VII- OS FLAGELOS
Do começo da vida até ao
momento da morte, Jesus teve sempre diante dos olhos a Sua Paixão sangrenta. Qual um
artista que traz incessantemente consigo, numa gestação dolorosa, o ideal de que
fará a sua obra prima.
Para Jesus, este grande
drama da Paixão tem cinco atos principais: Ele os enumera, pormenoriza-os e
sobre eles freqüentemente comenta na intimidade da sua conversação com os Apóstolos. “O Filho
do Homem, diz mais de uma vez aflitivamente, será traído (e ai daquele que O trair!):
em conseqüência dessa traição será entregue aos príncipes dos sacerdotes e aos anciãos,
que por sua vez O entregarão aos gentios”. E aí está o primeiro ato. Depois
será escarnecido, posto a ridículo. Et illudent ei. Ludibria-lO-ão, divertir-se-ão
à Sua custa cinicamente. E nesta palavra, como num espelho profundo onde se
refletissem cenas distantes, Jesus vê se desenrolarem todos os ultrajes do
corpo da guarda, do Pretório, do palácio de Herodes, até a sinistra irrisão da
coroa e do título real afixado à cruz: é o segundo ato. O terceiro cifra-se
numa palavra: Et conspuent eum: cuspir-Lhe-ão em cima. É um traço que O
atormenta antecipadamente, frisa-O Ele com dolorosa precisão. Et flagellabunt:
será flagelado, açoitado como um escravo ou um animal malfazejo: é o quarto
ato. Após todas essas cenas, todas essas orgias de sangue, o quinto ato termina
no Calvário. Assim, como em cruel escorço, eis toda a Paixão do Cristo, tal
qual O preocupa e O angustia de antemão.
A traição. As zombarias.
Os escarros. Os flagelos. A cruz.
Tais são os cimos que Ele
tem de galgar em menos de dezoito horas. Que profundezas de humilhações
ser-Lhe-á forçoso atravessar para atingi-los! Flagellabunt eum! A flagelação
parece ser, à luz da reflexão, uma cruel inutilidade: porque essa tortura suplementar
a quem vai padecer a morte? A flagelação pode quando muito compreender-se como
um castigo destinado a punir e a escarmentar. Mas, para um condenado, não passa
isso de um ato de selvageria. Aturou-o Jesus. Tão bem o haviam compreendido os
Judeus que, na conformidade da sua lei, ratificada por Deus, tinham que limitar
no número dos golpes, trinta e nove, e o lugar onde se deviam aplicar esses
golpes estava designado: as espáduas e o peito do réu. Jesus não teve o
benefício da Sua lei nacional. Estava entregue aos gentios: ora, os gentios,
mais bárbaros, mais cínicos, mais próximos dos baixos instintos, a despeito da
sua civilização, não entendiam essas reservas no modo do castigo.
Ó Jesus! Fostes pois
inteiramente despido e atado assim a uma coluna, com as mãos presas pela frente
a uma argola, e o Vosso corpo se dobrava dolorosamente em dois! Quanto tempo
durou esse horrível suplício? Qual foi o número dos golpes? Sabemos que eram
gentios que batiam, que nenhuma lei limitava os golpes; – que eles eram
estimulados pelos judeus; – que o homem entregue perdera toda reputação; – que já
lhes era entregue em estado deplorável, coberto de poeira e de escarros, como
um louco indigno de compaixão, um sedutor, um mágico; – que Pilatos, na sua
cruel política, pedira um castigo de preferência severo; – que eles, os
gentios, não queriam ficar atrás relativamente ao que fôra feito na noite
precedente pela guarda de Caifás; – que, finalmente, eram soldados grosseiros,
ávidos de espetáculos sangrentos.
Sabemos também que não se
utilizavam varas para os estrangeiros e os escravos, mas sim flagelos engrossados
de nós ou eriçados de pontas. É provável portanto que aqueles verdugos não se
tenham contentado com bater só no lado de trás do corpo, porém que, quando a
sua Vítima ficou ensangüentada desse lado, a tenham cruelmente virado e sulcado
de golpes, da cabeça aos pés o Divino Cordeiro a sangrar e a gemer sob os
flagelos. Supra dorsum meum fabricaverunt peccatores. Lavraram-me as costas todas.
