terça-feira, 14 de abril de 2015

Os Instrumentos de Suplício - Parte Final




XIII. A CRUZ: AS MULHERES QUE CHORAM

Jesus  chega  penosamente  à  porta  Judiciária.  Atualmente  é  um  vão  de  paredes  muito
espessas que expande, nas sombras dessa espessura, a sua ogiva esbelta. Do outro lado, são as ruas sinuosas e movimentadas dos bazares.

No  tempo  de  Jesus,  a  porta  dava  para  as  valas  que  margeavam  as  muralhas  e  para  a
planície rochosa onde se erguia o Calvário. De ordinário o cortejo parava nessa porta; a multidão  apinhava-se  formigante  e  curiosa,  e  lia-se  uma  última  vez  a  sentença  ao condenado. Quando Jesus desembocou na plena luz da planície, tendo à esquerda, não longe, o sinistro perfil do Calvário, ergueu os olhos e viu todas as caras hostis da plebe. Comprime-se esta, acotovela-se, quer ouvir, sobretudo quer ver o rosto e as impressões
do condenado.

Todos os olhares fixam-se com efeito no Cristo: analiza-se-Lhe a palidez, o terror; há uma  curiosidade  malsã  da  multidão  que  a  si  própria  se  convida  para  o  espetáculo  do último suspiro de um condenado. É o que os Atos dos Apóstolos chamarão, a propósito de São Pedro, de expectatio plebis: essa espera cruel de todo o povo ante o qual, como em derradeira cena, se produz, se exibe a Vítima.

“Este – clama em voz alta o arauto – é Jesus de Nazaré, agitador e sedutor do povo, e que se disse Rei dos Judeus. Seus compatriotas, os sacerdotes e os anciãos, entregaram-nO à justiça para ser crucificado. Ide, lictores, e preparai a cruz”.

Ela está pronta, esmaga já os ombros do paciente. A multidão esbraveja. Jesus vê tudo e ouve tudo.

Entretanto o cortejo se põe novamente em marcha e dobra à esquerda. Alguns passos mais,  e  é  a  suprema  subida  de  onde    se  não  torna  a  descer.  Nesse  momento, inopinadamente, Jesus fraqueja: será a comoção nova da sentença, o horror natural da morte,   o   peso   da   Cruz   que   durante   a   simples   parada   da   leitura   pesou   mais esmagadoramente  nos  ombros  curvados?  Cai  Ele  humilhantemente,  e  desta  vez  o
levantar é mais custoso. 

Já não há Simão Cirineu! A grande multidão que O cerca sente-se burlada: contava com uma exibição, e vê só um infeliz que treme e desfalece a cada passo; murmura então.

As mulheres são mais compassivas. No ponto em que a estrada dobra para o Calvário, agruparam-se elas, grupo comovido e que se lamenta. Jesus percebe o som sincero dos corações partidos, através das blasfêmias de todo um mundo: pára. Ele que nada disse a
Sua Mãe, nada a Simão, nada a Verônica, tem uma palavras de consolação para aquela piedosa simpatia: “Não choreis por Mim, diz com voz sumida, chorai antes por vós: dia virá  em  que  direis:  Felizes  nós  se  não  houvéramos  gerado.  Está  próximo  esse  dia,
porque  se  deste  modo  se  trata  a  lenha  verde,  pergunto-vos  Eu,  que  se  fará  da  lenha
seca?” (Luc. 23, 31).

Os  soldados  deixaram-nO  dizer:  porque  Jesus  queria  falar,  Ele  é  o  Mestre  quando cumpre o que seja.

Assim,  quem  é  para  lastimar  não  é  o  Messias  amesquinhado,  desfeito  e  agonizante, segundo foi escrito e decidido, Filius Hominis vadit, o Filho do Homem vai: ai, porém, daqueles que atraiçoam e abandonam o Cristo a morrer por nós.

Deus orienta assim com uma palavra a piedade dos homens. Deve ela ir não às vítimas, porém aos algozes; não aos perseguidos, mas aos perseguidores; não aos que sobem o Calvário,  mas  aos  que  os  fazem  subi-lo.  São  os  grandes  miseráveis  porque,  se  Deus permite que assim se trate a lenha verde, a que tem a seiva da Graça, que produz frutos e
que gera os Seus eleitos, que se vai fazer de vós, opressores dos justos, mortos à Graça, lenha seca e sem vida? Em verdade, Eu vo-lo digo, vós prestais é para o fogo eterno. Lenha seca e eternamente árida, haveis de ser o pasto eterno de um fogo lento, vingador e divino, que arderá enquanto tiver um alimento... Ora, vós sois imortais!

