sexta-feira, 3 de abril de 2015

Os Instrumentos de Suplício - Parte IV




X - A CRUZ: A MÃE

Dizem que quando Jesus foi condenado à morte e entregue aos judeus para ser crucificado, elevou-se na araçá tão formidável clamor, que a Virgem Maria, refugiada numa casa da rua principal que seguia o fundo do vale do Tyrópeon, ao pé do Pretório, compreendeu, àquele grito de ódio, que tudo estava terminado: ergueu-se logo e, amparada por mãos amigas saiu à frente da porta para aguardar a passagem do lúgubre cortejo.

Este se formava a toda pressa no interior do corpo de guarda; requeriam-se pelo menos quatro soldados para levar os pregos, os martelos, as cordas, as escadas: um centurião romano deveria presidir à execução; estes cinco homens estavam escalados para a emergência. Não é fora de propósito pensar que vários outros, criados do Pretório ou soldados romanos, tenham pedido e conseguido agregar-se ao cortejo do famoso Rei, ou que outros mesmos lhe tenham sido acrescentados por dever oficial.
Pilatos tinha entregado Jesus aos judeus; no sopé da escada do Pretório, aquela turba sequiosa esperava pela Vítima: na primeira fila os sacerdotes, os escribas, os anciãos, os notáveis do Sinédrio e, provavelmente, a sua tropa de criados e de soldados. Isto fazia uma escolta compacta, cerrada. A cruz que de há muito haviam preparado para Barrabás é trazida: aguarda em pé, sustentada por um homem ao pé da escadaria. Jesus aparece no topo dos vinte e oito degraus, hoje transportados a Roma; desce devagar, regiamente, escoltado por criados e soldados. Tem as mãos atadas.

Nunca monarca algum que descesse para um carro de triunfo manifestou mais altivez, mais magnitude do que deixou transparecer Jesus nessa curta descida que ia ter à cruz. Através das vestes, sob os passos, qual púrpura real e roçagante, marcava-Lhe o Sangue as pegadas e a passagem. Chegado em baixo, é violentamente agarrado pelos algozes: adaptam-Lhe a cruz aos ombros; quer a tenha carregado num só ombro, quer deitada sobre as costas, ocupadas então as duas mãos em suster-lhe os dois braços dela, é sempre certo que o pé da cruz arrastava em terra. A cada passo, portanto, os tropeços do caminho, as pedras, o calçamento, as asperezas imprimiam um solavanco ao pé da cruz, e este solavanco repercutia dolorosamente nos ombros ensangüentados do Mestre.

Aliás, é-Lhe o corpo todo uma ferida só; os milhares de golpes da flagelação, as contusões repetidas das bofetadas, dos socos, das pauladas, não deixaram lugar algum sem pisadura; cada passo, cada movimento, o própria roçar das vestes são outros tantos padecimentos. Mas o sinal é dado: soam os clarins, os clamores avultam, a onda se abala e logo, numa marcha que se quer apressada, lá se vai o pobre Jesus, cedendo ao peso, curvado, dobrado quase, com a cruz a dançar-lhe nas costas a cada passo; o suor, o Sangue, um palor lívido o rosto. A cabeça está por força abaixada, os cabelos caem-Lhe ante a face em longas mechas empapadas de Sangue e suor. É através deste intrincado sangrento que a multidão, ávida desses espetáculos, busca apreender o trabalho dos sofrimentos passados e o da morte que se aproxima.

Tudo se faz com pressa e precipitação nesse último acompanhamento. Os judeus estão pressurosos por acabar com aquilo, ou porque queiram quanto antes ver expirar a sua Vítima, ou porque o grande dia do sábado, que principiará naquela noite, os instigue e anime, ou porque no fundo receiem algum surto de magia no condenado. As ruas de Jerusalém são estreitas, a multidão apaixonada é tumultuosa. Jesus é assim esbarrado, sacudido, o pé da cruz se desvia; todo o corpo do pobre condenado segue essas oscilações e esses contra-golpes.
À saída da grande porta de três vãos por sobre a qual haviam apresentado o Homem, Ecce Homo! a rua desce rapidamente, em ladeira íngreme, para emendar em ângulo reto com a via principal que se estendia ao longo do vale do Tyropeon. A escolta que O acossa, as vaias que O ensurdecem, o impulso dados pelos sacerdotes e anciãos que precedem o cortejo, sobretudo a cruz que O sobrepuja, que O verga e O impele para a frente: tudo isto faz com que a marcha de Jesus seja precipitada, de tal sorte que, chegado ao termo da ladeira, impelido por aquele declive doloroso, Ele cai bruscamente, e a cruz esmaga-O com todo o seu peso.
O Sangue, dizem, escorreu-Lhe da boca e das narinas. Foi preciso certo tempo para reerguer a cruz e Jesus. Este estava tão macilento, tão lívido, que um murmúrio de compaixão prorrompeu num grupo de mulheres que O seguia. Entretanto, sem dó O sobrecarregam de novo.
O cortejo vira à esquerda; a rua é reta, sem acidente, por alguns metros. Com as vestes cobertas de poeira e de Sangue, o Mestre se adianta, mais curvado que nunca. Súbito, à esquerda, à frente de uma porta e amparada por algumas mulheres, – Ele distinguiu Madalena, – avista Ele Sua Mãe. Ela estende instintivamente os braços: esse gesto da Mãe diante de quem tudo desapareceu e que só vê o Filho.

