Antonio Thatler
"Nec quisquam sumit
sibi honorem, sed qui vocatur a Deo tanquam Aaron" (Hb V, 4)
["Ninguém se arrogue
esta honra, senão o que é chamado por Deus, como Aarão"]
"Vocari autem Deo
dicuntur qui a legitimis Ecclesiae ministris vocantur"
(Catecismo de Trento:
Ordine.)
["São ditos chamados
por Deus os que são chamados por legítimos ministros da Igreja"]
A vocação tanto no
sentido lato como no sentido estrito (a vocação sacerdotal), ambas são temas de
muita discussão, seja entre grupos, seja na consciência da própria pessoa.
Isso se dá pois desde o
século XVII o sentido de vocação sacerdotal foi corrompido e se perdeu a
simplicidade com que era tratado o tema antigamente.
O autor de "La
Vocation Sacerdotale¹", o Pe. Joseph LAHITTON, ao publicar seu livro gerou
diversas polêmicas no meio eclesiástico, principalmente entre reitores de
seminário e teólogos, pois a explicação que expõe sobre o que é a Vocação
Sacerdotal contrasta fortemente com o que a maioria das pessoas desde o século
XVII (autores santos inclusos) pensam sobre o tema. Por isso, muitos deles
quiseram colocar seu livro no Index e, para solucionar de vez a questão, o Papa
da época, S. Pio X, resolveu criar uma comissão de cardeais para analisar o
livro. Dessa comissão saiu o parecer definitivo de que o livro do Pe. LAHITTON
expressa a mais ortodoxa doutrina católica sobre o tema. Mesmo assim,
infelizmente, essa obra ainda é muito pouco conhecida atualmente e,
conseqüentemente, a idéia errônea sobre a Vocação Sacerdotal ainda é muito
difundida entre os católicos do mundo.
Não pretendemos abordar
todo o livro neste artigo, pois ele trata exaustivamente sobre o tema e aqui
nos limitamos apenas a ressaltar os pontos principais acerca da Vocação
Sacerdotal tal como ela deve ser compreendida.
Primeiramente, o que pode
chocar muitos, nenhum seminarista do mundo tem Vocação Sacerdotal. Mesmo os que
juram de pé juntos terem "sentido" a Vocação no âmago do seu ser, ou
os que dizem querer ser sacerdote desde a mais tenra idade tendo inclinação
para tal, nenhum deles tem a Vocação Sacerdotal. E por quê? Porque apenas o
Bispo confere o chamado sacerdotal ao chamar (vocare) o candidato ao sacerdócio
no Rito da Ordenação. Apenas após receber a Ordem é que se pode dizer, em
sentido próprio, que a pessoa recebeu a Vocação Sacerdotal, pois recebeu esse
chamado de Deus por meio do Bispo, representante de Deus na Terra. E também é
por isso que, em sentido estrito, é errado dizer que um padre pode perder a
vocação ao longo da vida, pois tendo o caráter sacerdotal impresso na alma, não
se o perde mais, mesmo após cometer as piores atrocidades.
O que querem dizer,
então, quando falam que alguém tem vocação ou perdeu a vocação?
Deve-se entender aqui a
vocação no sentido amplo da palavra, sendo sinônimo de idoneidade ao
sacerdócio. Essa idoneidade, para o sacerdócio, consiste em: ser homem,
batizado, com condições físicas, intelectuais e morais necessárias para exercer
o sacerdócio. Logo, para buscar o sacerdócio, é preciso ter: intenção reta,
idoneidade intelectual e idoneidade moral. Critérios bem objetivos, nada sendo
dito de fatores subjetivos tais como: inclinação ou atração ao sacerdócio,
graças místicas extraordinárias, etc.
O autor ressalta que a
vocação pode ter 3 origens:
Revelação divina formal,
como é o caso de S. João Bosco que teve a visão na qual cuidava de garotos e
Nosso Senhor o chamava para cuidar deles.
Inspiração divina, isto
é, se tem um impulso da vontade pela graça em direção ao sacerdócio, sem uso
das sugestões da imaginação nem da deliberação da inteligência
Eleição sobrenatural,
relativa à virtude da prudência infusa, sem revelações pessoais, nem impulsos
da vontade, mas fruto de meditações, deliberações e de eleição feita à partir
da livre iniciativa.
