Fr. Manuel Sancho,
Exercícios Espirituais para
Crianças
1955
PARTE PRIMEIRA
A conversão da vida do pecado à
vida da graça
(Vida Purgativa. — 1.ª semana)
4. — Mas, se Deus pôs neste
mundo cada um de nós para Ele, para que então terá criado as outras
criaturas? Tudo isso que vos rodeia, coisas e pessoas, esse belo céu,
esses prados risonhos, árvores, animais, homens... enfim, todas as criaturas
distintas de vós, que relação devem ter para com cada um de vós?
A relação que as criaturas devem
ter para convosco; ou, melhor dizendo, o fim de cada criatura em relação a vós
é servir-vos de meio para a consecução do vosso fim último, Deus. Tudo aquilo
de que nos servimos neste mundo, riquezas, honras, desprezos, talento, doença,
saúde... havemos de servir-nos destas coisas na medida em que nos conduzirem a
Deus, e privar-nos delas na medida em que de Deus nos afastarem. A consequência
disto será que todas as coisas que nos agradam e as que nos desagradam, a vida
longa ou curta, a pobreza ou a riqueza, deverão ser-nos perfeitamente
indiferentes, e delas só nos havemos de servir na medida em que nos conduzirem
a Deus. Se a saúde só serve a um homem para ele pecar, e se doente ele serve
melhor a Deus, deve ele preferir a doença à saúde; se as riquezas o afastam de
Deus e a pobreza o aproxima d’Ele, deve ele inclinar-se a ser pobre. Mas, como
Deus sabe muito bem aquilo que nos convém, o que Ele nos der será o melhor para
a nossa salvação.
Esta indiferença é tão
necessária, que, sem ela, muito escasso será o fruto destes Exercícios. Mas
esta não deve ser a indiferença passiva daquele que não faz nada, senão a
indiferença daquele que está disposto a fazer a vontade de Deus manifestada
pelas criaturas, seja ela qual for, agradável ou desagradável.
Já vistes alguma vez um cão
quando espera ordens do dono? O inteligente animal está olhando fixamente para
seu senhor, inquieto, nervoso, pronto a arrojar-se a qualquer perigo, esperando
apenas um leve movimento da mão do dono para se lançar a cumprir a vontade
deste, como uma seta. Se este lhe indica um rio, ele se lança ao rio; se o
açula contra um inimigo, ele se arremessa contra o inimigo; se lhe mostra a
morte, ele se precipita na morte... Antes de receber a ordem, o cão está
indiferente para fazer uma coisa ou outra; em conhecendo a vontade do seu
senhor, embora seja ela árdua de cumprir, ele não vacila; cumpre-a do melhor
modo que pode.
Esta deve ser a indiferença que
haveis de tirar desta consideração: estar prontos a escolher as criaturas que
Deus quiser para a vossa salvação. Erro funesto seria que escolhêsseis, para
vos salvardes, aquilo que não esteja conforme com a consecução do nosso fim
último.
Vede um menino pequeno sentado
diante da sua mesinha, disposto a escrever a sua página. Não lhe faltam desejos
de trabalhar. Porém ele só se tem exercitado em copiar letras do modelo em
papel pautado, com as pautas paralelas, cruzadas de oblíquas. Está indeciso
para escolher pena e papel, pois os tem de várias classes. O mestre lhe disse
que escrevesse no supradito papel pautado e com tal pena, a única que ele sabe
manejar; porém ele se cansa dessa sujeição, e, contra a opinião do mestre, que
sabe o que à criança convém, mete-se a copiar letra miúda em papel sem pauta e
com outra pena que nunca manejou. O menino copia o seu modelo com fervor, com
entusiasmo...
Admirado dessa não vista
aplicação, o mestre chega-se caladinho por detrás e olha através dos óculos o
escrito do seu discípulo.
O cruído de um piparote e um
“Valha-me Deus!” do velho preceptor perturbam o silêncio da escola. O mestre
contempla com aborrecimento a obra do seu discípulo: é um conjunto de linhas
tortas; umas tendem para o céu, outras correm para o abismo, conforme se
inclinam para baixo... as outras vão avançando em zigue-zague mui ricamente;
uma ou outra mete-se na jurisdição da sua vizinha, atravessando-a aleivosa de
lado a lado.. . As letras estão umas apertadas em grupinhos, como se estivessem
com frio, outras distanciadas, que parecem estar brigadas. Como sombras desse
quadro, espalham-se borrões e salpicos por entre garranchos e garatujas...
Bobo! Vaidoso! — prorrompe
afinal o mestre. — Por que escolhes as penas que não sabes manejar? Acreditas
ser um futuro grande homem e és um ignorante atrevido. Por que desprezas meus
conselhos e queres escrever por meios que não são adequados ao teu trabalho?
O mesmo vos aconteceria, meus
filhos, se quisésseis usar das criaturas ao vosso talante, não olhando nisso à
vontade de Deus, porém à vossa. Escreveríeis a vossa vida num caderno cheio de
borrões e de letras hieroglíficas, que o diabo decifraria, mas que aborreceriam
ao vosso anjo tutelar. Se Deus quer que um menino estude, e assim lho dá a
entender por seus pais e mestres, que são os porta-vozes d’EIe, o menino fará
mal em ir pelo caminho que lhe apeteça.
Isto e o que eu desejo tireis
desta minha explicação: aborrecimento ao pecado, que vos desvia de Deus, último
fim vosso, e indiferença no uso das coisas criadas, escolhendo aquelas que Deus
quer para vós, saúde ou enfermidade, riquezas e honras ou pobreza e desprezos.
Oh, meus filhos, se saísseis do exercício deste dia com tão boas disposições,
quão bom exercício teríeis feito!
Como isso é difícil, pedi à
Virgem Maria que vos dê inteligência para compreender e ânimo para praticar
isto que vos ofereço como fruto da consideração do fim do homem.
Para consegui-lo, rezai comigo
três Ave-Marias.
Fonte: A Grande Guerra
Nenhum comentário:
Postar um comentário