Prolongaverunt iniquitatem suam. E prolongaram a sua cruel prática (cf. Sl 128,
3).
Aí estão o lugar e a
duração já indicados. A planta pedis usque ad verticem, non est in eo sanitas,
nem um só lugar sem laceração, da base ao vértice. Vulnus et livor et plaga
tumens. São só feridas, rasgos lívidos, chaga túmida (cf. Is 1, 6). Como
designar melhor os efeitos de uma longa e cruel flagelação? Nenhum dos suplícios
suportados pelo Filho do Homem na Sua Paixão podia produzir efeitos semelhantes.
E sob o dedo do profeta se remata a sinistra pintura: “Já não tinha forma,
nenhuma beleza, o rosto está como suprimido, encolhido, aniquilado por aquela
horrível dor; flagelado, açoitado como o último dos homens, assemelha-se o Seu
corpo ao de um leproso; exangue, parece um galho mirrado que sai de uma terra
seca. Podem-se-Lhe contar os ossos, postos a nu. Faz mal à vista, a gente desvia
a cabeça, é um homem açoitado por Deus: açoitado, que digo? Ele está é triturado”
(Isaías 53).
Estes pormenores não convêm
senão à flagelação. Por que a quis Deus tão longa, tão cruel, tão especialmente
horrível? Por que essa pintura do Profeta tão pungente, tão realista? Por que
de per si constitui ela um ato do drama lúgubre? Por que acrescentou Ele que de
antemão ela faz experimentar ao Filho do Homem um arrepio involuntário? Os que
conhecem o terrível mistério da depravação humana e as perversões de uma carne
de que Deus queria fazer um invólucro radioso da alma pura, talvez compreendam os
horrores da expiação divina.
Em duas circunstâncias
memoráveis Deus alçou-se contra a carne culpada: no dilúvio, que cobriu o mundo
corrompido, e em Sodoma e Gomorra, que inflamaram-se numa noite, quais
sinistros archotes. A mesma corrupção existe hoje em dia: se não tivéssemos a
onda de Sangue Divino que correu na coluna, o mundo subsistiria ainda?
VIII - A COROA DE ESPINHOS
Jesus emite várias
afirmações no decurso da Sua Paixão. Duas entre outras são nitidamente
formuladas de modo que não deixam lugar a dúvida alguma. Ao Sumo Sacerdote que
o intima a de clarar se é o Filho de Deus, o Cristo bendito, o Messias
esperado: Vos dicitis, quia ego sum. Dizeis bem, sim, Eu o sou. A Pilatos que
Lhe pergunta visivelmente perturbado: És então verdadeiramente Rei? Responde
Ele: Tu dicis, quia rex sum ego. Sim, dizes bem, Eu sou Rei.
Sim, Ele é Deus!
Sim, Ele é Rei!
Morrerá por estas duas
verdades!
Tão bem se havia
apreendido o sentido dessa dupla afirmação, que é precisamente esse duplo
caráter de Deus e de Rei que é feito objeto de todas as derisões e zombarias no
drama da Paixão. Efetivamente, quer essas zombarias venham do povo: Vamos! Se é
o Filho de Deus que desça da cruz!; quer venham dos sacerdotes: Vamos! Tu que
destróis o Templo para levantar
outro em três dias!; quer caiam dos lábios de Herodes que o reveste da túnica
branca, ou dos soldados: Salve, rei dos judeus!...; essas zombaria tendem todas
a ridicularizar o Deus e o Rei.
O Deus, em duas das Suas
mais altas prerrogativas: conhecer o futuro e escapar à morte: Cristo,
profetiza quem te bateu! Salvou os outros, não se pode salvar a si. O Rei, na
coroa irrisória que Lhe enterram na cabeça, e no próprio título que apõem ao topo
da cruz. Quem poderia ter dado àqueles soldados estrangeiros a cruel idéia da
coroação, a não ser aquela dupla corrente que agitava todos os espíritos no
momento da Paixão? Ele se diz Filho de Deus, pois havemos de vê-lo. Acaba Ele
de declarar a Pilatos que é Rei... Acudi todos, ó amigos; nós vamos fazer a
cerimônia da coroação. E toda a coorte é convocada para assistir; enfileiram-se
em torno da Vítima. Acaba esta de sair desfalecente da flagelação; mal teve
tempo de vestir a túnica. O Sangue das feridas permeia-Lhe as roupas. Ele chega
curvado ao máximo, tremendo, pálido e ensangüentado, como o vindimador que
espremeu sozinho o lagar.