Aparentemente, o modo 1
seria o ideal para avançar em direção ao sacerdócio, enquanto que o modo 2
seria o mais comum e o modo 3 seria algo de sacrílego, pois como pode alguém,
utilizando apenas a inteligência, buscar o sacerdócio sem ter sido chamado por
Deus? Seria um usurpador!
E é aqui que todos se
enganam. O modo 1 e 2 podem nos enganar, pois podemos nos iludir achando que é
inspiração divina o que é inspiração do demônio. Enquanto que o modo 3, baseado
na reta razão, que explicaremos mais à frente, é o mais seguro. Assim, os modos
1 e 2 só servem para formar o modo 3, enquanto que o modo 3 se basta por si
mesmo. Não se ignora aqui que o modo 3 pressupõe a graça, pois toda moção a um
bem sobrenatural (a maior glória de Deus e a salvação das almas pelo
sacerdócio) não pode ser fruto da natureza humana, mas da graça divina. O que
se exclui aqui é a teoria da expectativa, onde se espera receber um sinal de
Deus para se decidir em favor do sacerdócio.
Em 1907, o cardeal
Gennari numa obra em que diz: "deve-se evitar dois opostos: o
semi-pelagianismo que diz que podemos com nossas obras e livre-arbítrio nos
antecipar à graça e o quietismo que ensina que devemos antes esperar receber a
graça sem nada fazer anteriormente devendo apenas seguí-la. O correto é que a
graça é necessária para começar, prosseguir e completar qualquer boa obra, mas
essa graça não é extraordinária ou sensível. Logo devemos nos esforçar a fazer
obras santas, supondo sempre em nós a dita graça. Se Deus se manifesta de modo
sensível, cabe examinar com diligência se ela vem de Deus" (pg. 136,
"Del falso misticismo")
No que consiste, então,
essa resolução ao sacerdócio?
Essa resolução se dá pelo
seguinte silogismo genérico:
Ama-se a Deus e se quer
fazer algo por Ele (querer inicial [aqui o autor utiliza o termo
"sentimento inicial", o que daria a impressão do sentimento vir antes
de tudo, mas mais à frente ele classifica mais adequadamente essa postura inicial
como "querer primitivo" que, obviamente, aparece após se conhecer
algo de Deus, pois só podemos querer algo após o conhecermos])
Quer-se que outras almas
tenham o mesmo querer em relação a Deus (intenção inicial)
Como alcançar isso?
(deliberação)
Pelo sacerdócio!... mas
sou tão fraco!... Todavia: "tudo posso Naquele que me conforta²"
(conclusão da deliberação)
Escolho então o
sacerdócio! (eleição)
Serei então padre. Devo
buscar o sacerdócio. (intenção nova)
Como alcançá-lo? (nova
deliberação)
Entrando no seminário.
Sendo dócil à formação que lá se dá e correspondendo às graças de Deus
(conclusão da deliberação)
Entrarei então no
seminário e farei o que me propus (nova eleição)
Entremos, então, no
seminário e mãos à obra! (resolução imperativa)
Vida no seminário até
atingir o sacerdócio (execução)
Aqui, cabe ressaltar que
o item (d) pode ser substituído por outra coisa, como a vida religiosa, ou a de
leigo celibatário, ou a de casado. O que se busca ressaltar aqui é a intenção e
a razão que devem mover o candidato ao sacerdócio. Basta escolher o sacerdócio
por um motivo digno do sacerdócio, e assim tem-se uma intenção sobrenatural.
Não há aqui nem revelação, nem inclinação sobrenatural, nem inclinação natural.
Elas podem ajudar a atingir a eleição do sacerdócio, mas não são essenciais.
Ora, só podemos querer
algo que conhecemos. É por isso que não se deve levar em conta quando uma
criança ou um recém-converso diz querer ser padre. Deve-se antes compreender o
que é o sacerdócio para depois se tomar uma decisão prudente, com a ajuda de
conselhos de pessoas
convenientes, em direção
dele.
Daqui decorre a utilidade
dos Seminários Menores para mostrar aos jovens o que é o sacerdócio e à partir
dele tomarem a decisão mais fundamentada de seguir ou não em direção ao
Seminário Maior. O Seminário Maior não é, no entanto, o local onde estão as
pessoas que inexoravelmente serão padres. Sua função ainda é a de fazer
conhecer a vida sacerdotal, retificar a intenção dos candidatos para ajudá-los
a tomarem melhor a decisão e torná-los idôneos intelectual e moralmente, até o
dia em que fizerem os votos, ao receberem o subdiaconato.