Ele soergueu um pouco a cabeça rorejante de Sangue e olhou-A. O cortejo passou, impelido numa onda de empurrões e pó. Maria continuava a estender os braços, mas a figura do Filho já desaparecera no turbilhão humano que o rodeava. Que olhar! Que silêncio! Há sofrimentos que não se podem exprimir; desnaturá-los-ia a palavra; tudo se diz com um olhar e em silêncio. É nessas horas que as almas comunicam entre si diretamente, através do invólucro da carne que sofre.
A vida espiritual tem estados semelhantes. Jesus passa: a alma estende os braços e quer segurá-lO... Ele já passou. Mas olhou-a. E, como Maria, a alma se põe no encalço de Jesus: aquele olhar fascinou-a, ela irá até o Calvário, espezinhada, padecente por todos os poros, a sangrar, porém irá, porém se manterá lívida, de pé, junto à cruz. Assim Jesus manifesta o Seu poder divino até no meio das ignomínias e das inferioridades padecidas em Sua Paixão.

Uma palavra pôs por terra os algozes que O vinham prender no horto.
Um olhar traspassou Pedro e transtornou-lhe a alma: Et conversus Jesus respexit Petrum.
Um outro olhar cai sobre Sua Mãe: Ela segue arrastada pelo Seu Amor que vai adiante.

Dentro em pouco ouviremos uma palavra de Jesus dar o Céu ao bom ladrão. É mister quebrar a casca sangrenta da Paixão para lhe achar o fruto da divindade. Está lá, ainda que oculta. Por assim dizer, desde que subiu ao Calvário Jesus só age e só opera nas almas através do sofrimento que as oprime. Não há serem salvos e predestinados senão os que são conformes a Jesus Cristo, e a Jesus Cristo Crucificado (Rm 8, 29).
Ó minha alma, inveja, pois esta semelhança, rejubila-te se alguns traços sangrentos daquela face lívida, desonrada, desprezada, se imprimirem em ti. Olha, a multidão grita, os braços se agitam e empurram Jesus, a cruz Lhe pesa, os amigos são poucos... onde estão mesmo? A estrada se faz ascendente e desolada até à porta judiciária por onde se sai da cidade. Há na tua vida algo deste sombrio cenário? Então estás na estrada real. Praeit Dominus: o Senhor vai na frente; é lá em cima, no Calvário, que Ele dá o paraíso.
A lembrança do doloroso encontro de Jesus e Maria permaneceu cara à piedade dos fiéis amantes do Calvário. Mostra-se ainda hoje, em Jerusalém, no lugar presumido desse encontro, numa cripta sombria, sobre um mosaico antiqüíssimo, a dupla efígie de dois pés, dois pés de mulher: estão desenhados sobre o fundo escuro do mosaico, em pedras brancas e brilhantes: era ali que se postava Maria quando Jesus passou. Gostam as pessoas de ver esse lugar e a posição dos pés: estão voltados obliquamente para o lado do pretório, frente para Jesus que dali vinha. Minúcia alguma é indiferente quando se trata de uma Mãe – e que Mãe! – a aguardar, na angústia e na desolação preditas pelo profeta Simeão, a passagem do Filho que caminha para a morte.

