Aliás, não é a gente alcoolizada que Ele está
entregue? “Os que bebiam escarneciam de mim e me ridicularizavam, compondo
cantigas contra mim”.
E alhures: “Tornei-me o
objeto das suas trovas... e das suas fábulas” (Jó 30, 9).
Advinha-se facilmente o
que pudessem ser essas trovas improvisadas...