Após ter feito a eleição
pelo sacerdócio, o candidato deve ter a intenção firme e constante de obter,
não o sacerdócio, mas a idoneidade sacerdotal. A idoneidade do candidato,
porém, não lhe dá direito à Ordenação. Isso se dá, pois não se é padre para
benefício próprio, mas para o bem da Igreja, e quem decide quais são as
necessidades da Igreja são os Bispos. Logo, se um Bispo, hipoteticamente, precisar
de apenas 3 padres para a sua diocese, e possuir 20 seminaristas no seminário,
ele pode, ou melhor, deve, escolher apenas os 3 mais aptos para o cargo, não
necessariamente os mais santos, pois esses podem viver melhor como religiosos
do que padres, mas os mais aptos às suas necessidades. Não se deve ser padre
para buscar primeiramente a santidade própria, isso é próprio dos religiosos,
mas se deve buscar ser "vocacionável" em relação ao Bispo, isto é, se
deve buscar ser cada vez mais idôneo intelectual e moralmente. Não há um
direito ao sacerdócio, mas é o Bispo quem decide quem será ou não padre, com
base em limites mínimos de idoneidade intelectual e moral, pois que ninguém é
capaz de alcançar, dentro do espaço de tempo de uma vida humana, a ciência e a
santidade próprias do sacerdócio, mas se deve buscá-las continuamente.
Deus pode não querer
necessariamente que alguém venha a ser padre, como é o caso típico do pai de
Santa Teresinha de Lisieux. Deus pode querer que alguém fique no Seminário por
um determinado tempo e depois saia, utilizando o que aprendeu lá dentro em
benefício para o resto de sua vida. O
seminarista deve primeiro
buscar fazer a vontade de Deus antes que buscar o sacerdócio "à todo
custo". Um exemplo disso é a história de Abraão e Isaac. Deus move
interiormente Abraão a imolar seu filho, Isaac, mas não quis que isso chegasse
a cabo, impedindo na última hora que Abraão imolasse seu filho, sem, contudo,
tê-lo impedido antes. Santa Teresa d'Ávila, longe de atração, tinha repúdio à vida
religiosa, mas decide por ela mesmo assim para garantir sua salvação. A fé dá
as premissas e a razão as une para obter uma conclusão.
No que tange a falta de
vocação, vemos que ela é devida à omissão de Bispos e padres no seus
respectivos papéis de recrutadores de sacerdotes em que deviam formar os
jovens, tornando-os idôneos ao sacerdócio e motivando-os a conhecer a vida
sacerdotal, a começar com o exemplo próprio.
Hoje em dia, a motivação
de seguir o sacerdócio provém principalmente de livros de santos, pois os
exemplos de muitos sacerdotes atuais mais desmotiva que ajuda um jovem a ser
sacerdote.
O Bispo, no seu papel de
"procurador da vinha³" não deve esperar sentado enquanto jovens que
"se sentem chamados" lhe vão ao encontro para se tornarem sacerdotes.
Esta é a noção errada de vocação sacerdotal que produz diversos frutos ruins.
S. Paulo ao chegar num lugar novo, esperava ele que pessoas viessem tornar-se
padres? Como poderiam se nem sabiam o que é o sacerdócio? Foi S. Paulo que após
instruir o povo, escolheu os mais idôneos para o sacerdócio. Então a atitude é
objetiva e parte do superior para o inferior, e não o oposto, onde o inferior,
por uma moção subjetiva, busca o superior.
De fato, atualmente não é
mais possível que o Bispo escolha o sacerdócio dentre todos os fiéis de uma
cidade grande pois é impossível conhecer bem todos os candidatos, daí a
necessidade do Seminário que "filtra" os interessados de modo que o
Bispo escolherá para o sacerdócio apenas os que se dispõem para tal, no
seminário. Essa redução do espaço amostral não implica que todos os
seminaristas virão a ser padres, pois o Bispo tem o dever de chamar apenas os
que preencheram os quesitos por ele estabelecidos (incluindo as idoneidades
intelectual e moral). O autor, por experiência, diz que um Bispo nunca se
arrependeu ao dispensar um candidato por engano, mesmo sendo ele idôneo para o
sacerdócio, mas se arrependerá amargamente pelo resto da vida por apenas um
candidato não-idôneo que ele tenha feito sacerdote, pois ele será parcialmente
cúmplice de todos os erros e escândalos que esse padre cometer, mostrando com
qual rigor o Bispo deve ter para selecionar os candidatos.