XI- A CRUZ: SIMÃO DE CIRENE


A partir do momento em que Jesus se encontra com Sua Mãe, faz-se-Lhe no Coração um rasgão tão profundo, que as águas acerbas da Paixão nEle se precipitam e o inundam de todas as partes. Inundaverunt aquae super caput meum; dixi: perii. Invocavi nomen tuum, Domine, de lacu novíssimo!”(Lam 3, 54-55).
Sim, a ferida que Lhe fez aquela vista de Sua Mãe, aquela impossibilidade de se aproximar dEla: é bem esse abismo novo, último, sem fundo, inexplorado, de lacuna novíssimo, em que o Filho do Homem se debate, com a Alma agitada, transtornada, retomando a Sua marcha e a Sua Cruz rastejante pela via do Tyropeon. É uma dessas etapas que, uma vez transpostas, nos rechaçam mais que nunca para o irreparável e para o absoluto das últimas desgraças. Assim, a vista do ente caro por excelência foi o instrumento de suplício mais penetrante da Paixão: só os que experimentaram a picada de uma dor semelhante é que poderão compreender esta ferida nova.
O Calvário avizinhou-se pois: a subida vai realmente começar para Jesus a partir do ponto em que Ele se encontrou com Sua Mãe. Agora só a verá Ele de longe, quando O crucificarem, e de perto, ao pé da Cruz, para se separar dEla.
À direita da via do Tyropeon, alguns passos mais além do lugar, quase no ponto a tradição situa a casa do mau rico, uma viela sobe, estreita, íngreme e pedregosa, até a saída da cidade pela porta Judiciária.
Os corpos dos animais cujo sangue era derramado em sacrifício pelos pecados do povo eram levados para fora da muralha. É pela mesma razão, diz-nos São Paulo, que Jesus, qual cordeiro languido mas sem queixa, caminha para a porta, para fora das muralhas. Saiamos também nós após Ele, para fora das fortificações, carregando a cruz infamante aos olhos dos homens.
Exeamos igitur ad eum extra castra, improperium ejus portantes (Hebr. 13, 14). Três acontecimentos assinalam esta suprema subida do Calvário: o encontro com Simão de Cirene, o encontro com Verônica, e a parada de Jesus por alguns instantes diante do grupo de mulheres que choram e se lamentam.
No momento de enveredar pela viela da direita, que sobe e se estende para o alto por entre as sombrias muralhas das casas, Jesus parece tão desfalecido que os que O cercam se perguntam se Ele poderá chegar ao termo. No cortejo ninguém O quer ajudar. Carregar a Cruz a um condenado é uma vergonha: Improperium ejus portantes. “Procurei alguém em torno de Mim para me prestar socorro, e não achei”.

Os soldados não vieram para essa tarefa; a multidão se recusa; e durante esse tempo os diálogos apressados e tumultuosos que se travam a respeito, Jesus fraqueia e cada vez mais. Quando carregarmos a Cruz, a verdadeira, estaremos quase a sós. Os nossos amigos, os melhores, estranharão sermos tão pouco vigorosos, não nos perdoarão parecermos fracos e termos necessidade de socorro; as nossas lentidões serão covardias, as agonias inépcias ou sensibilidades exaltadas. O mundo quer ostentação até na morte daqueles que ele leva ao suplício. Ó Jesus, como a Vossa fraqueza me conforta! Caniço recurvado e já calcado aos pés, é a Vós que eu me abordôo, como a uma vara e a um firme bordão: Virga tua et baculus tuus, ipsa me consolata sunt” (Sl. 22, 4).

Foi nesse momento crítico que um homem que regressava do campo e que carregava sem dúvida o seu cesto e os seus instrumentos de trabalho, descia da porta Judiciária até a via do Tyropeon. Topou com o cortejo lúgubre. À vista daquele campônio, pelos modos do ofício – homem recrutável e bom para qualquer requisição – os soldados param: quase se faz mister a violência, o rústico não quer, tem seus afazeres; parlamenta-se, “será só para a subida; até o Calvário, no mínimo até o alto da rua tortuosa...” Angariaverunt. Em suma, forçam-no, compelem-no.

Jesus tudo viu, tudo ouviu, regateiam-Lhe aquele socorro. Recusam-se a carregar-Lhe o fardo, improperium, porque é uma vergonha.

Enquanto isso o Cristo larga a Sua Cruz; vai adiante agora, exausto, de braços caídos, sempre na frente, e atrás Simão Cirineu arrasta reclamando a Cruz de Jesus. Existem ainda Simões Cirineus. Eu sou um. Eu carrego, arrasto constrangido a Cruz de Jesus. Queixo-me, reclamo, quase que é preciso a violência das circunstâncias ou o temor de um mal maior para me fazer suportar o jugo. E Jesus vai na minha frente, não se volta, caminha. “Aquele que não carrega a sua cruz todos os dias, após mim, não é digno de ser meu discípulo”.

