XIII. A CRUZ: AS MULHERES
QUE CHORAM
Jesus chega
penosamente à porta
Judiciária. Atualmente é
um vão de
paredes muito
espessas que expande, nas
sombras dessa espessura, a sua ogiva esbelta. Do outro lado, são as ruas sinuosas e
movimentadas dos bazares.
No tempo
de Jesus, a
porta dava para
as valas que
margeavam as muralhas
e para a
planície rochosa onde se
erguia o Calvário. De ordinário o cortejo parava nessa porta; a multidão apinhava-se
formigante e curiosa,
e lia-se uma
última vez a
sentença ao condenado. Quando Jesus
desembocou na plena luz da planície, tendo à esquerda, não longe, o sinistro perfil
do Calvário, ergueu os olhos e viu todas as caras hostis da plebe. Comprime-se esta,
acotovela-se, quer ouvir, sobretudo quer ver o rosto e as impressões
do condenado.
Todos os olhares fixam-se
com efeito no Cristo: analiza-se-Lhe a palidez, o terror; há uma curiosidade
malsã da multidão
que a si
própria se convida
para o espetáculo
do último suspiro de um
condenado. É o que os Atos dos Apóstolos chamarão, a propósito de São Pedro, de
expectatio plebis: essa espera cruel de todo o povo ante o qual, como em derradeira cena, se
produz, se exibe a Vítima.
“Este – clama em voz alta
o arauto – é Jesus de Nazaré, agitador e sedutor do povo, e que se disse Rei dos
Judeus. Seus compatriotas, os sacerdotes e os anciãos, entregaram-nO à justiça para ser
crucificado. Ide, lictores, e preparai a cruz”.
Ela está pronta, esmaga já
os ombros do paciente. A multidão esbraveja. Jesus vê tudo e ouve tudo.
Entretanto o cortejo se
põe novamente em marcha e dobra à esquerda. Alguns passos mais, e
é a suprema
subida de onde
já se não
torna a descer. Nesse
momento, inopinadamente, Jesus fraqueja: será a comoção nova da
sentença, o horror natural da morte, o
peso da Cruz
que durante a
simples parada da
leitura pesou mais esmagadoramente nos
ombros curvados? Cai
Ele humilhantemente, e
desta vez o
levantar é mais
custoso.
Já não há Simão Cirineu! A
grande multidão que O cerca sente-se burlada: contava com uma exibição, e vê só um
infeliz que treme e desfalece a cada passo; murmura então.
As mulheres são mais
compassivas. No ponto em que a estrada dobra para o Calvário, agruparam-se elas, grupo
comovido e que se lamenta. Jesus percebe o som sincero dos corações partidos, através
das blasfêmias de todo um mundo: pára. Ele que nada disse a
Sua Mãe, nada a Simão,
nada a Verônica, tem uma palavras de consolação para aquela piedosa simpatia: “Não
choreis por Mim, diz com voz sumida, chorai antes por vós: dia virá em
que direis: Felizes
nós se não
houvéramos gerado. Está
próximo esse dia,
porque se
deste modo se
trata a lenha
verde, pergunto-vos Eu,
que se fará
da lenha
seca?” (Luc. 23, 31).
Os soldados
deixaram-nO dizer: porque
Jesus queria falar,
Ele é o
Mestre quando cumpre o que seja.
Assim, quem
é para lastimar
não é o
Messias amesquinhado, desfeito
e agonizante, segundo foi escrito e
decidido, Filius Hominis vadit, o Filho do Homem vai: ai, porém, daqueles que atraiçoam e
abandonam o Cristo a morrer por nós.
Deus orienta assim com uma
palavra a piedade dos homens. Deve ela ir não às vítimas, porém aos algozes; não aos
perseguidos, mas aos perseguidores; não aos que sobem o Calvário, mas
aos que os
fazem subi-lo. São
os grandes miseráveis
porque, se Deus permite que assim se trate
a lenha verde, a que tem a seiva da Graça, que produz frutos e
que gera os Seus eleitos,
que se vai fazer de vós, opressores dos justos, mortos à Graça, lenha seca e sem vida? Em
verdade, Eu vo-lo digo, vós prestais é para o fogo eterno. Lenha seca e eternamente
árida, haveis de ser o pasto eterno de um fogo lento, vingador e divino, que arderá
enquanto tiver um alimento... Ora, vós sois imortais!