Finalizando a explicação
sobre a verdadeiro significado da Vocação Sacerdotal4, tratarei do que é
necessário para um candidato buscar o sacerdócio: a intenção reta, a idoneidade
intelectual e moral.
Há 3 julgamentos que
podemos fazer sobre a idoneidade de um candidato:
zona externa: são os
impedimentos físicos e canônicos de um candidato ao sacerdócio. Por exemplo,
uma pessoa muda não pode ser padre, pois lhe é impossível consagrar uma hóstia.
zona intermediária:
exteriormente, o candidato demonstra sua idoneidade moral e intelectual, ao
seguir ao longo dos anos no seminário o regulamento e conseguindo boas notas
nos exames.
zona secreta: aqui o
candidato coloca-se diante de Deus e da Igreja. Convém pedir conselho a alguém
mais sábio, um diretor espiritual de confiança, por exemplo.
Deve-se ter também o
desejo de castidade perpétua e "manter-se numa dependência perpétua da
ação divina, se desconfiar constantemente de si mesmo, rezar constantemente,
agradecer a Deus pelo que recebeu e implorar aquilo de que ainda se tem
necessidade." (pg. 108 do livro).
A intenção reta se
fundamenta na glória de Deus e na salvação das almas, buscadas espontâneamente
em direção do sacerdócio, mesmo após hesitações e repugnâncias.
A idoneidade intelectual
consiste na capacidade de aprender as ciências propriamente sacerdotais. O
autor aconselha: "Se queres fazer progressos rápidos e sólidos nos estudos
das ciências sagradas, aplique-os à sua conduta" (pg. 453)
A idoneidade moral
consiste nos 3 julgamentos que expusemos acima. Se houver queda certo tempo
antes do subdiaconato, convém esperar mais antes de receber essa ordem que já
exige os votos. Aqui o autor recomenda duas características que devem ser
próprias de todo seminarista: a humildade e o espírito de sacrifício. Máximo a
se buscar: "a medida de amar a Deus é amá-lo sem medida5".
Essa é, em resumo, a
noção verdadeira da Vocação Sacerdotal.
Então, de onde veio a
idéia moderna de vocação largamente difundida em nossos dias?
O autor explica que o
sentido da palavra "vocação" foi alterado no século XVII para evitar
a vinda de padres indignos que buscavam o sacerdócio para obter vantagens para
a família ou por falta de coisa melhor a fazer (não queriam trabalhar,
guerrear, etc.). Mas essa foi a saída errada, o correto seria que os Bispos
barrassem esses candidatos, mas, por fraqueza humana, não o fizeram...
Desde então, a vocação é
entendida como uma inspiração divina (modo 2) e não como fruto de uma meditação
deliberada (modo 3) pela qual se busca a idoneidade para alcançar o fim. De tal
modo que muitos buscam o sacerdócio com base em consolações espirituais
recebidas e, ignorando o quesito da idoneidade, "bem rápido o anjo [a
atração sensível] some, fica só a besta!" (pg. 360). Essa idoneidade deve
ser analisada pelo Bispo (ou alguém delegado por ele) e pelo próprio candidato
(se busca ser honesto diante de Deus).
Isso explica a
dificuldade de se entenderem os textos que tratam atualmente sobre o tema da
vocação, mesmo entre os santos, como, por exemplo, o grande doutor da Igreja,
Santo Afonso. Ele condena os Bispos que conferem as Ordens aos não-chamados. Ora,
pela explicação acima, sendo o Bispo quem dá o "chamado" propriamente
ao candidato, não faz sentido o Bispo "chamar" quem já é
"chamado", como Santo Afonso quer. Pela noção moderna de vocação, se
entenderia que Santo Afonso queria que os Bispos ordenassem só os que se sabem
"chamados por Deus", por meio de algum sinal de vocação interior
recebido. Mas tampouco é isso que Santo Afonso quer dizer. Santo Afonso, apesar
de não se expressar claramente, quer dizer apenas que o Bispo não deve dar as
Ordens para os que não são idôneos, esse sendo o sentido que busca dar à
palavra "chamado".