Deste modo, faz-se mister uma cruz; uma todos os dias, uma que nos repugne, uma que nos humilhe aos olhos do cortejo, na subida do Calvário. Ó luz sobre o meu sofrimento! Ó alegria nas minhas humilhações! Serenidade nas minhas quedas! Assim a minha repugnância é a marca autêntica de que eu tenho a verdadeira cruz, e quanto mais eu a arrastar com dor, tanto mais será a do Cristo Jesus que vai adiante. “Ó boa Cruz, exclamava extático Santo André [em seu martírio], Cruz longo tempo desejada e procurada!”

Esta é a Cruz privilegiada, a Cruz benigna, é a Cruz dos Mártires, à qual por grande bondade tira Deus a rude e oprobriosa asperidade: se assim m’a dais Vós, Jesus, obrigado. Porém, se me dais a de Simão Cirineu, a Vossa, a Cruz humilhante, que nos rebaixa, que nos pesa e que arrastamos forçados, quase a nos queixarmos... Ó vera Crux! Ó verdadeira Cruz do Calvário! Obrigado cem vezes mais ainda!...

ORAÇÃO DE UMA ALMA QUE ARRASTA A SUA CRUZ:

Vontade de meu Deus, quão me sois amarga hoje!
A cruz que eu mais temia é a que tenho de carregar: a cruz sem humilhação é uma cruz
incompleta.
Vinde completar a minha, ó meu Deus, e nada faltará para me crucificar e imolar.
Pode a morte destruir-me mais ainda, e a morte valera talvez mais para mim do que a
vida: mas Vós quereis que eu viva para sofrer e também para Vos amar; eu Vos amo,
pois, ó meu Deus, gemendo, porém submetendo-me. Dentro de alguns anos (o tempo é curto), eu já aqui não estarei, baixando os olhos sob
as vistas desprezadoras e sob as palavras mordazes: estarei sob os olhares dos Anjos e
dos Santos, bendizendo os momentos dolorosos que terão me valido a alegria do
Paraíso.
Ó, sim, meu Deus, por tudo sede bendito e agradecido eternamente. Amém.

XII. A CRUZ: VERÔNICA

A rua que sobe à porta Judiciária é estreita, íngreme, uma espécie de escada de degraus e declives escorregadios. Em certos pontos, muito era (a julgar pelo que ela é hoje) se se podiam manter três ou quatro pessoas de frente. À esquerda, na soleira da porta, estacionava uma mulher, ansiosa por ver Jesus. Avistou-O no meio dos soldados: solta um grito de angústia; não mais é Ele. Aquela Face tão meiga que ela admirara outrora, fascinada como tantos outros pelo brilho que Lhe irradiava em torno, já não passa de uma máscara terrosa, onde os traços se afundam numa camada mista de Sangue e suor; estrias de pó cavam-se-Lhe no rosto; cusparadas escorrem e se embaraçam nos cabelos e pelo meio da barba; e depois, há naquele ser informe tal expressão de languidez, de vergonha, de delíquio, a fisionomia a um tempo apavorada do homem que vai morrer e resignada do que sabe que não pode escapar à morte!

Ela não resiste mais, despega o véu que lhe cobre a cabeça, e antes mesmo que a sua idéia tenha podido defender-se da menor objeção, atira-se para a frente. Estende a Jesus o véu, ela própria quase lho aplica ao rosto. O bom Mestre, que tem livres ambas as mãos, pois já não sopesam a Cruz, enxuga por alguns instantes a Face profanada. Mas já os soldados empurraram a mulher: repelem-na violentamente para a soleira da sua porta entreaberta, a escolta brada, Simão Cirineu resmunga. Esse minuto de atraso e de alívio é pago caro: afligem mais duramente a Jesus. Se assim aproveita Ele – pensam – o repouso que Lhe concedem aliviando-O do peso, é muito simples impedir as sensibilidades de que é objeto: e brutalmente tornam a pôr nos ombros do condenado a
Sua pesada Cruz. Jesus consente, sem dizer palavra.