Esta palavra
do Cristo consola
todas as opressões
deste mundo. Delas
está o mundo cheio, e Deus se cala.
Este silêncio
de Deus deveria
amedrontar os opressores:
virá uma hora
em que essa
palha seca fugirá louca
diante da cólera divina, e esta cólera lhe há de apanhar a menor
felpa, ainda que se fosse
esconder no fim do mundo.
Que é a grandeza do mundo
diante do poder de Deus? Esses pecadores ambiciosos que quiseram encher
este mundo, quando
viviam, hão de
mendigar então –
e com que angústia – um buraco nas
montanhas para se esconderem: e não o hão de ter.
Assim, até nos últimos
abaixamentos Jesus deixa escapar os clarões longínquos da Sua Justiça derradeira.
Vereis o Filho do Homem,
mais tarde, em todo o esplendor de Sua Majestade, dissera Ele perante o Tribunal. No
momento de galgar o Calvário, diz com mais tristeza e não menos autoridade:
“Então eles hão
de clamar: Montanhas,
cai sobre nós.
Porque se deste modo se trata a
lenha verde, que se fará com a lenha seca?...”
O lado do Calvário que
olha para Jerusalém é muito abrupto. O cortejo teve pois que contornar à direita a
rocha escarpada, onde a rampa era mais suave.
O esforço
que fizera Jesus
para falar às
filhas de Jerusalém
esgotara-Lhe o resto
de forças e, no momento de
galgar o outeiro, uma terceira, uma última vez Ele cai de rosto no chão.
Evidente se fazia que
quase já só arrastavam um cadáver. Era de recear que talvez Ele não tivesse
sequer alento bastante
para chegar ao
cimo, deitar-se na
Cruz e sentir
os cravos enfiarem-se-Lhe brutalmente
na carne morta.
A todo custo, cumpria
que fosse alçado vivo na Cruz.
O texto sagrado deixa-nos
adivinhar que os soldados tiveram que amparar, quase que carregar a
Vítima até em
cima. Era o
último instrumento de
suplício, antes da crucifixão. Vivamente o
sentiu Jesus; sentiram-no também os que O cercavam e por isto ainda mais
o devem ter
desprezado, pois acham
que Ele não
é corajoso. [Voluntariamente] não tem
aquela energia, aquele arrojo que concederá mais tarde aos Seus Mártires.
Vai ao
suplício a tremer,
e esta aparência ou
realidade de delíquio
são tanto mais humilhantes quanto Ele se
disse o Messias, o Filho de Deus, aquele que existia “antes que Abraão fosse...”, o
restaurador de Israel, o filho de David!
Que amarga
irrisão! Como todas
estas coisas devem
acudir ao pensamento
dos espectadores! ‘Nós
esperávamos, dirão os discípulos de Emaús, nós esperávamos nEle: sim, ontem, porém hoje!
Que fim lastimável! Que mísero epílogo àquela vida estranha,
semeada toda de milagres e
prodígios! Se era assim que Ele devia acabar, era oportuno erigir-se em
fundador de uma
religião nova? Que
crédito conferir a
um homem que, depois de ter avançado
tanto, morre frouxamente e sem brilho?’
Este caráter da Paixão é
inteiramente divino e reservado.
Só o comunica Jesus a
mui raros e mui fiéis amigos,
aos que já não sabem o que seja a glória deles, mas só vêem a de Deus.
A humilhação do
sofrimento, a fraqueza, o abatimento dos últimos instantes, não ser e não parecer vigoroso no
suplício a fim de que os homens, tão desejosos de honras, nos desprezem um pouco mais
ainda! Em verdade, em verdade, que aquele só a quem tal seja dado o compreenda se
puder, e o ame ardentemente.
Qui potest capere, capiat.
