domingo, 29 de março de 2015

Os Instrumentos de Suplício - Parte I





I- OS LAÇOS

O momento em que vamos perder a nossa liberdade é doloroso entre todos. Jesus já se levantou várias vezes do solo umedecido todo do Seu Sangue, naquela gruta sombria onde sofreu, chorou, clamou a Seu Pai, cercado pela noite, pela ingratidão sonolenta dos Apóstolos e pelo pavor que Lhe causa a justa apreensão dos Seus tormentos. Foi aos Seus, tentou falar-lhes... encontrou-os gaguejantes e entorpecidos. Torna a Sua oração e a Sua agonia; dentro em instantes já se não poderá mexer voluntariamente: pés, mãos, pescoço, tê-los-á envoltos de cordas e de cadeias. As horas avançam; em pouco é meia-noite... Ele vê, do outro lado da torrente do Cedron, luzes que descem: são luzes agitadas, a correr nas trevas, e, entretanto uma calma de morte paira sobre a vertente do monte Moriah, sobre o augusto leito do Cedron que a tropa vai atravessar, e sobre o horto de Gethsêmani onde vai entrar. A ordem foi dada severa: silêncio o mais absoluto, a fim de surpreender o Mestre e Seus discípulos.

Ora, os discípulos dormem e o Mestre está com medo.

Todo o cenário parece contribuir-Lhe para o terror: na noite fria, os clarões do plenilúnio alongam desmesuradamente até por sobre as franças pálidas das oliveiras – no fundo do vale – as grandes muralhas do Templo e as silhuetas escalonadas do Santuário. Jesus está imerso nessa sombra lúgubre. Está sozinho, sem força, sem querer aparente, como paralisado. Poderia ainda fugir, se quisesse. Nenhuma habitação na vertente coberta de oliveiras copadas; Bethfagé não é longe: alguns passos rápidos para o alto da montanha, e por trás de Bethfagé, à direita, é Betânia. Ali, uma morada conhecida, onde há amigos que velam e que O esperam. Como a casa fica no alto da aldeia e lhe conhece Ele as entradas secretas, ninguém O veria. Ser-Lhe-ia fácil descer em seguida pela estrada de Jericó; ao longo dessa estrada cavamse à esquerda gargantas profundas onde rola o Cedron: esconder-Se-ia aí. No alto de Jericó não há ainda as grutas selvagens onde jejuou e orou quarenta dias? Refugiar-Seia nelas. Enfim, podem-no receber os montes de Moab: a planície merencória a atravessar, o Jordão a passar, e estaria salvo.

Sim, mas teria salvado o mundo?...

Não é impossível que todos estes pensamentos humanos se hajam apresentado em tropel ao espírito de um homem acabrunhado pela visão de uma morte próxima, e que sente que, senhor de Si por alguns instantes e podendo escapar através da noite, tem nas mãos a própria salvação. Porque as mãos Lhe estão livres ainda; mas dentro em pouco vão-lhas brutalmente agarrar, passá-las para trás, e atar, até enterrar-Lhes, as cordas, os dois punhos tornados inertes, sem força e sem bênçãos.

- “Meu Pai, se é possível...” E, na palavra secreta e angustiada do Coração, emite Ele um desejo: Não ser amarrado; ir à morte, já que é mister, porém, livremente e não arrastado. Ir à morte de fronte erguida, e não violentado e humilhado... - “Meu Pai, se é possível...” Parece que isto não era possível; nada se concede a Jesus daquele alto terrível, onde só há para fita-lO o olhar irritado de Seu Pai e ao longe o olhar espavorido dos Anjos.

Eia, Jesus; será mister estenderdes as mãos e perderdes todo poder sobre Vós mesmo. Quando eles se lançaram sobre Jesus, para O não perderem, foi como que uma rede de cordas e laços que O envolveu. Pra que fim? Jesus não Se debaterá, basta que tenha mostrado o Seu poder jogando-vos por terra: não se mexerá mais; porque apertá-lO tanto? Ademais, Ele próprio o disse: “Agora é a vossa hora e a do poder das trevas”. Não é mais a Minha hora: e a Minha luz divina apagou-se.

Desce Ele, pois, beijado por Judas, largado pelos amigos, abandonado de todos e amarrado, com o pescoço apertado, com o busto enlaçado. É assim que comparece perante Anás; assim perante Caifás. Desafogar-se-á talvez o busto e o pescoço... dar-se-á um pouco de jogo à Vítima, para que se preste às exigências e aos caprichos dos Seus algozes; ter-se-á porém bem cuidado de não desatar as mãos, que ficarão assim prisioneiras toda a noite e toda a manhã seguinte, até que se lhes ponha a cruz a arrastarem.