A mulher piedosa entra toda trêmula para casa. Simão de Cirene retoma a seu cesto e a sua ferramenta e o seu caminho para a cidade. Sente-se aliviado, só vendo no incidente a feliz circunstância que o desvencilhou do peso incômodo e vergonhoso da Cruz. Não compreendeu a honra imensa que lhe foi feita. Compreendê-lo-á mais tarde. Mais tarde!... Depois!... Com o tempo!... Com a reflexão!... Há coisas que só se compreendem na volta. Tais as nossas cruzes e as nossas provações. Oh! Como nos sentiremos ufanos, santamente ufanos, mais tarde, de havermos carregado a Cruz rastejante do Mestre que há de julgar o mundo inteiro à sombra gigantesca e radiosa dessa Cruz! Como nos sentiremos felizes de juntar-lhe uma parcela da nossa, para torná-la maior ainda! Com que regozijo apresentaremos ao Filho do Homem os ombros machucados por essa Cruz, fazendo como Ele que ostentará aos olhos de todos os pés e mãos traspassadas!

Simão Cirineu entrou no drama da Paixão, nele figura com o seu nome, com o de seus dois filhos ainda por cima, porque carregou por alguns instantes a Cruz... resmungando! Se Deus dá semelhante glória e tal segurança de salvação a quem O segue constrangido e recalcitrante, que não fará por aquele que abraçar com amor as cruzes quotidianas que lhe forem oferecidas!

O Crux, ave, spes unica! Ave, ó Cruz, única esperança!

Cruz santa, cruz bendita, minha cruz de cada dia, és a minha esperança de salvação e predestinação!

E nesse entretanto a mulher piedosa, Verônica, recolheu-se à sua morada, pousou o véu todo manchado em cima de uma mesa, mal se atreve a olhá-lo: ouve ainda passar tumultuosa à porta a multidão compacta que vocifera, subindo, os seus brados de morte. Então não se pode conter no lugar, sai de novo, mistura-se ao sinistro cortejo. Aquele semblante do Senhor ficou-lhe nos olhos, no coração; quer vê-lO ainda, como Pedro na noite precedente, ao menos para entrever ainda uma vez aquela Face que ela enxugou. Assim, a palidez e o horror daquele semblante fascinam-na agora tanto quanto o faziam dantes a doçura e o brilho do Filho do Homem.

Só a Deus pertence o atrair-nos pelos Seus opróbrios, bem mais ainda, o induzir-nos a reproduzirmos em nós os traços do Seu semblante desfigurado, quando menos a nos alegrarmos se essa divina semelhança nos cabe em partilha. E efetivamente essa Face do Cristo, dolorosa, Face de condenado, Face lívida e sangrenta, Face incessantemente ultrajada e enxugada, é a verdadeira face dos eleitos.
Quantos semblantes avançam assim radiantes de esquecimentos e de desprezos! Sejam quais forem as nossas culpas, quaisquer que tenham sido as nossas quedas, se tivermos esse semblante Jesus reconhecerá a Sua semelhança. Já estávamos salvos pela dor e pelo desdouro da Sua Face; salvos seremos ainda pelas contusões de que cobrirmos a nossa. O mundo é louco, loucos são os homens; verdadeiro sábio é aquele que padece os mesmos padecimentos que o Cristo. Espera, ó pobre eleito chasqueado e escarnecido, o fulgor do teu rosto há de cegar mais tarde aos que te cospem à face.

Ibant gaudentes, quoniam digni habiti sunt... contumeliam pati (At. 5, 41).

É o caminhar vagaroso, nobre e triunfante de todos os Mártires: eles vão felizes, porque são oprimidos e desonrados por amor do Cristo. O mundo está cheio de Mártires! diz São Gregório Magno. Fazem-nos os homens, falos ainda mais o demônio. Todos quantos, por qualquer tentação, padecem violência no coração, no pensamento, na memória, no corpo e na alma: Mártires do Cristo, semblantes de eleitos!

No local do encontro de Jesus com Verônica, desce-se a uma espécie de cripta, cavada e construída no lugar mesmo onde se abria a casa da piedosa mulher. Ali, na sombra, que rasgam de onde em onde alguns clarões de círios e lâmpadas, ergue-se a um canto um grupo grosseiramente esculpido. O Cristo com a Sua veste vermelha, com a Cruz pesada ao ombro, e em frente Verônica. Todos os fiéis se aproximam do grupo de joelhos: eu ali vi mulheres cobrirem de beijos os braços, as mãos, a Cruz do Cristo. Outras tomavam da coroa de espinhos e punham-na na própria cabeça ou na dos filhos.

Homem algum suscitou jamais através dos séculos semelhante entusiasmo. Que estátua a gente ainda beija após dois mil anos com tanto amor? Só esse é Deus, esse a quem se beijam assim as Chagas, a Coroa de Espinhos, os cravos e o lado perfurado.



(Perroy, Pe. Luís. A Subida do Calvário. Editora Vozes, 1958)

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