Esta  palavra  do  Cristo  consola  todas  as  opressões  deste  mundo.  Delas  está  o  mundo cheio, e Deus se cala.



Este  silêncio  de  Deus  deveria  amedrontar  os  opressores:  virá  uma  hora  em  que  essa
palha seca fugirá louca diante da cólera divina, e esta cólera lhe há de apanhar a menor
felpa, ainda que se fosse esconder no fim do mundo.

Que é a grandeza do mundo diante do poder de Deus? Esses pecadores ambiciosos que quiseram  encher  este  mundo,  quando  viviam,  hão  de  mendigar  então    e  com  que angústia – um buraco nas montanhas para se esconderem: e não o hão de ter.

Assim, até nos últimos abaixamentos Jesus deixa escapar os clarões longínquos da Sua Justiça derradeira.

Vereis o Filho do Homem, mais tarde, em todo o esplendor de Sua Majestade, dissera Ele perante o Tribunal. No momento de galgar o Calvário, diz com mais tristeza e não menos  autoridade:  “Então  eles  hão  de  clamar:  Montanhas,  cai  sobre  nós.  Porque  se deste modo se trata a lenha verde, que se fará com a lenha seca?...”

O lado do Calvário que olha para Jerusalém é muito abrupto. O cortejo teve pois que contornar à direita a rocha escarpada, onde a rampa era mais suave.

O  esforço  que  fizera  Jesus  para  falar  às  filhas  de  Jerusalém  esgotara-Lhe  o  resto  de forças e, no momento de galgar o outeiro, uma terceira, uma última vez Ele cai de rosto no chão.

Evidente se fazia que quase já só arrastavam um cadáver. Era de recear que talvez Ele não  tivesse  sequer  alento  bastante  para  chegar  ao  cimo,  deitar-se  na  Cruz  e  sentir  os cravos  enfiarem-se-Lhe  brutalmente  na  carne  morta.  A todo  custo,  cumpria  que  fosse alçado vivo na Cruz.

O texto sagrado deixa-nos adivinhar que os soldados tiveram que amparar, quase que carregar  a  Vítima  até  em  cima.  Era  o  último  instrumento  de  suplício,  antes  da crucifixão. Vivamente o sentiu Jesus; sentiram-no também os que O cercavam e por isto ainda   mais   o   devem   ter   desprezado,   pois   acham   que   Ele   não   é   corajoso. [Voluntariamente] não tem aquela energia, aquele arrojo que concederá mais tarde aos Seus Mártires.

Vai  ao  suplício  a  tremer,  e  esta  aparência  ou  realidade  de  delíquio  são  tanto  mais humilhantes quanto Ele se disse o Messias, o Filho de Deus, aquele que existia “antes que Abraão fosse...”, o restaurador de Israel, o filho de David! 

Que  amarga  irrisão!  Como  todas  estas  coisas  devem  acudir  ao  pensamento  dos espectadores! ‘Nós esperávamos, dirão os discípulos de Emaús, nós esperávamos nEle: sim, ontem, porém hoje! Que fim lastimável! Que mísero epílogo àquela vida estranha,
semeada toda de milagres e prodígios! Se era assim que Ele devia acabar, era oportuno erigir-se  em  fundador  de  uma  religião  nova?  Que  crédito  conferir  a  um  homem  que, depois de ter avançado tanto, morre frouxamente e sem brilho?’

Este  caráter da Paixão  é  inteiramente  divino  e reservado.  Só  o comunica  Jesus a  mui raros e mui fiéis amigos, aos que já não sabem o que seja a glória deles, mas só vêem a de Deus.

A humilhação do sofrimento, a fraqueza, o abatimento dos últimos instantes, não ser e não parecer vigoroso no suplício a fim de que os homens, tão desejosos de honras, nos desprezem um pouco mais ainda! Em verdade, em verdade, que aquele só a quem tal seja dado o compreenda se puder, e o ame ardentemente.

Qui potest capere, capiat.