Quando Ele for esbofeteado, não poderá aparar o golpe; quando Lhe escarrarem no rosto, não poderá enxugar os escarros; escorrem-Lhe pelo rosto e Lhe ficam na barba. A poeira, o suor, talvez as águas sujas e os restos de vinho que Lhe atiram à face: nada é desviado, as mãos estão atadas. Ó Jesus, eu me junto a Vós no caminho, beijo-Vos as pobres mãos tumefactas, quero afastar as pedras, quisera desviar os golpes... Ai, e esqueço que sou eu que Vos tenho muitas vezes desferido os mais sensíveis e os mais dolorosos.

Atado estais ainda, é assim que atravessais o mundo, não apartado nenhuma injúria; recebendo todos os golpes. É sempre a hora das trevas e a luz está pagada. Os que amam a Jesus atado atam-se a si mesmos por amor dEle. Ser atado, consentir em parecê-lo, alienar deste modo aquilo que temos de mais caro: a nossa liberdade... é a própria essência do voto. Todavia, não é o voto nem uma servidão, nem uma escravidão. É um vínculo de amor entre dois corações; mas de um amor que a gente quer tornar indissolúvel e sem traição. Nestes vínculos do voto está todo um poema de íntima e misteriosa dileção. “Senhor, eu Vos quero tanto amar e de tal sorte unir-me a Vós, que não quisera força alguma no mundo capaz de separar-me de Vós; ora, três potências neste mundo poderiam desviar-me de Vós: Os bens da terra: serei pobre. Os bens do corpo, a minha carne que me concita e me atrai a si: serei casto, e isto sem limites. Os bens da minha própria vontade: obedecerei”.


Assim, acorrentados pelos seus votos e atados pela sua Regra, os religiosos atravessam como Jesus o mundo que os escarnece, que os repudia, que os persegue, que os persegue, que os leva ao Calvário. Não desfaçamos nenhum dos nossos laços, por amor ao grande Atado e ao divino Humilhado que nos precedeu e que caminha ainda adiante de nós, sem liberdade, sem poder aparente... Ele terá, porém, o Seu dia e a Sua hora, em que os laços tombarão!... Ó terrível liberdade de um Deus vingador!


II - AS PEDRAS DA TORRENTE DE CEDRON

Ao sair do horto, a tropa que arrasta a Jesus atado vai-se desordenada, tumultuosa, apressada. Eles ainda não estão inteiramente tranqüilos sobre aquela captura; vão o mais apressadamente possível, pelo mais curto caminho. É uma vereda, talhada no rochedo, que corta a torrente do Cedron abaixo da estrada e da ponte.

Os pés dos que vão derramar sangue, diz o Espírito Santo, são sempre apressados (Sl 13, 3): quando uma paixão nos senhorea, arrasta-nos. Mostra essa pressa que o homem perdeu o domínio de si mesmo... é escravo. Marcha! clama a paixão... e fustiga-o a golpes redobrados de maus desejos. Jesus é, pois, levado; é encontrado, sacudido, empuxado para a direita e para a esquerda pelas cordas: tem todo um luxo de laços em volta do pescoço, em torno do busto. Em descendo a vereda talhada em escada, cambaleia e cai no rochedo – segundo uma
antiga tradição.

Há desordem, gritos e confusão. Os que estão na frente, e que a carreira projeta, recuam; os que estão atrás caem quase sobre o corpo de Jesus. Bateu Ele com os joelhos e com a cabeça no rochedo, e o rochedo não amoleceu.

No dia da Sua Ascensão Ele fará ceder, sob a última pressão do pé glorificado, a rocha insensível, e a gente beijará [na Terra Santa] com amor essa derradeira pegada humana do Salvador.

No dia da Paixão, a natureza permanece o que é: dura, cruel para o pecador universal; no mínimo é indiferente. É mister saber sofrer neste mundo dessa indiferença das coisas. Que deferências merecemos nós? Que exceção em nosso favor? O frio, o calor, o vento, a chuva, tudo isto tem que me importunar a seu tempo: porque me queixar?

Há nas nossas impaciências a respeito dos sofrimentos que nos vêm das coisas uma espécie de orgulho secreto: queremos o privilégio, a exceção para nós; afigura-se-nos estranho que alguma coisa nos moleste sem a nossa permissão, sem o nosso justo consentimento.

Deus não fez milagre em favor de Seu Filho que entra na Paixão. Ele cai, bate de encontro no rochedo, fere-se. Levantam-no, porque o não pode fazer por si mesmo. E Ele aceita o auxílio, como aceitou o golpe.

