Havia
que chegar a isto. Todo o fatal progresso da Paixão do Cristo tende a privá-lO gradualmente
da Sua liberdade, para Lhe comprar a cada privação um sofrimento novo, até que
o derradeiro esforço
desse trabalho superior
da Justiça de
Deus consiga imobilizá-lO na dor.
Primeiro os
laços, depois a
entrega entre as mãos de
soldados debochados, depois
a privação da vista no corpo da guarda, o amortecimento das forças e a
exaustão que a marcha acarreta e,
finalmente... os cravos
que O fincam
na Cruz: é
a tremenda imobilidade! A
simples reflexão pode
nos dar uma ideia deste último
instrumento de suplício. Estar
preso, fixado por quatro Chagas a se alargarem de minuto em minuto a um
sofrimento a que não se pode escapar!
O menor
movimento não faria,
aliás, senão aumentar
esse sofrimento. E
três horas durou esse
tormento assombroso! O
doente preso de
dor revolve-se penosamente
no leito; tem necessidade desse movimento que, se não lho suprime,
muda-lhe ao menos o sofrimento: descansa de um pelo outro. Na Cruz, porém,
nenhum descanso a esperar a não ser numa morte que só há de vir lentamente.
Mais uma vez: era preciso. O homem, pecando,
abusa da sua
liberdade: o castigo
correspondente à sua
culpa devia ser a privação
dessa liberdade. O Filho do Homem, que expia por toda a humanidade, será, pois, conseqüentemente com
o Seu papel
de Vítima expiatória,
privado de toda a
liberdade.
Está
feito, e é sobretudo nesse exato momento que Ele salva os pecadores. Gritam-Lhe
galhofando: “Desce agora,
se podes”. Já
não pode. Está
cravado. As almas
que se queixam de estar presas à
mesma cruz, pesada, esmagadora, sem esperança de a poder largar neste mundo,
devem vir ao pé desta Cruz de Jesus.
Eu
venho, meu Deus, e ante a Vossa imóvel atitude, ante esses cravos que Vos
fincam ao dever sangrento da Redenção, eu nem sequer em desejo procurarei
despregar-me de uma cruz que em alguns pontos quisestes tornar semelhante à
Vossa.
Quando
os algozes levantaram assim ao alto, como um troféu, a Sua Vítima sangrenta, passaram
aos dois ladrões. Não tardou que se completasse o espetáculo: as três cruzes se
alçaram no cume
do Gólgota. Nesse
momento o campo
foi deixado livre
à multidão.
Houve
um ímpeto em direção ao Cristo pendurado no meio. Si exaltatus fuero, omnia traham
ad meipsum. “Quando eu for levantado, atrairei tudo a Mim” (Jo 12, 32). Por enquanto
o ímpeto é de ódio: amanhã – que digo? – daí há pouco, transformar-se-á num ímpeto
de amor cujas vastas ondas virão até o fim dos tempos bater naquele rochedo e naquela
Cruz divina.
Podemos supor
os soldados a
conterem com dificuldade
a populaça que
se atira ao espetáculo
daqueles três supliciados.
Podemos crer também
que o grupo
das santas mulheres se tenha
deixado de bom grado arrastar pela corrente, pois eis que elas estão mais perto
da montanha. O
Cristo, a Quem
o Sangue tolhe
a vista, vislumbra-as
ao longe. Mas esta
visão, que O
teria aliviado, é
ofuscada pela multidão
que circula sussurrante, qual
enxame malfazejo, em
torno aos três
patíbulos. Circumdederunt me sicut apes.
Rodearam-me semelhantes a uma nuvem
de abelhas irritadas.
E todas as injúrias
que sobem até
Ele crepitam como
o fogo que
arde através das
sarças e dos espinhos. Exarserunt sicut ignis in
spinis (Sl 117, 12).
Há
nesse crepitar de ódio uma covardia cruel, dado que a Vítima está imobilizada e
que a morte que a vai colher bem devia bastar a cevar todas as cóleras.
Aqueles que
são realmente crucificados com
Jesus têm que
passar por essas contradições das línguas; o mundo não
cessará de falar sobre o que vê e de julgar o que não conhece; é por isto que
ele é fundamentalmente injusto. Os eleitos se consolam no testemunho único
da sua consciência
que será a base do último julgamento de
Deus.
Quem, entretanto
se sente bastante
forte contra esse
enxame de línguas
maldizentes?
Senhor, exclamava
Davi perseguido por
seus inimigos, muta fiant
labia dolosa, emudecei essas
bocas peçonhentas e
protegei os Vossos
servos dessas contradições turbadoras das línguas inimigas,
protege nos acontradictione linguarum (Sl. 30, 31).