Se o cálice me for posto aos lábios, ó Jesus, e os lábios me tremerem; se essa Cruz me for posta nos braços e os meus braços penderem; se essa amargura me for  vertida no coração e o coração a deixar vasar como dum vaso partido e sem preço, eu bendirei, no segredo desse coração desprezado de todos, a adorável bondade que terá me feito unir-me ainda mais a Vós na ríspida subida do Calvário. Assim seja.

 XIV - OS CRAVOS

Avizinhamo-nos  do  desfecho.  Sustentado  e  quase  carregado  pelos  soldados,  Jesus galgou a montanha; antes de chegar ao cimo, um pouco à esquerda, fazem-no parar.


Enquanto os algozes vão fazer os últimos preparos, estender a Cruz, preparar as cunhas para  fixá-la  no  buraco  cavado  no  próprio  rochedo,  aguçar  os  cravos  e  dispor  tudo  mais, cumpre assegurar-se da Pessoa de Jesus. Descem-nO a uma espécie de fossa, no fundo da qual há uma grande pedra, que se mostra ainda hoje, munida de dois orifícios por onde se passam as pernas do condenado. Amarram-nas por debaixo, a fim de tornar impossível toda fuga.

No estado em que se acha a Vítima, a precaução é inútil, mas persiste cruel. Do fundo dessa  prisão  improvisada,  pode  Jesus  ouvir  em  cima,  por  sobre  Sua  cabeça,  os preparativos, os gritos dos soldados, as blasfêmias dos dois salteadores que devem ser crucificados com Ele, e todo aquele vai-e-vem de gente que quer ver terminado aquilo o mais  depressa  possível.  Em  baixo  é  o  redemoinho  tumultuoso  da  multidão.  Como  cimo do Calvário é pouco largo, o povo ficou no sopé.

Todo o vale regurgita, pois, de gente. O Calvário está rodeado daquela plebe que espera, que  acha  que  espera  demais,  que  chacoteia  e  se  diverte.  Circulam  por  entre  ela  os sacerdotes,  fazendo  de  atarefados  e  de  importantes.  Vários  dos  principais  vão  até  ao cimo, como que para inspecionar de mais perto o trabalho dos criados: outros espiam Jesus no fundo da fossa, e, se levanta a cabeça pesada, pode o Mestre ver por cima dEle aquelas caras escarninhas e rancorosas. 

A  meio  caminho  pouco  mais  ou  menos  do  Calvário  e  do  túmulo  novo  de  José  de Arimatéia, num recanto mais solitário do valado e frente para o Gólgota, há um grupo doloroso de mulheres de véu e que choram. No meio há uma mais nobre, mais aflita, que parece cercada das afeições e das simpatias respeitosas de todas: é Maria, a Mãe do Condenado. Stabant autem omnes noti ejus a longe. Erant autem ibi mulieres multae a longe (Lc 23, 40; Mat 23, 49).

Essas mulheres não podem aproximar-se ainda nem de Jesus nem do alto do Calvário; a multidão  é  demasiado  compacta.  Uma  parte  dessa  multidão,  a  mais  ávida  e  mais rancorosa, queda imóvel como num espetáculo vivamente esperado. Et stabat populus
spectans (Lc.  23,  35).  A  outra  parte  é  móvel:  praetereuntes,  transeuntes,  curiosos, passeantes; como o Calvário fica perto da cidade, aflui-se de todos os lados: dá-se volta ao   outeiro,   quer-se   ver   principalmente   o   momento   em   que   será   crucificado   Condenado,  para  Lhe  ouvir  os  gemidos,  para  surpreender-Lhe  a  dor;  e,  quando  Ele
surgir sangrento e lívido, volvendo as costas a Jerusalém, com os dois braços estendidos no cimo do Calvário, será uma exclamação, um grito de alegria satisfeita e de paixão saciada. 

Esse momento veio. De baixo a multidão viu os soldados se dirigirem para a fossa onde está acorrentado Jesus. 

Aparece Ele, cambaleante: a silhueta branca, pois Ele tem ainda a Sua veste comprida, desenha-se-Lhe  trêmula  no  cimo  do  Calvário:  faz-se  subitâneo  silêncio  em  toda  multidão. Tiram-Lhe a veste branca, arrancam-Lhe a túnica vermelha: e então o corpo tiritante,  estriado  de  Sangue,  cavado  de  golpes,  aparece  nu  aos  olhos  de  todos. 