Tudo isto entra no plano superior do Pai: não Lhe quer Ele tocar, receiaria estragar um dos instrumentos do suplício, pois tudo é instrumento entre as mãos do Deus irritado. O medo, o tédio, o pavor que o fizeram suar sangue. A gruta silenciosa, indiferente também ela àquele sangue que corre. A pedra da torrente, e em breve os escarros da criadagem que bebe e que blasfema, como depois as correias dos flagelos e os pregos da Cruz. Ó Justiça de Deus!...

III - A MÃO DO CRIADO – A BOFETADA

Por que será que a bofetada é um ultraje tão sensível à honra de um homem?

Atinge ela o rosto, a parte mais nobre, a que manda, de onde se exala a vida, o amor, e que pode erguer olhos que fitam o céu. Um rosto esbofeteado, mais do que a dor assinala a vergonha e a cólera; é uma diminuição aos próprios olhos e aos olhos dos outros que se sinta um homem esbofeteado. E esbofeteado por um criado, um réles soldado mercenário!... A afronta é dobrada. Jesus está de pé, atado, diante do [ex] Sumo Sacerdote, Anás; afligem-no com perguntas, querem apanhá-lo nas Suas próprias palavras. Cercam-no os soldados, os criados do Sumo Sacerdote, turba baixa, bajuladora do amo, que vê seu ganho no fim de tudo. Aliás, têm eles um rancor pessoal contra Jesus, uma vingança privada, pois não foram violenta e ridiculamente atirados por terra, de pernas para o ar, por aquele Jesus no horto? Precisam desforrar-se: fá-lo-ão na primeira oportunidade.

Um dos criados rompe o fogo. Afeta zelo: é uma máscara para lhe encobrir o rancor. Não tem nada a temer e tudo tem a ganhar: Jesus está acorrentado, não poderá aparar o golpe, e o Sumo Sacerdote ser-lhe-á grato por defender assim a sua palavra. No fundo, nada importa ao Conselho instalado de ver Jesus diminuído por aquela bofetada. Na fatal progressão do infortúnio, certas etapas não nos permitem mais, uma vez transpostas, tornar à antiga ventura. Só há daí por diante um movimento: aquele que nos arrasta e nos impele para um mais vivo e mais humilhante sofrimento.

Quando o rei Luis XVI, invadido pela escória do seu povo, se viu acuado àquele vão de janela do palácio das Tulherias (20 de junho de 1792) e obrigado, para ceder ao capricho grotesco daquela populaça, a subir a uma mesa como a um tablado, a pôr na cabeça o gorro vermelho e beber um copo de vinho, podia dizer-se que fora um dia a realeza e o seu prestígio protetor e secular. Não se torna de semelhante decadência.

Assim, aos olhos da multidão o prestígio do Cristo está golpeado depois daquela bofetada. Os soldados viram que depois daquele ultraje não houve nenhuma magia, nenhum retruque. O criado pôde blasonar junto aos outros. Riem-se do caso, aprovam-no, correm a dizê-lo aos soldados que se aquecem no átrio: “Ele acaba de levar uma bofetada valente. Cada qual a seu tempo, havemos de lhe fazer provar muitas outras!”

Entretanto, Jesus sentiu a afronta, e o rubor assomou-Lhe ao rosto. Essa bofetada abre-Lhe a Paixão; após este primeiro ultraje permitirá Ele todos os demais. Esbofeteia-se a Jesus Cristo – ainda e sempre – quando se toma partido anti e contra Ele, pelos poderes públicos. Por que os Vossos dogmas estreitos? Dizem-Lhe. Por que a Vossa Igreja intolerante? Por que limitar os direitos de César?... É ainda esbofetear a Jesus o interdizer-Lhe a entrada na sociedade. Esbofeteamo-lO numa ordem mais íntima quando Lhe exprobramos o opor-nos incessantemente tal ou qual dos Seus mandamentos, e então muitas vezes uma ação torpe esbofeteia a Deus diante dos Seus Anjos e dos Seus Santos: “Deixa-me fazer, eu quero a minha liberdade e o meu gozo”...

Enfim, há cruéis preferências que são bofetadas. Aqui o Sumo Sacerdote é preferido ao Cristo; dentro de horas será Barrabás: outra bofetada. Tudo quanto diminui, rebaixa,
avilta, é uma bofetada.

Ó Jesus, eu aceito, em memória daquela estrepitosa bofetada, tudo o que me humilhar em público ou em segredo, e tanto mais quanto de mais baixo e de mais vil do que eu me vier essa bofetada...

No meio das ruínas daquilo que foi a casa de Anás, num pátio onde encontra ainda uma velha oliveira nodosa e gretada, a cujo tronco Jesus teria sido amarrado por alguns instantes, uma lâmpada arde sem cessar no lugar onde um criado do Sumo Sacerdote deu uma bofetada em Jesus.


(Perroy, Pe. Luís. A Subida do Calvário. Editora Vozes, 1957)

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