Parece que a dor da paixão de Cristo não foi maior que todas as outras
dores.
1. — Pois, a dor do paciente aumenta conforme a
gravidade e a duração do sofrimento. Ora, certos mártires padeceram sofrimentos
mais graves e mais longos do que Cristo; assim, Lourenço, assado em grelhas, e
Vicente cujas carnes foram laceradas por unhas de ferro. Logo, parece que a dor
dos sofrimentos de Cristo não foi a máxima.
2. Demais. — A força do espírito mitiga a dor, a
ponto de os estóicos ensinarem que a alma do sábio não é susceptível de
tristeza. E Aristóteles diz que a virtude moral faz conservar o justo meio nas
paixões. Ora, Cristo teve a virtude perfeitíssima da alma. Logo, parece que
Cristo sofreu a mínima das dores.
3. Demais. — Quanto mais sensível é um paciente,
tanto maior é a dor da paixão. Ora, a alma é mais sensível que o corpo, pois,
pela alma é que o corpo sente. E também, Adão parece ter tido, no estado de
inocência, um corpo mais sensível que o de Cristo, que assumiu o corpo humano
com as suas deficiências naturais. Logo, parece que a dor da alma padecente no
purgatório ou no inferno, ou ainda a dor de Adão, se alguma sofreu, teria sido
maior que a dor da paixão de Cristo.
4. Demais. — A perda de um maior bem causa uma dor
maior. Ora, o pecador, pecando, perde um maior bem que Cristo, sofrendo, porque
a vida da graça é melhor que a da natureza humana. Demais, Cristo, que perdeu a
vida, havendo de ressurgir três dias depois, parece que perdeu um bem menor do
que aqueles que perdem a vida, havendo de permanecer mortos. Logo, parece que a
dor de Cristo não foi a máxima das dores.
5. Demais. — A inocência do paciente diminui a dor
da paixão. Ora, Cristo sofreu inocentemente, segundo a Escritura: Eu era
como um manso cordeiro que élevado a ser vítima. .Logo, parece que a dor da
paixão de Cristo não foi a máxima.
6. Demais. — Nada do que teve Cristo era supérfluo.
Ora, uma dor mínima de Cristo bastaria para o fim da salvação humana, pois,
teria uma virtude infinita, por causa da sua pessoa divina. Logo, foi supérfluo
assumir a máxima das dores.
Mas, em contrário,
a Escritura diz, da pessoa de Cristo: Atendei e vê de se há dor
semelhante à minha dor.
SOLUÇÃO. — Como
dissemos, quando tratamos das deficiências assumidas por Cristo, ele sofreu
verdadeiramente a dor, na sua paixão. Tanto a sensível, causada pelos tormentos
corpóreos, como a interior, causada pela apreensão do mal, que se chama
tristeza. Ora, ambas essas dores foram máximas em Cristo, entre as dores da
vida presente. O que se explica por quatro razões. Primeiro, pelas causas da
dor. — Pois, a dor sensível teve como causa uma lesão corpórea cheia
de acerbidade, tanto pela generalidade da paixão, de que já tratamos, como pelo
gênero da mesma. Pois, a morte dos crucificados é acerbíssima, por serem
trespassados em lugares nervosos e sobremaneira sensíveis, que são as mãos e os
pés. E além disso, o peso mesmo do corpo pendente continuamente aumenta a dor;
acrescentando-se ainda a diuturnidade dela, pois, os crucificados não morrem
logo como os mortos pela espada. — Quanto à dor interna teve as
causas seguintes. Primeiro todos os pecados do gênero humano, pelos quais
satisfazia com os seus sofrimentos; por isso como que os avocou a si, dizendo: Os
clamores dos meus pecados. Segundo e especialmente, a culpa dos judeus e
dos outros, que lhe infligiram a morte; e sobretudo a dos discípulos, que se
escandalizaram com a paixão de Cristo. Terceiro, ainda, a perda da vida do
corpo, naturalmente horrível à natureza humana. Em segundo lugar, a grandeza da
dor pode ser considerada relativamente à sensibilidade do paciente. — Assim,
o seu corpo tinha a melhor das compleições; pois, fora formado milagrosamente
por obra do Espírito Santo. Porque nada é mais perfeito que o produzido por
milagre, como o nota S. João Crisóstomo, a propósito da água convertida em
vinho por Cristo, nas bodas. Assim, o sentido do tato, que serve para perceber
a dor, era em Cristo extremamente delicado. — Também a alma, nas suas
potências interiores, apreendia com grande eficácia todas as causas de
tristeza. Terceiro, a grandeza da dor de Cristo na sua paixão, pode ser
considerada quanto à pureza da mesma dor. Pois, nos outros pacientes, mitiga-se
a tristeza interior e também a dor externa, pela reflexão racional, causando
uma certa derivação ou redundância das potências superiores para as inferiores.
