Parece
que o corpo de Cristo não devia
ressurgir com cicatrizes.
1.
— Pois, diz o Apóstolo, que os mortos ressurgirão incorruptíveis. Ora, tanto as
cicatrizes como as feridas implicam de certo modo corrupção e defeito. Logo,
não devia Cristo, autor da ressurreição, ressurgir com cicatrizes.
2.
Demais. — O corpo de Cristo ressurgiu íntegro. Ora, feridas abertas contrariam
a integridade do corpo, pois causam nele descontinuidade. Por onde, parece que
não devia o corpo de Cristo conservar quaisquer aberturas de feridas, embora
nele se conservassem certos sinais delas, suficientes para percebê-las a vista
à qual Tomé acreditou, ele a quem foi dito: Tu creste, Tomé, porque me viste.
3.
Demais. — Damasceno diz: Depois da ressurreição de Cristo, certas causas lhe
atribuímos, como as cicatrizes em sentido próprio, não porém segundo a
natureza, senão só excepcionalmente, para significar que o mesmo corpo que
sofreu foi também o que ressurgiu. Ora, cessada a causa, cessa o efeito. Por
onde, parece que uma vez certificados os discípulos da sua ressurreição, não
era já necessário que conservasse as cicatrizes. Mas não convinha à
imutabilidade da sua glória, que assumisse qualquer causa que perpetuamente
nele não existisse. Logo, parece que não devia, ressurgido, assumir um corpo
com cicatrizes.
Mas, em contrário, o Senhor diz a Tomé: Mete aqui o teu
dedo e vê as minhas mãos; chega também a tua mão e mete-a no meu lado.
SOLUÇÃO. — Devia a alma de Cristo, na
ressurreição, reassumir o seu corpo com as cicatrizes. — Primeiro,
por causa da glória mesma de Cristo. Assim, como diz Beda, conservou as
cicatrizes, não pelas não poder fazer desaparecer, mas a fim de manifestar a
todos e perpetuamente o triunfo da sua vitória. E por isso diz Agostinho, que talvez
no reino celeste veremos nos corpos dos mártires as cicatrizes das feridas, que
sofreram pelo nome de Cristo. O que lhes constituirá, não uma deformidade, mas
uma dignidade; e então há de refulgir neles a beleza da virtude existente no
corpo, mas sem ser do corpo. — Segundo, para confirmar o coração dos
discípulos na fé da sua ressurreição. — Terceiro, para mostrar
sempre, ao orar ao Pai por nós, que gênero de morte sofreu pelo homem. — Quarto,
para relembrar incessantemente àqueles a quem resgatou com a morte, a
misericórdia de que usou para com eles. — E enfim, para também desse
modo mostrar, no juízo, aos condenados, quão justamente o foram. Pois, como diz
Agostinho, Cristo sabia porque queria conservar no seu corpo as cicatrizes.
Porque, assim como as mostrou a Tomé, que não queria crer senão tocando-as e
vendo-as, assim também há de mostrar, mesmo aos seus inimigos, as suas feridas,
para que a Verdade, ao confundi-Ias, lhes declare: Eis o homem a quem
crucificaste. Vedes as feridas que me causastes. Reconhecei o lado que
trespassastes — aberto por vós e por causa vossa, sem contudo nele
terdes querido entrar.
DONDE
A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Essas cicatrizes que permaneceram no corpo de
Cristo, não implicam nenhuma corrupção nem qualquer defeito, mas um maior
cúmulo de glória, como uns sinais da sua virtude. E nesses lugares mesmo das
feridas se manifestará um esplendor especial.
RESPOSTA
À SEGUNDA. — Embora essas feridas abertas impliquem uma certa solução de
continuidade, tudo isso é recompensado porém por um maior esplendor da glória,
de modo que o corpo longe de perder da sua integridade, mais perfeito se
tornará. Tomé, porém não só viu, mas também tocou as feridas; porque, como diz
Leão Papa, bastava-lhe à sua fé ter insto o que vira; mas foi em nosso proveito
o ter tocado aquele a quem via.
RESPOSTA
À TERCEIRA. — Cristo quis que as cicatrizes permanecessem no seu corpo, não só
para certificar a fé dos discípulos, mas ainda por outras razões. Donde se
conclui que essas cicatrizes sempre lhe permaneceram no corpo. Pois, diz
Agostinho: Creio que o corpo do Senhor está no céu como existia quando a ele
subiu. E Gregório diz, se alguma causa podia mudar-se no corpo de Cristo,
depois da ressurreição, o Senhor podia voltar a morrer, depois de
ressurrecto — contra a afirmação verídica de Paulo. Mas quem com
estultície ousará dizê-lo, senão quem negar a verdadeira ressurreição da carne?
Por onde é claro que as cicatrizes que Cristo mostrava no seu corpo, depois da
ressurreição, nunca mais se lhe deliram dele.
(Suma Teológica, Parte III, quest. 54,
art. 4)