[Nota
da Permanência] O texto que se vai ler foi tirado do apêndice histórico da
edição brasileira da obra de Gertrud von le Fort (A Última ao Cadafalso, trad.
de Roberto Furquim, Quadrante, São Paulo, 1998), e tem por base o livro de
Bruno de Jesus Maria, O.C.D, Le Sang du Carmel ou la véritable passion des
seize carmelites de Compiègne, Plon, Paris, 1954 e o informe do Secretariatus
pro monialibus, Curia Generalis O.C.D., As Bem-aventuradas mártires de
Compiègne, Roma, S.d. As citações entre aspas, exceto quando é indicado o
contrário, provêm dos manuscritos da Irmã Maria da Encarnação.
Praça do Trono, 17 de Julho
de 1794
São
cerca de oito horas da tarde. É verão e o céu ainda está claro. A multidão
comprime-se em volta da guilhotina, erguida no centro da antiga Place du
Thrône, atual Barrière de Vincennes. Junto dos degraus que conduzem ao
cadafalso, o carrasco, Charles-Henri Sanson, espera respeitosamente de pé,
flanqueado por dois ajudantes. Há quarenta anos vem prestando esse serviço ao
governo, com inalterável resignação. O calor é opressivo, e em toda a praça
reina um odor mefítico de sangue.
Vindos
da cidade, despontam os carroções. Hoje são dois, e vêm bastante cheios: ao
todo, serão quarenta vítimas. Recebem-nas as exclamações e ameaças habituais,
mas o barulho logo se abafa em murmúrios de espanto. Acontece que, entre os
condenados, se vêem diversas mulheres de capa branca: são as dezesseis
carmelitas do convento de Compiègne. Ao contrário dos seus companheiros de
infortúnio, não deixam pender a cabeça nem choram ou gritam; trazem o rosto
erguido, e a linha firme do corpo é sublinhada pelas mãos amarradas às costas.
E cantam: aos ouvidos de todos, ressoam as notas esquecidas da Salve Rainha em
latim e do Te Deum. Até para o mais empedernido dos basbaques presentes, é um
espetáculo inaudito.
Quando
os carroções param ao pé do cadafalso, o burburinho faz-se silêncio absoluto.
Até essas mulheres histéricas, as chamadas "fúrias da guilhotina",
que sempre estão na primeira fila dos espectadores, emudecem.
As
primeiras a descer são as carmelitas. Uma delas, a priora, Madre Teresa de
Santo Agostinho, aproxima-se do carrasco e pede-lhe que lhes conceda uns
minutos para poderem renovar os seus votos e que a deixe ser a última a sofrer
a execução, para que possa animar cada uma das suas filhas até o fim. Sanson,
alma delicada, concorda de bom grado.
Todas
juntas, cantam o Veni Creator Spiritus. A seguir, renovam os seus votos
religiosos. Enquanto rezam, uma voz de mulher sussurra na multidão: "Essas
boas almas, vejam se não parecem anjos! Pela minha fé, se essas mulheres não
forem diretas ao paraíso, é porque o paraíso não existe!"
A
priora recua até a base da escada. Tem nas mãos uma estatueta de cerâmica da
Virgem Maria com o Menino Jesus ao colo. A primeira a ser chamada, a mais jovem
de todas, é a noviça Constança. Ajoelha-se diante da Madre e pede-lhe a benção.
Segundo uma testemunha, ter-se-ia também acusado nesse momento de não haver
terminado o ofício do dia. Com um sorriso a Madre diz-lhe: "Vai, minha
filha, confiança! Acabarás de rezá-lo no Céu"... e dá-lhe a beijar a
imagem.
Contança
sobe rapidamente os degraus, entoando o salmo Laudate Dominum omnes gentes,
"Louvai o Senhor, todos os povos". "Ia alegre, como se se
dirigisse para uma festa". O carrasco e seus ajudantes, com gesto
profissional, dispõem-na debaixo da guilhotina. Ouve-se o golpe surdo do
contrapeso, o ruído seco da lâmina que cai, o baque da cabeça recolhida num
saco de couro. Sem solução de continuidade, o corpo é lançado ao carroção
funerário.
Uma
por uma, as freiras ajoelham-se diante da priora e pedem-lhe a benção e
permissão para morrer. Cantam o hino iniciado por Constança. Quando chega a vez
da Irmã de Jesus Crucificado, que tem 78 anos, os jovens ajudantes do carrasco
têm de descer para ajudá-la a vencer os degraus. Ela diz-lhes afavelmente:
"Meus amigos, eu vos perdôo de todo o coração, tal como desejo que Deus me
perdoe".
Só
falta a Madre. Com gesto simples e firme, beija a estatuinha e confia-a à
primeira pessoa que tem ao lado. Tem 41 anos, um rosto expressivo, nem muito
bonito nem feio; o porte é, mais do que altivo, descontraído. Os olhos
castanhos, sofridos mas irradiando bondade, procuram os do pe. Lamarche, que as
confessara no dia anterior na prisão e que se encontra entre a multidão. Como
quem tem pressa em concluir uma tarefa urgente, sobe por sua vez os degraus.
Agora
tudo terminou. Pode-se cortar o silêncio como se fosse um queijo. Muitos dos
assistentes choram baixinho. Anos mais tarde, encontrar-se-ão — registrados em
cartas pessoais, diários íntimos e memoriais — os ecos da emoção que
experimentaram e dos efeitos que ela lhes causou: muitos sentiram a necessidade
de mudar de vida, de retomar a prática dos sacramentos, um ou outro de
ingressar num convento... Um deles, um menino que presenciara a cena das
janelas de um prédio situado em frente da guilhotina, guardou dela uma
impressão tão profunda que, anos mais tarde, quando fazia o serviço militar,
carregava sempre consigo as obras de Santa Teresa de Ávila e acabou por
fazer-se sacerdote. "O amor vence sempre", costumava dizer a Madre
priora; "o amor vence tudo".
Os
corpos foram levados às pressas para o antigo convento dos agostinianos do
Faubourg de Picpus. Lá foram lançados na fossa comum e cobertos de cal viva.
Hoje há ali um gramado cercado de ciprestes, com uma simples cruz de ferro. É
um lugar de silêncio e oração.
[...]
Fonte: Permanência
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