A
minha fraqueza Vos dirige a mesma súplica, ó Jesus; mas, quando eu me acerco da
Vossa Cruz, onde como num alvo único cospem todas as bocas as suas blasfêmias,
o meu amor susta-me nos lábios o anelo da minha fraqueza e diz-Vos tremendo,
porém, suplicando-Vos:
-
Tomarei também eu o cálice do meu Senhor, tomá-lo-ei, bebê-lo-ei... Nas Suas
Mãos estão as tempestades e as borrascas da minha vida... Tomarei o cálice do
meu Senhor, o mesmo, quero nele beber, e invocarei o Seu Nome como o meu melhor
sustentáculo.
In
manibus tuis sortes meae (Sl. 30, 16).
Calicem
salutaris accipiam et nomem Domini invocabo (Sl. 111, 13).
A partir
do momento em
que a Cruz de Jesus
fôra erguida, o céu se
havia progressivamente
toldado, o sol
parecia velar o
seu disco luminoso.
Entregue inteiramente ao espetáculo
que aguardava, a
multidão não deve
ter prestado grande atenção
a esse fenômeno.
A pouco e
pouco, porém, o
céu se enchia
de sombras crescentes, e logo
trevas espessas cobriam o Calvário, os jardins, a cidade de Jerusalém, e,
diz-nos o Evangelista, estenderam-se pela terra inteira.
Aquela
noite esquisita, caindo assim subitamente e subtraindo à vista a Vítima divina,
lançou a inquietação nas filas da multidão. As vozes que blasfemava calaram-se
pouco a pouco. Os soldados
que montavam guarda
aos supliciados quase
não os viam:
admiraram-se.
Além de que aquilo lhes atrapalhava a partida de dados...
Em
breve não houve naquele cume desolado mais que sombras a circularem medrosas, falando-se
baixo. Foi favorecidas por essas trevas que as santas mulheres se insinuaram até
ao pé da Cruz. Ninguém lhes tolheu o passo. Elas subiram ao alto e se
conservaram de pé muito perto dos patíbulos; Madalena, Maria de Cléofas,
algumas outras mais e, na
primeira
fila, Maria, a Mãe de Jesus: um só discípulo, João, o predileto.
Jesus,
através da noite que O oprime, já os distinguiu. Fita-os longamente, é para Ele
um consolo supremo,
e ao mesmo tempo um como doloroso instrumento
de suplício, pois é a renovação do encontro de ainda há pouco; pois é
também a renovação da ferida que
Lhe fez o
abandono dos Seus,
visto que, dos
Apóstolos, apenas João
lá está, sozinho, fiel,
ao pé da
Cruz. Fita e
cala-se. Este silêncio
de Jesus entre
as Suas três primeiras palavras, antes das trevas, e
as quatro últimas, antes da morte, durou cerca de três horas. Três horas de silêncio imóvel e de
escuridão! É mister sentir esta derradeira angústia, ficar ao pé da Cruz nessa
escuridão, escutar esse silêncio e imitá-lo.
Porque
também, todos os instrumentos de suplício estão esgotados, só resta a morte a esperar.
Cada qual veio à sua hora bater e dilacerar aquele Corpo. Sob os Seus golpes sabiamente
dirigidos, mais sabiamente ainda renovados, porque no Calvário se acham compendiadas todas
as dores já
experimentadas, sob os
seus golpes aquele
Corpo divino, esticado no madeiro da Cruz, vai retumbar o hino da dor e
também da vitória.
Mas,
ó Senhor Jesus, resta-me penetrar mais dentro ainda no mar doloroso e profundo da Vossa
Paixão. Depois do Vosso
Corpo sagrado, é o Vosso
Coração divino que eu quero ver,
triturado, despedaçado, aberto, traspassado de lado a lado.
De
joelhos, pois, no cimo do Calvário, ao pé da Vossa Cruz, durante aquelas três
horas de silêncio e de escuridão, ouvindo só os surdos gemidos da Vossa oração
e da Vossa agonia, ou o ruído abafado e irregular do Sangue que escorre em
terra, eu vou tornar a subir essa onda
de Sangue e
de dor que
Vos trouxe até
aqui, para distinguir
nele, cruelmente revolvido por
essas águas dolorosas,
o Vosso Coração! Esse
Coração que me amou até querer
extinguir-se por mim.
Ó
vós todos que passais, parai, pois um momento e vejamos juntos se há sofrimento
que se possa comparar ao de Jesus na Cruz!
Quem é o autor?
ResponderExcluirSalve Maria, o livro é do Pe. Luís Perroy.
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