Ó Jesus, nenhuma humilhação Vos foi poupada: operuit confusio faciem meam (Sl 48, 8), o rubor da vergonha cobriu-me o Rosto, dizeis antecipadamente pelo Vosso Profeta, e é o único véu que se permite irrisoriamente à Vossa Santa Humanidade.

Está  tudo  pronto:  a  Cruz  jaz  estendida  à  direita  da  cova;  empurram  para  ela  a  Jesus,
deitam-nO nela brutalmente, em cima do Calvário há unicamente os algozes; de baixo seguem-se,  portanto  com  cruel  atenção  todos  os  movimentos  dos  soldados  e  dos
criados.  Porque  já  não  se  vê  Jesus,  mas  advinha-se  facilmente,  naquele  grupo  de verdugos agachados, que a cruel empreitada vai começar. De feito, um braço se eleva e a primeira martelada reboa no silêncio. 

O  primeiro  cravo  se  enterra  numa  das  mãos  do  Salvador;  as  marteladas  vão  se sucedendo  bruscas  e  aceleradas.  O  ruído  surdo  ouvir-se-ia  das  fortificações,  tal  silêncio que faz a multidão para as escutar e contar. Aproximemo-nos, vejamos também nós, contemos. 

Tudo se faz sem consideração, brutalmente, e o próprio martelo parece tomado de ódio e de furor, tanto bate a golpes redobrados; um soldado segura a extremidade das mãos estiradas,  para  que  o  cravo  se  lhes  enterre  melhor,  sem  ser  estorvado  pelos  dedos forçosamente contraídos. O que bate os cravos quase se senta no ombro do paciente; os outros firmam o corpo que a dor faz estremecer.

E a Face Divina perdida nos cabelos, banhada toda em suor e em Sangue, pende para trás  espantosa,  de  uma  lividez  marmórea.  Quando  a  primeira  mão  é  assim  cravada, passa-se à segunda. Depois vem a  vez dos pés. Aqui a operação é mais longa e mais cruel.  

Os cravos pontiagudos, quadrangulares, rasgam a Chaga com as quatro arestas. Quando já penetraram totalmente, há que recurvar-lhes a ponta por detrás, e isto não se faz sem novos abalos e cruéis pressões.

O Corpo é assim fixado, esticado em excesso; porque se houve de prever o alargamento das  feridas;  os  ombros  se  desconjuntaram,  os  ossos  apartados  podem-se  contar todos: dinumeraverunt  omnia  ossa  mea (Sl  21,  18);  o  peito  está  cruelmente  saliente, tudo o que fica abaixo está tão retirado para trás que parece colado ao madeiro da Cruz; o Sangue escorre em rios e um frêmito doloroso faz palpitar da cabeça aos pés aquela Carne lívida.

A  Cruz  é  então  arrastada  até  à  cova  do  rochedo.  Erguem-na  por  detrás  amparando-a com escadas, depois ela cai pesadamente no fundo, em meio aos gritos da multidão, aos gemidos angustiados da Vítima e debaixo de uma chuva de Sangue que essa última e brutal sacudida faz cair abundante em toda a volta. Jesus, assim violentamente esticado, está doravante imóvel no horrível sofrimento.

XV- A IMOBILIDADE E A ESCURIDÃO

Havia que chegar a isto. Todo o fatal progresso da Paixão do Cristo tende a privá-lO gradualmente da Sua liberdade, para Lhe comprar a cada privação um sofrimento novo, até  que  o  derradeiro  esforço  desse  trabalho  superior  da  Justiça  de  Deus  consiga imobilizá-lO na dor.

Primeiro  os  laços,  depois  a  entrega  entre  as  mãos  de  soldados  debochados,  depois  a privação da vista no corpo da guarda, o amortecimento das forças e a exaustão que a marcha  acarreta  e,  finalmente...  os  cravos  que  O  fincam  na  Cruz:  é  a  tremenda imobilidade!  A  simples  reflexão  pode  nos  dar  uma  idéia  deste  último  instrumento  de suplício. Estar preso, fixado por quatro Chagas a se alargarem de minuto em minuto a um sofrimento a que não se pode escapar!