Oque não se deu na paixão de Cristo, pois. à cada uma das potências permitia
agir dentro do que lhe era próprio, como diz Damasceno. Em quarto lugar, a
grandeza da dor de Cristo pode ser considerada quanto ao fato de ser a sua
paixão e a sua dor assumidas voluntariamente, com o fim de livrar o homem do
pecado. Por isso, assumiu uma dor tão grande, que fosse proporcionada àgrandeza
do fruto dela resultante. Assim, pois, de todas essas causas simultaneamente
consideradas resulta claro que a dor de Cristo foi a máxima das dores.
DONDE A RESPOSTÀ ÀPRIMEIRA OBJEÇÃO. — A
objeção colhe quanto a uma só das causas de sofrimento enumeradas, a saber, a
lesão corpórea, causa da dor sensível, Mas, as outras causas aumentaram muito
mais a dor de Cristo na sua paixão, como se disse.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A virtude moral não mitiga do
mesmo modo a tristeza interior e ador sensível externa, Assim, a tristeza
interior ela a diminui diretamente, estabelecendo nela a mediedade, como em
matéria própria. Ao passo que a virtude moral constitui a mediedade nas
paixões, como estabelecemos na Segunda Parte, introduzindo nelas não uma
quantidade real, mas uma quantidade proporcional, de modo que a paixão não
ultrapasse a regra racional. E como os estóicos reputavam a tristeza totalmente
inútil, por isso criam que ela se divorcia totalmente da razão e, por
consequência, deve ser totalmente evitada pelo sábio, Mas, na verdade das
causas, há uma certa tristeza digna de louvor, como o prova Agostinho: é a
procedente de um amor santo, como quando nos entristecemos dos pecados próprios
ou dos alheios, e também é considerada como útil quando tem por fim satisfazer
pelas pecados, segundo aquilo do Apóstolo: A tristeza, que é segundo
Deus, produz para a salvação uma penitência estável. Por isso Cristo, a fim
de satisfazer pelos pecados de todos os homens, assumiu uma tristeza máxima
pela sua quantidade absoluta, mas que não ultrapassava a regra racional. - Mas
quanto àdor exterior do sentido, a virtude moral não a diminui diretamente,
porque essa dor não obedece àrazão, mas resulta da natureza do corpo. Diminui-a,
porém indiretamente pela redundância das potências superiores para as
inferiores. Oque não se deu com Cristo, como dissemos.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A dor da alma do padecente,
separada, é própria do estado futuro de danação, que excede todos os males desta
vida, como a glória dos Santos excede todos os bens da vida presente. Por isso,
quando dizemos que a dor de Cristo foi máxima, não a comparamos com a dor da
alma separada. - Quanto ao corpo de Adão, ele não podia sofrer se não tivesse
pecado, tornando-se assim mortal e passível. E, sofrendo, padeceria menos que o
corpo de Cristo, pelas razões referidas. — Donde também resulta que
mesmo se, por impossível, considerássemos que Adão no estado de inocência
sofreu, a sua dor teria sido menor que a de Cristo.
RESPOSTA À QUARTA. — Cristo não somente sofreu
perdendo a vida do seu próprio corpo, mas também pelos pecados de todos os
homens. Porque a dor de Cristo ultrapassou toda dor de qualquer paciente. Quer
porque procedia de uma sabedoria e caridade maiores, que aumentam a dor do
padecente; quer também porque sofreu simultaneamente por todos os pecados,
segundo aquilo da Escritura: Verdadeiramente ele foi oque tomou sobre si as
nossas fraquezas. — Mas a vida corporal de Cristo foi de tão
grande dignidade, e, sobretudo, pela divindade que lhe estava unida, que sofreu
mais, perdendo-a, mesmo momentaneamente, que qualquer outro homem perdendo a
sua, por qualquer tempo que fosse. Donde o dizer o Filósofo, que o virtuoso
tanto mais ama a sua vida, quanto mais a tem como melhor; e, contudo, a expõe
pelo bem da virtude, E semelhantemente, Cristo, tendo uma vida amável por
excelência, a expôs pelo bem da caridade, segundo aquilo da Escritura: Dei a
minha amada alma em mãos de seus inimigos.
RESPOSTA À QUINTA. — A inocência do paciente
diminui numericamente a dor da paixão; porque quando padece por culpa, sofre
não só pela pena, mas também pela culpa; sendo inocente, porém, sofre só pela
pena. Contudo a sua inocência lhe aumenta a dor, porque sabe que não merece o mal
que lhe é infligido. E por isso são tanto mais repreensíveis os que não se
compadecem dele, conforme a Escritura: O justo perece e não há
quem considere no seu coração.
RESPOSTA À SEXTA. — Cristo quis liberar o gênero
humano dos pecados, não só pelo seu poder, mas ainda por justiça. Por isso, não
só levou em conta a grandeza do poder que tinha a sua dor, em virtude da
divindade que lhe estava unida, mas também o quanto bastava essa dor pela sua
natureza humana, para tão grande satisfação.
(Suma Teológica, part. III,
quet.46, art. 4)
Nenhum comentário:
Postar um comentário