Se o cálice me for posto
aos lábios, ó Jesus, e os lábios me tremerem; se essa Cruz me for posta nos braços e os
meus braços penderem; se essa amargura me for
vertida no coração e o coração a
deixar vasar como dum vaso partido e sem preço, eu bendirei, no segredo desse coração
desprezado de todos, a adorável bondade que terá me feito unir-me ainda mais a Vós na
ríspida subida do Calvário. Assim seja.
XIV - OS CRAVOS
Avizinhamo-nos do
desfecho. Sustentado e
quase carregado pelos
soldados, Jesus galgou a montanha; antes
de chegar ao cimo, um pouco à esquerda, fazem-no parar.
Enquanto os algozes vão
fazer os últimos preparos, estender a Cruz, preparar as cunhas para fixá-la
no buraco cavado
no próprio rochedo,
aguçar os cravos e
dispor tudo o mais, cumpre assegurar-se
da Pessoa de Jesus. Descem-nO a uma espécie de fossa, no fundo da qual há uma
grande pedra, que se mostra ainda hoje, munida de dois orifícios por onde se passam as
pernas do condenado. Amarram-nas por debaixo, a fim de tornar impossível toda fuga.
No estado em que se acha a
Vítima, a precaução é inútil, mas persiste cruel. Do fundo dessa prisão
improvisada, pode Jesus
ouvir em cima,
por sobre Sua
cabeça, os preparativos, os gritos
dos soldados, as blasfêmias dos dois salteadores que devem ser crucificados com Ele, e
todo aquele vai-e-vem de gente que quer ver terminado aquilo o mais depressa
possível. Em baixo
é o redemoinho
tumultuoso da multidão.
Como o cimo do Calvário é pouco
largo, o povo ficou no sopé.
Todo o vale regurgita,
pois, de gente. O Calvário está rodeado daquela plebe que espera, que acha
que espera demais,
que chacoteia e
se diverte. Circulam
por entre ela os sacerdotes, fazendo
de atarefados e de importantes.
Vários dos principais
vão até ao cimo, como que para
inspecionar de mais perto o trabalho dos criados: outros espiam Jesus no fundo da fossa,
e, se levanta a cabeça pesada, pode o Mestre ver por cima dEle aquelas caras escarninhas
e rancorosas.
A meio
caminho pouco mais
ou menos do
Calvário e do
túmulo novo de
José de Arimatéia, num recanto
mais solitário do valado e frente para o Gólgota, há um grupo doloroso de mulheres de
véu e que choram. No meio há uma mais nobre, mais aflita, que parece cercada das
afeições e das simpatias respeitosas de todas: é Maria, a Mãe do Condenado. Stabant autem
omnes noti ejus a longe. Erant autem ibi mulieres multae a longe (Lc 23, 40; Mat 23,
49).
Essas mulheres não podem
aproximar-se ainda nem de Jesus nem do alto do Calvário; a multidão é
demasiado compacta. Uma
parte dessa multidão,
a mais ávida
e mais rancorosa, queda imóvel
como num espetáculo vivamente esperado. Et stabat populus
spectans (Lc. 23,
35). A outra
parte é móvel:
praetereuntes, transeuntes, curiosos, passeantes; como o
Calvário fica perto da cidade, aflui-se de todos os lados: dá-se volta ao outeiro,
quer-se ver principalmente o momento
em que será
crucificado o Condenado, para
Lhe ouvir os
gemidos, para surpreender-Lhe a
dor; e, quando
Ele
surgir sangrento e lívido,
volvendo as costas a Jerusalém, com os dois braços estendidos no cimo do Calvário, será
uma exclamação, um grito de alegria satisfeita e de paixão saciada.
Esse momento veio. De
baixo a multidão viu os soldados se dirigirem para a fossa onde está acorrentado
Jesus.
Aparece Ele, cambaleante:
a silhueta branca, pois Ele tem ainda a Sua veste comprida, desenha-se-Lhe trêmula
no cimo do
Calvário: faz-se subitâneo
silêncio em toda a multidão. Tiram-Lhe a
veste branca, arrancam-Lhe a túnica vermelha: e então o corpo tiritante, estriado
de Sangue, cavado
de golpes, aparece
nu aos olhos
de todos.