Santo Afonso é acusado
pelo autor de ter sido influenciado pelo rígido Habert (1668) em relação à
teoria da predestinação a um estado de vida determinado. Santo Afonso teria se
baseado numa opinião teológica bastante difundida em sua época. Essa opinião é
fruto de uma confusão. Com base nos princípios corretos de que cada homem chega
nesse mundo com seu destino fixo pelos planos eternos e de que é necessário se
preocupar em fazer a vontade de Deus e de ser fiel à nossa destinação,
conclui-se estranhamente que é necessário conhecer o que está nos decretos
eternos antes de escolher um estado de vida.
Dessa tese rigorista
decorre que: Deus tem um plano para a nossa vida que leva a um estado de vida
determinado fora do qual se é um "desviado". Entrar num estado sem a
ele ser chamado ou não entrar onde se é chamado são dois casos igualmente
perigosos para a salvação eterna. Deus nos teria preparado apenas uma via pela
qual seremos salvos e na qual nos são preparadas graças especiais que
deveríamos receber.
Essa tese é atualmente
condenada devido às seguintes razões: somos incapazes de conhecer os projetos
divinos para nós (salvo revelação expressa); as vontades particulares de Deus
nos são desconhecidas; a única conformidade possível com a vontade de Deus é
sob a razão de bem em geral ("sub rationi boni"), e essa razão nos é
conhecida pelas regras universais dos mandamentos divinos e os conselhos
evangélicos, uns dizendo o que é prescrito, os outros o que é melhor e
facultativo.
Por isso é que Santo
Ambrósio já dizia: "Escolha o estado de vida que quiser e Deus lhe dará as
graças próprias e convenientes a esse estado para que nele viva honesta e
santamente6". E segundo Santo Tomás de Aquino, a Providência de Deus não
impõe a ninguém (geralmente) um estado de vida determinado; mas ela dispõe tão
bem os temperamentos e as inclinações dos homens que, junto com as livres
escolhas feitas por cada um, se vê que a cada carreira humana se acha um número
conveniente de livres-candidatos. Logo, pode-se tanto ser sacerdote, religioso,
leigo celibatário ou leigo casado. Deus dará as graças convenientes a cada
estado, não havendo "graças especiais" reservadas, ou
"condenações implícitas" decorrentes da escolha de um estado de vida,
contanto que a pessoa escolha o estado de vida com a intenção reta, sob os
ditames da prudência natural e sobrenatural.
Da noção torta de vocação
que temos atualmente decorrem diversos erros. As pessoas de temperamento mais
frio, refratárias aos sopros de certa sensibilidade mística, embora sendo
idôneos, não "se sentindo chamados", evitam o sacerdócio. Os
entusiastas, propensos às ilusões, fazendo pouco caso das capacidades
necessárias para o sacerdócio, ressaltam ainda mais o que consideram como voz
interna e presunçosamente a exteriorizam aos outros. Citam o S. Cura d'Ars como
exemplo, mas esquecem de dizer que houve apenas um S. Cura d'Ars na História da
Igreja! Devemos imitá-lo na santidade, sem dúvida, mas não na sua incapacidade
de estudo que Deus supriu de uma maneira singular e excepcional.
Outra conseqüência
desastrosa da falsa noção de vocação é achar que o Seminário e o chamado do
Bispo no dia da Ordenação são meras formalidades canônicas, apenas confirmam
uma predestinação ao sacerdócio já presumida pelo candidato. Os que estão
"certos" de terem uma vocação vivamente sentida, negligenciam seu
aperfeiçoamento em vista do sacerdócio, enquanto que os bons são excluídos dos
Seminários, por não ousarem serem padres...
Com as noções ensinadas
pelo autor acerca da Vocação pode-se melhor compreender certas frases como:
"S. João Bosco disse que de cada três meninos, ao menos um tem
vocação". Isso não quer dizer que um terço dos meninos deve
invariavelmente tornar-se sacerdote. Não. Isso quer apenas dizer que um terço
dos meninos tem as condições mínimas para serem idôneos ao sacerdócio.
Há outros textos sobre
vocação que oscilam entre a noção correta de Vocação Sacerdotal e a noção
moderna, errada. Por exemplo, há um texto que lamenta os "que se sentem
chamados mas não querem responder". Ora, o chamado no sentido estrito é o
que o Bispo fala no Rito da Ordenação, logo não há "sentir" algum do
candidato. O outro sentido, mais largo, é a idoneidade do candidato ao
sacerdócio (também conhecido como "sinal de vocação") que se baseia
numa análise objetiva de suas capacidades e também não envolve nenhum
"sentir". Logo, vemos claramente como esse texto se desvia da
compreensão correta da Vocação Sacerdotal.