Despem-nO e fazem-nO
sentar no meio do pretório. Havia no corpo da guarda um frangalho de clâmide
púrpura. A clâmide era antes de tudo um manto militar; quando de púrpura, era uma
vestimenta real. Assim, daquele homem caído, desfeito, sem aparência humana,
fazem, burlescamente, um rei de comédia. Como Lhe colocaram aquela clâmide nos
ombros? Que é que restava daquele trapo de púrpura? Qual era a postura
humilhada de Jesus sob aquele ridículo manto? Ignoramos estes pormenores, mas
certamente tudo deve ter sido ajustado de maneira irrisória. Pois não era
ridículo que O queriam tornar? E, quando o manto foi assim lançado de modo que
constituísse uma zombaria, acharam de cuidar da coroa.
Cortam a toda a pressa –
porque há que apressar-se: Pilatos está esperando, os judeus impacientam-se nas
ruas – cortam, pois, às pressas, um molho de espinhos. Trazem então o
espinheiro e jogam-no brutalmente sobre a cabeça do Rei Jesus. É mister,
entretanto, dispô-lo em coroa. Como o feixe espinhoso não segura naquela cabeça
que se inclina a seu pesar debaixo daquele doloroso fardo, batem-Lhe com força em
cima. Ela se enterra então profundamente, aquela coroa espessa e rubra de
Sangue. Todo o alto da cabeça fica coberto: é como um capacete cujas pontas
aceradas atravessam a cabeleira, escalpelam o crânio, penetram na carne e fazem
à volta toda da fronte uma auréola de Sangue.
Grossas gotas pingam pouco
a pouco, molhando todo o rosto tão pálido, indo perder-se na barba poeirenta e suja.
Nada falta: eis ali o Rei, a corte está formada, o desfile dos cortesãos vai
começar. Zombar da realeza de Cristo é negá-la. O mundo não pode admitir que
alguém lhe seja superior, porque este teria o direito de fiscalizar-lhe as
máximas. E aí está porque a realeza do Cristo será sempre escarnecida ou
negada. O processo da zombaria é o mais conforme aos costumes mundanos.
A zombaria é uma
malignidade e uma fraqueza. Zomba-se daquilo que não se pode aniquilar,
esperando assim fazê-lo desaparecer sob os sarcasmos. Poucos homens, mesmo
superiores, resistem à zombaria. O ridículo mata. Jesus e a Sua obra por
excelência, a Igreja, sobrepõem-se ao ridículo, e é essa uma prova de divindade:
que a Igreja atravesse o mundo sempre a mesma, vitoriosa.
IX - A CANA
A coroação de espinhos foi
um episódio imprevisto da Paixão. Uma crueldade que não entrava no primeiro
programa. Uma idéia satânica germinou no cérebro dum legionário: é logo posta em execução
com toda a impetuosidade. O fito é menos o de fazer sofrer a Vítima do que o de
ridicularizá-la. E tudo é sabiamente organizado neste sentido. O Cristo está
sentado, despojaram-nO das vestes: o corpo chagado, lavrado de golpes, está
coberto apenas por aquele molambo de púrpura, sujo e curto. Ataram-Lhe as mãos pela
frente e na mão direita colocam-Lhe um “cetro” para que o traje de rei ficasse completo.
Esse cetro é um pedaço de cana...
Os soldados, que já se
divertiram com a esdrúxula vestidura de rei, começam a aproximar-se-Lhe. Com
todas as exterioridades de um respeito oriental, dobrando o joelho e
prostando-se diante de Jesus, saúdam-nO ironicamente: Ave, Rex Judaeorum. Depois,
nessa atitude, de joelhos e próximos dEle, eis que, de repente, um Lhe lança no
rosto uma cusparada, outro se ergue e Lhe dá uma bofetada: faria o choque
escorregar a cana de entre os dedos
trêmulos do Mestre? Um terceiro segura-a, levanta-a se caiu, e dá com ela uma
bordoada na cabeça coroada de espinhos, em meio a risadas, a vivas e aclamações.