Ó Jesus, nenhuma
humilhação Vos foi poupada: operuit confusio faciem meam (Sl 48, 8), o rubor da vergonha
cobriu-me o Rosto, dizeis antecipadamente pelo Vosso Profeta, e é o único véu que se
permite irrisoriamente à Vossa Santa Humanidade.
Está tudo
pronto: a Cruz
jaz estendida à
direita da cova;
empurram para ela
a Jesus,
deitam-nO nela
brutalmente, em cima do Calvário há unicamente os algozes; de baixo seguem-se, portanto
com cruel atenção
todos os movimentos
dos soldados e dos
criados. Porque
já não se vê Jesus,
mas advinha-se facilmente,
naquele grupo de verdugos agachados, que a
cruel empreitada vai começar. De feito, um braço se eleva e a primeira martelada reboa
no silêncio.
O primeiro
cravo se enterra
numa das mãos
do Salvador; as
marteladas vão se sucedendo bruscas
e aceleradas. O
ruído surdo ouvir-se-ia
das fortificações, tal o silêncio que faz a
multidão para as escutar e contar. Aproximemo-nos, vejamos também nós, contemos.
Tudo se faz sem
consideração, brutalmente, e o próprio martelo parece tomado de ódio e de furor, tanto bate a
golpes redobrados; um soldado segura a extremidade das mãos estiradas, para
que o cravo
se lhes enterre
melhor, sem ser
estorvado pelos dedos forçosamente contraídos. O
que bate os cravos quase se senta no ombro do paciente; os outros firmam o corpo que
a dor faz estremecer.
E a Face Divina perdida
nos cabelos, banhada toda em suor e em Sangue, pende para trás espantosa,
de uma lividez
marmórea. Quando a
primeira mão é
assim cravada, passa-se à segunda. Depois
vem a vez dos pés. Aqui a operação é
mais longa e mais cruel.
Os cravos pontiagudos,
quadrangulares, rasgam a Chaga com as quatro arestas. Quando já penetraram totalmente,
há que recurvar-lhes a ponta por detrás, e isto não se faz sem novos abalos e cruéis
pressões.
O Corpo é assim fixado,
esticado em excesso; porque se houve de prever o alargamento das feridas;
os ombros se
desconjuntaram, os ossos
apartados podem-se contar todos: dinumeraverunt omnia
ossa mea (Sl 21,
18); o peito
está cruelmente saliente, tudo o que fica abaixo
está tão retirado para trás que parece colado ao madeiro da Cruz; o Sangue escorre em rios e
um frêmito doloroso faz palpitar da cabeça aos pés aquela Carne lívida.
A Cruz
é então arrastada
até à cova
do rochedo. Erguem-na
por detrás amparando-a com escadas, depois ela
cai pesadamente no fundo, em meio aos gritos da multidão, aos gemidos angustiados da
Vítima e debaixo de uma chuva de Sangue que essa última e brutal sacudida faz cair
abundante em toda a volta. Jesus, assim violentamente esticado, está doravante imóvel no
horrível sofrimento.
XV- A IMOBILIDADE E A
ESCURIDÃO
Havia que chegar a isto.
Todo o fatal progresso da Paixão do Cristo tende a privá-lO gradualmente da Sua
liberdade, para Lhe comprar a cada privação um sofrimento novo, até que
o derradeiro esforço
desse trabalho superior
da Justiça de
Deus consiga imobilizá-lO na dor.
Primeiro os
laços, depois a
entrega entre as
mãos de soldados
debochados, depois a privação da vista no corpo
da guarda, o amortecimento das forças e a exaustão que a marcha acarreta
e, finalmente... os
cravos que O
fincam na Cruz:
é a tremenda imobilidade! A
simples reflexão pode
nos dar uma
idéia deste último
instrumento de suplício. Estar preso,
fixado por quatro Chagas a se alargarem de minuto em minuto a um sofrimento a que não se
pode escapar!