O  menor  movimento  não  faria,  aliás,  senão  aumentar  esse  sofrimento.  E  três  horas durou  esse  tormento  assombroso!  O  doente  preso  de  dor  revolve-se  penosamente  no leito; tem necessidade desse movimento que, se não lho suprime, muda-lhe ao menos o sofrimento: descansa de um pelo outro. Na Cruz, porém, nenhum descanso a esperar a não ser numa morte que só há de vir lentamente. Mais uma vez: era preciso. O homem, pecando,  abusa  da  sua  liberdade:  o  castigo  correspondente  à  sua  culpa  devia  ser  privação dessa liberdade. O Filho do Homem, que expia por toda a humanidade, será,
pois,  conseqüentemente  com  o  Seu  papel  de  Vítima  expiatória,  privado  de  toda  a liberdade.

Está feito, e é sobretudo nesse exato momento que Ele salva os pecadores. Gritam-Lhe galhofando:  “Desce  agora,  se  podes”.    não  pode.  Está  cravado.  As  almas  que  se
queixam de estar presas à mesma cruz, pesada, esmagadora, sem esperança de a poder largar neste mundo, devem vir ao pé desta Cruz de Jesus.

Eu venho, meu Deus, e ante a Vossa imóvel atitude, ante esses cravos que Vos fincam ao dever sangrento da Redenção, eu nem sequer em desejo procurarei despregar-me de uma cruz que em alguns pontos quisestes tornar semelhante à Vossa.

Quando os algozes levantaram assim ao alto, como um troféu, a Sua Vítima sangrenta, passaram aos dois ladrões. Não tardou que se completasse o espetáculo: as três cruzes se alçaram  no  cume  do  Gólgota.  Nesse  momento  o  campo  foi  deixado  livre  à  multidão. Houve um ímpeto em direção ao Cristo pendurado no meio. Si exaltatus fuero, omnia traham ad meipsum. “Quando eu for levantado, atrairei tudo a Mim” (Jo 12, 32). Por
enquanto o ímpeto é de ódio: amanhã – que digo? – daí há pouco, transformar-se-á num ímpeto de amor cujas vastas ondas virão até o fim dos tempos bater naquele rochedo e
naquela Cruz divina.

Podemos  supor  os  soldados  a  conterem  com  dificuldade  a  populaça  que  se  atira  ao espetáculo  daqueles  três  supliciados.  Podemos  crer  também  que  o  grupo  das  santas
mulheres se tenha deixado de bom grado arrastar pela corrente, pois eis que elas estão mais  perto  da  montanha.  O  Cristo,  a  Quem  o  Sangue  tolhe  a  vista,  vislumbra-as  ao longe.  Mas  esta  visão,  que  O  teria  aliviado,  é  ofuscada  pela  multidão  que  circula sussurrante,  qual  enxame  malfazejo,  em  torno  aos  três  patíbulos. Circumdederunt  me sicut  apes.  Rodearam-me  semelhantes  a  uma  nuvem  de  abelhas  irritadas.  E  todas  as injúrias  que  sobem  até  Ele  crepitam  como  o  fogo  que  arde  através  das  sarças  e  dos espinhos. Exarserunt sicut ignis in spinis (Sl 117, 12).

Há nesse crepitar de ódio uma covardia cruel, dado que a Vítima está imobilizada e que a morte que a vai colher bem devia bastar a cevar todas as cóleras.  Aqueles   que   são   realmente   crucificados   com   Jesus   têm   que   passar   por   essas contradições das línguas; o mundo não cessará de falar sobre o que vê e de julgar o que não conhece; é por isto que ele é fundamentalmente injusto. Os eleitos se consolam no testemunho  único  da  sua  consciência  que  será a base do  último julgamento  de  Deus. 

Quem,  entretanto  se  sente  bastante  forte  contra  esse  enxame  de  línguas  maldizentes? Senhor,  exclamava  Davi  perseguido  por  seus  inimigos, muta  fiant  labia  dolosa, emudecei  essas  bocas  peçonhentas  e  protegei  os  Vossos  servos  dessas  contradições turbadoras das línguas inimigas, protege nos acontradictione linguarum (Sl. 30, 31).

A minha fraqueza Vos dirige a mesma súplica, ó Jesus; mas, quando eu me acerco da Vossa Cruz, onde como num alvo único cospem todas as bocas as suas blasfêmias, o meu amor susta-me nos lábios o anelo da minha fraqueza e diz-Vos tremendo, porém, suplicando-Vos:

- Tomarei também eu o cálice do meu Senhor, tomá-lo-ei, bebê-lo-ei... Nas Suas Mãos estão as tempestades e as borrascas da minha vida... Tomarei o cálice do meu Senhor, o mesmo, quero nele beber, e invocarei o Seu Nome como o meu melhor sustentáculo.