No entanto, mais à
frente, o texto indica corretamente alguns erros relativos à idéia de vocação
como "Outros imaginam que faz falta ter escutado algum dia, uma pequena
voz interior que lhes dizia: 'vem...!'", mas depois dá a entender a idéia
de "predestinação a um estado de vida" quando diz: "é verdade
que um homem que por sua culpa se põe fora do caminho que Deus o chama de
maneira certa e insistente (porque há chamados mais insistentes que outros),
este indivíduo se privaria de muitas graças e poria em risco a sua
salvação".
Novamente volta a dizer a
noção correta quando simplifica "O sábio teólogo Noldin diz: 'qualquer
pessoa que tem a idoneidade e a intenção reta e aspira ao sacerdócio, pode
apresentar-se ao Bispo'". Assim, o texto não trata com a mesma clareza
sobre o tema tal como Pe. LAHITTON expõe em seu livro aprovado por S. Pio X.
Em suma, relato um resumo
feito por um livro de Vocação Sacerdotal sobre a posição do Pe. LAHITTON:
"A postura de LAHITTON tem evidentes consequências práticas: deixa claro
que a vocação não é um sentimento interior, nem um desejo ou inclinação da
pessoa pelo ministério, a vocação é uma chamada de Deus através da Igreja
representada pelo Bispo. A chamada do Bispo é a vocação definitiva e o critério
que este seguirá será comprovar as aptidões do candidato e a utilidade da
diocese.7"
Esperamos que este artigo
ajude a muitos, assim como nos ajudou a entender corretamente sobre esse tema
atualmente tão mal compreendido e tão importante, de modo a não precisarem se
lamentar tal como S. João Bosco em seu livro quando disse: "Se ao menos eu
tivera alguém que cuidasse da minha vocação! Que grande tesouro ele seria para
mim, mas eu não tinha esse tesouro. Eu tinha um bom confessor que buscou me
fazer um bom Cristão, mas nunca buscou se envolver pela questão da minha
vocação.8". Vemos que seu confessor considerando a vocação erroneamente
como uma inspiração divina pessoal na qual não deveria se envolver, mas apenas
Deus, não buscou analisar objetivamente a idoneidade de D. Bosco e levá-lo,
após convite seu, a um Seminário para definitivamente ver se ele poderia ser ou
não sacerdote.
Que isso não se repita e
corramos o perigo de perder novos S. João Boscos por aí...
Nossa Senhora do Bom
Conselho, rogai por nós!
Antonio Thatler
APÊNDICE
Apesar do livro não
tratar diretamente sobre a vocação religiosa, podemos aproveitar alguns
princípios e aplicá-los analogamente à vida religiosa. Deixo como adendo a
seguinte citação de S. Tomás para os que têm medo da vida religiosa tal como se
deve ter medo da vida episcopal:
"O estado de
religião e o episcopado não têm a mesma natureza, por duas razões. - Primeiro,
porque o estado episcopal preexige a perfeição da vida; o que o demonstra a
interrogação feita pelo Senhor a Pedro, antes de lhe cometer o oficio pastoral,
quando lhe perguntou se o amava mais que os outros. Ao passo que o estado de
religião não preexige a perfeição, mas é uma via para a
perfeição".(AQUINO, Santo Tomás. Suma Teológica: CLXXXV, I, IV)
NOTAS
1. Tratarei da 7ª edição do livro, mais
completa, embora possa-se ler a 1ª edição em: http://www.archive.org/details/MN5106ucmf_4
2. Filipenses IV, 13
3. S. Mateus XX, 8
4. Recomendo ler o livro para aprofundar o
conhecimento verdadeiro da Vocação Sacerdotal, hoje tão ignorado ou tão
erroneamente compreendido.
5. Cap. 1, "De Diligendo Deo", São
Bernardo
6. Cornelius a Lapide, in I Cor. VII, 7
7. Pág. 21 , "Discernimiento Vocacional
y derecho a la intimidad en el candidato al presbiterado diocesano",
Federico Mantaras Ruiz-Berdejo , 2005
8. Cap. 16, "Memoirs of the Oratory of
Saint Francis de Sales from 1815 to 1855, THE AUTOBIOGRAPHY OF SAINT JOHN BOSCO",
Traduzido por Daniel Lyons, SDB, 1989.
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