O menor
movimento não faria,
aliás, senão aumentar
esse sofrimento. E
três horas durou esse
tormento assombroso! O
doente preso de
dor revolve-se penosamente
no leito; tem necessidade
desse movimento que, se não lho suprime, muda-lhe ao menos o sofrimento: descansa de um
pelo outro. Na Cruz, porém, nenhum descanso a esperar a não ser numa morte que só
há de vir lentamente. Mais uma vez: era preciso. O homem, pecando, abusa
da sua liberdade:
o castigo correspondente à
sua culpa devia
ser a privação dessa liberdade.
O Filho do Homem, que expia por toda a humanidade, será,
pois, conseqüentemente com
o Seu papel
de Vítima expiatória,
privado de toda a liberdade.
Está feito, e é sobretudo
nesse exato momento que Ele salva os pecadores. Gritam-Lhe galhofando: “Desce
agora, se podes”.
Já não pode.
Está cravado. As
almas que se
queixam de estar presas à
mesma cruz, pesada, esmagadora, sem esperança de a poder largar neste mundo, devem
vir ao pé desta Cruz de Jesus.
Eu venho, meu Deus, e ante
a Vossa imóvel atitude, ante esses cravos que Vos fincam ao dever sangrento da
Redenção, eu nem sequer em desejo procurarei despregar-me de uma cruz que em alguns
pontos quisestes tornar semelhante à Vossa.
Quando os algozes
levantaram assim ao alto, como um troféu, a Sua Vítima sangrenta, passaram aos dois ladrões.
Não tardou que se completasse o espetáculo: as três cruzes se alçaram no
cume do Gólgota.
Nesse momento o
campo foi deixado
livre à multidão. Houve um ímpeto em direção
ao Cristo pendurado no meio. Si exaltatus fuero, omnia traham ad meipsum. “Quando
eu for levantado, atrairei tudo a Mim” (Jo 12, 32). Por
enquanto o ímpeto é de
ódio: amanhã – que digo? – daí há pouco, transformar-se-á num ímpeto de amor cujas
vastas ondas virão até o fim dos tempos bater naquele rochedo e
naquela Cruz divina.
Podemos supor
os soldados a
conterem com dificuldade
a populaça que
se atira ao espetáculo daqueles
três supliciados. Podemos
crer também que
o grupo das
santas
mulheres se tenha deixado
de bom grado arrastar pela corrente, pois eis que elas estão mais perto
da montanha. O
Cristo, a Quem
o Sangue tolhe
a vista, vislumbra-as
ao longe. Mas
esta visão, que O teria
aliviado, é ofuscada
pela multidão que
circula sussurrante, qual
enxame malfazejo, em
torno aos três
patíbulos. Circumdederunt me sicut apes.
Rodearam-me semelhantes a uma nuvem
de abelhas irritadas.
E todas as injúrias que
sobem até Ele
crepitam como o
fogo que arde
através das sarças
e dos espinhos. Exarserunt sicut ignis in spinis (Sl 117, 12).
Há nesse crepitar de ódio
uma covardia cruel, dado que a Vítima está imobilizada e que a morte que a vai colher
bem devia bastar a cevar todas as cóleras. Aqueles que
são realmente crucificados com
Jesus têm que
passar por essas contradições das línguas;
o mundo não cessará de falar sobre o que vê e de julgar o que não conhece; é por isto
que ele é fundamentalmente injusto. Os eleitos se consolam no testemunho único
da sua consciência
que será a base do último julgamento de
Deus.
Quem, entretanto
se sente bastante
forte contra esse
enxame de línguas
maldizentes? Senhor, exclamava
Davi perseguido por
seus inimigos, muta fiant
labia dolosa, emudecei essas
bocas peçonhentas e
protegei os Vossos
servos dessas contradições turbadoras das línguas
inimigas, protege nos acontradictione linguarum (Sl. 30, 31).
A minha fraqueza Vos dirige
a mesma súplica, ó Jesus; mas, quando eu me acerco da Vossa Cruz, onde como num
alvo único cospem todas as bocas as suas blasfêmias, o meu amor susta-me nos
lábios o anelo da minha fraqueza e diz-Vos tremendo, porém, suplicando-Vos:
- Tomarei também eu o
cálice do meu Senhor, tomá-lo-ei, bebê-lo-ei... Nas Suas Mãos estão as tempestades e as
borrascas da minha vida... Tomarei o cálice do meu Senhor, o mesmo, quero nele beber, e
invocarei o Seu Nome como o meu melhor sustentáculo.