In manibus tuis sortes meae (Sl. 30, 16).

Calicem salutaris accipiam et nomem Domini invocabo (Sl. 111, 13).

A  partir  do  momento  em  que  a  Cruz  de  Jesus  fôra  erguida,  o  céu  se  havia progressivamente   toldado,   o   sol   parecia   velar   o   seu   disco   luminoso.   Entregue inteiramente  ao  espetáculo  que  aguardava,  a  multidão  não  deve  ter  prestado  grande atenção  a  esse  fenômeno.  A  pouco  e  pouco,  porém,  o  céu  se  enchia  de  sombras crescentes, e logo trevas espessas cobriam o Calvário, os jardins, a cidade de Jerusalém, e, diz-nos o Evangelista, estenderam-se pela terra inteira.

Aquela noite esquisita, caindo assim subitamente e subtraindo à vista a Vítima divina, lançou a inquietação nas filas da multidão. As vozes que blasfemava calaram-se pouco a pouco.  Os  soldados  que  montavam  guarda  aos  supliciados  quase  não  os  viam:
admiraram-se. Além de que aquilo lhes atrapalhava a partida de dados...

Em breve não houve naquele cume desolado mais que sombras a circularem medrosas, falando-se baixo. Foi favorecidas por essas trevas que as santas mulheres se insinuaram até ao pé da Cruz. Ninguém lhes tolheu o passo. Elas subiram ao alto e se conservaram de pé muito perto dos patíbulos; Madalena, Maria de Cléofas, algumas outras mais e, na primeira fila, Maria, a Mãe de Jesus: um só discípulo, João, o predileto.

Jesus, através da noite que O oprime, já os distinguiu. Fita-os longamente, é para Ele um  consolo  supremo,  e ao mesmo  tempo  um como doloroso  instrumento  de suplício, pois é a renovação do encontro de ainda há pouco; pois é também a renovação da ferida que  Lhe  fez  o  abandono  dos  Seus,  visto  que,  dos  Apóstolos,  apenas  João    está, sozinho,  fiel,  ao  pé  da  Cruz.  Fita  e  cala-se.  Este  silêncio  de  Jesus  entre  as  Suas  três primeiras palavras, antes das trevas, e as quatro últimas, antes da morte, durou cerca de três horas. Três horas de silêncio imóvel e de escuridão! É mister sentir esta derradeira angústia, ficar ao pé da Cruz nessa escuridão, escutar esse silêncio e imitá-lo. Porque também, todos os instrumentos de suplício estão esgotados, só resta a morte a esperar. Cada qual veio à sua hora bater e dilacerar aquele Corpo. Sob os Seus golpes sabiamente dirigidos, mais sabiamente ainda renovados, porque no Calvário se acham compendiadas  todas  as  dores  já  experimentadas,  sob  os  seus  golpes  aquele  Corpo divino, esticado no madeiro da Cruz, vai retumbar o hino da dor e também da vitória. 

Mas, ó Senhor Jesus, resta-me penetrar mais dentro ainda no mar doloroso e profundo da  Vossa  Paixão.  Depois do  Vosso  Corpo  sagrado, é  o Vosso  Coração divino que  eu quero ver, triturado, despedaçado, aberto, traspassado de lado a lado.

De joelhos, pois, no cimo do Calvário, ao pé da Vossa Cruz, durante aquelas três horas de silêncio e de escuridão, ouvindo só os surdos gemidos da Vossa oração e da Vossa agonia, ou o ruído abafado e irregular do Sangue que escorre em terra, eu vou tornar a subir  essa  onda  de  Sangue  e  de  dor  que  Vos  trouxe  até  aqui,  para  distinguir  nele, cruelmente  revolvido  por  essas  águas  dolorosas,  o  Vosso  Coração! Esse  Coração  que me amou até querer extinguir-se por mim.

Ó vós todos que passais, parai, pois um momento e vejamos juntos se há sofrimento que se possa comparar ao de Jesus na Cruz!



(Perroy, Pe. Luís. A Subida do Calvário. Editora Vozes)

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