Parecendo engraçada a brincadeira, cada qual lhe disputa um lugar. Estava ali
toda uma coorte; qualquer que tenha sido o número de soldados, havia de certo
bastantes atores dolorosos naquele drama improvisado para se supor que as pauladas
e os hediondos escarros se tenham sucedido sem trégua, em meio às aprovações
ruidosas dos espectadores.
Qual poderia ser então a
face, a cabeça, o corpo de um pobre já a escorrer sangue, que se torna em
alguns instantes o alvo único de tantas bofetadas e ultrajes? Recusa-se a
imaginação a ver e a contar. Breve já não há diferença, como cor, entre a carne
e o manto, entre o rosto e a coroa. Tudo é rubro, tudo é púrpura, tudo é
Sangue. No meio daquele pretório cercado de soldados, na maioria jovens,
violentos, de risos grosseiros, um ser lastimável está abatido, retalhado de
golpes, a sangrar por todos os lados; já não é mais que uma massa vermelha,
repugnante como uma carne esfolada. Ecce Homo: eis o homem; Ecce Rex vester:
eis o vosso Rei! Eu vo-lo trago, diz Pilatos à multidão que se agita no sopé da
grande porta encimada por um terraço.
Jesus aparece no Seu
vestuário de Sangue, mal coberto, envergonhado do Seu manto em frangalhos, com a cabeça
torturada pela coroa de espinhos, com a cana a Lhe tremer nas
mãos.
Eis o homem!
E todavia já se Lhe não
distinguem os traços humanos através da máscara de Sangue coagulado; só os dois
olhos fitam dolorosamente aquela multidão. “Jerusalém, Jerusalém, quantas vezes
Eu quis reunir os teus filhos em torno a mim, como a galinha o faz aos seus
pintinhos!” Nesse momento eles estão reunidos e em torno dEle, mas de todas as
bocas só se desprende um clamor: Tolle, tolle! Fora, tirai-O! Crucifige,
crucificai-O! Popule meus, quid feci tibi? Ó meu povo, que te fiz Eu? Murmura o
Coração em Sangue do Mestre. Há muitas vezes palavras íntimas que nos são
dirigidas por Jesus no segredo da alma, em meio aos apelos das nossas paixões.
Porque o drama é o mesmo: Jesus está diante de mim. A turba das más inclinações
rebrama. E não raro lançamos a essa turba o pobre corpo ensangüentado de Jesus,
como Pilatos o vai fazer daí a instantes.
Tolle, tolle, crucifige
eum: tirai-O, crucificai-O! Na igreja das Damas de Sião, em Jerusalém, no topo
das ruínas daquele arco triunfal por cima do qual foi assim apresentado Jesus,
Rei coroado de espinhos, colocaram, aos pés de uma imagem do Ecce Homo, uma
coroa de ouro, um diadema real: uma homenagem, uma reparação.
Rex esto: sede o Rei, ó
Cristo, sede o meu Rei primeiramente!
No nosso coração, onde o
mundo tem o seu cantinho afagado e fechado, Jesus tem dificuldade reinar com o
Seu manto de púrpura irrisório, Sua coroa de espinhos e Seu cetro de cana. Mas
é preciso. Rendamos algumas vezes a Jesus homenagens secretas: ponhamos-Lhe em
espírito uma coroa aos pés. Ele o merece.
Rex esto: sede Senhor, em
seguida, Rei de todos. Ai! Será o pequeno número que Vos aceitará tal como
estais hoje no terraço. Rei de dor, Rei de comédia, Rei escarnecido, posto a
ridículo. Mas sempre Rei.
(Perroy, Pe. Luís. A Subida do Calvário. Editora Vozes)
Não há dúvida que quem mais sofreu no mundo foi Jesus Cristo e sofreu por amor, para nos salvar. Por isso ofereçamos ao Pai Eterno o nosso sofrimento por intermédio de Jesus, que é o nosso Salvador. Que o bom Deus nos ajude.
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