In manibus tuis sortes meae (Sl. 30, 16).
Calicem salutaris accipiam
et nomem Domini invocabo (Sl. 111, 13).
A partir
do momento em
que a Cruz
de Jesus fôra
erguida, o céu
se havia progressivamente toldado,
o sol parecia
velar o seu
disco luminoso. Entregue inteiramente ao
espetáculo que aguardava,
a multidão não
deve ter prestado
grande atenção a
esse fenômeno. A
pouco e pouco,
porém, o céu
se enchia de
sombras crescentes, e logo trevas espessas
cobriam o Calvário, os jardins, a cidade de Jerusalém, e, diz-nos o Evangelista,
estenderam-se pela terra inteira.
Aquela noite esquisita,
caindo assim subitamente e subtraindo à vista a Vítima divina, lançou a inquietação nas
filas da multidão. As vozes que blasfemava calaram-se pouco a pouco. Os
soldados que montavam
guarda aos supliciados
quase não os
viam:
admiraram-se. Além de que
aquilo lhes atrapalhava a partida de dados...
Em breve não houve naquele
cume desolado mais que sombras a circularem medrosas, falando-se baixo. Foi
favorecidas por essas trevas que as santas mulheres se insinuaram até ao pé da Cruz. Ninguém
lhes tolheu o passo. Elas subiram ao alto e se conservaram de pé muito perto dos
patíbulos; Madalena, Maria de Cléofas, algumas outras mais e, na primeira fila, Maria, a
Mãe de Jesus: um só discípulo, João, o predileto.
Jesus, através da noite
que O oprime, já os distinguiu. Fita-os longamente, é para Ele um consolo
supremo, e ao mesmo tempo
um como doloroso instrumento de suplício, pois é a renovação do
encontro de ainda há pouco; pois é também a renovação da ferida que Lhe
fez o abandono
dos Seus, visto
que, dos Apóstolos,
apenas João lá
está, sozinho, fiel,
ao pé da
Cruz. Fita e
cala-se. Este silêncio
de Jesus entre
as Suas três primeiras palavras, antes
das trevas, e as quatro últimas, antes da morte, durou cerca de três horas. Três horas de
silêncio imóvel e de escuridão! É mister sentir esta derradeira angústia, ficar ao pé da
Cruz nessa escuridão, escutar esse silêncio e imitá-lo. Porque também, todos os
instrumentos de suplício estão esgotados, só resta a morte a esperar. Cada qual veio à
sua hora bater e dilacerar aquele Corpo. Sob os Seus golpes sabiamente dirigidos, mais
sabiamente ainda renovados, porque no Calvário se acham compendiadas todas
as dores já
experimentadas, sob os
seus golpes aquele
Corpo divino, esticado no
madeiro da Cruz, vai retumbar o hino da dor e também da vitória.
Mas, ó Senhor Jesus,
resta-me penetrar mais dentro ainda no mar doloroso e profundo da Vossa
Paixão. Depois do Vosso
Corpo sagrado, é o Vosso
Coração divino que eu quero ver, triturado,
despedaçado, aberto, traspassado de lado a lado.
De joelhos, pois, no cimo
do Calvário, ao pé da Vossa Cruz, durante aquelas três horas de silêncio e de
escuridão, ouvindo só os surdos gemidos da Vossa oração e da Vossa agonia, ou o ruído abafado
e irregular do Sangue que escorre em terra, eu vou tornar a subir essa
onda de Sangue
e de dor
que Vos trouxe
até aqui, para
distinguir nele, cruelmente revolvido
por essas águas
dolorosas, o Vosso
Coração! Esse Coração que me amou até querer
extinguir-se por mim.
Ó vós todos que passais,
parai, pois um momento e vejamos juntos se há sofrimento que se possa comparar ao de
Jesus na Cruz!
(Perroy, Pe. Luís. A Subida do Calvário. Editora Vozes)
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