terça-feira, 15 de outubro de 2013

Dois Frades - G. K. Chesterton - Parte I



Assim como se pode considerar São Francisco o protótipo dos aspectos romanescos e emotivos da vida, assim Santo Tomás é o protótipo do seu aspecto racional, razão por que, em muitos aspectos, estes dois santos se completam. Um dos paradoxos da história é que cada geração é convertida pelo santo que se encontra mais em contradição com ela. E, assim como São Francisco se dirigia ao século XIX prosaico, assim Santo Tomás tem mensagem especial que dirigir à nossa geração, um tanto inclinada a descrer do valor da razão.
Chesterton


DOIS FRADES - Parte I

ANTES DE MAIS NADA, permitam-me um breve comentário acerca daquela conhecida personalidade que se lança, precipitadamente, até onde os próprios Anjos do Doutor Angélico receariam penetrar.

Há algum tempo, escrevi um livrinho desta espécie e proporções acerca de São Francisco de Assis, e, pouco depois (não sei quando nem como, como diz a canção, e certamente também não sei porquê), prometi escrever um livro semelhante a respeito de Santo Tomás de Aquino. A promessa, na sua audácia, era franciscana, e o paralelo estava muito longe de ser tomístico, na sua lógica.

 Pode-se fazer um esboço de São Francisco; de Santo Tomás só se pode traçar o plano, como se se tratasse de uma cidade labiríntica, apesar de ele, de certo modo, adaptar-se tanto a um livro muito maior como a um muito menor. O que realmente se sabe da sua vida pode-se dizer em meia dúzia de páginas, porque não desaparece, como São Francisco, debaixo de uma torrente de casos pessoais e de lendas populares. O que sabemos, ou poderíamos saber, ou talvez possamos ter a sorte de aprender a respeito da sua obra encherá provavelmente mais bibliotecas no futuro do que encheu no passado.

Podemos dar um breve esboço de São Francisco; mas, no que respeita a Santo Tomás, tudo depende do acabamento desse esboço. De certa maneira, seria até medieval iluminar uma miniatura do Poverello, cujo próprio nome é diminutivo. Mas fazer um compêndio, ao modo de comprimidos, do Boi Mudo da Sicília está além das possibilidades dos que conseguem, por esse processo, meter um boi numa xícara de chá. Podemos porém abrigar a esperança de vir a fazer um esboço de biografia, agora que todo o mundo parece capaz de escrever um resumo de história ou de qualquer outra coisa. Apenas, no caso presente, o esboço excede as suas próprias proporções. Não existe por aí, nos guarda-roupas, o hábito capaz de cobrir este frade colossal.


Eu já disse que esses retratos só o podem ser em esboço, mas o contraste real é aqui tão flagrante, que, se víssemos agora aparecer em silhueta estas duas pessoas a descer o monte no seu hábito de frade, até acharíamos cômico esse contraste. Seria a mesma coisa que ver, lá longe, as silhuetas de D. Quixote e de Sancho Pança, ou de Falstaff e do Mestre Slender 1. São Francisco era magro, pequeno e vivaz — fino como um cordel, vibrante como a corda de um arco, e, nos seus movimentos, semelhante a uma flecha disparada. A vida toda ele foi um conjunto de mergulhos e de fugas: correndo atrás do mendigo, ou nu pela floresta, atirando-se para o estranho navio, ou se arremessando para a tenda do sultão e propondo atirar-se ao fogo. Exteriormente, deve ter-se assemelhado ao esqueleto muito fino e amarelado de uma folha outonal, a dançar eternamente adiante do vento; em verdade, porém, ele é que era o vento.

Santo Tomás era grande e pesado como um touro: gordo, vagaroso, tranquilo; brando e magnânimo, mas pouco sociável; tímido, ainda que se considere à parte a humildade da santidade; abstrato, ainda sem as suas eventuais experiências de transporte ou êxtase, cuidadosamente ocultadas.

São Francisco era tão fogoso e até irrequieto, que os eclesiásticos diante dos quais aparecia de repente o julgavam doido. Santo Tomás mostrava-se tão tardo, que os mestres nas escolas que frequentava com regularidade o supunham estúpido. Em verdade, pertencia a essa classe de estudantes, não raros, que preferem ser considerados estúpidos a ver os seus sonhos invadidos por estúpidos mais ativos e animados. Esse contraste exterior se torna extensivo a quase todos os aspectos das duas personalidades. O paradoxo de São Francisco r que, amando a poesia tão apaixonadamente, desconfiava muito dos livros. O fato saliente em Santo Tomás consistia em amar os livros e viver deles; em viver a vida própria do clérigo ou letrado dos Contos de Cantuária,2 o qual preferia possuir cem livros de Aristóteles e sua filosofia a todas as riquezas que o mundo lhe pudesse dar. Quando lhe perguntavam o que agradecia mais a Deus, respondia simplesmente:

Ter compreendido todas as páginas que li.

São Francisco punha grande vivacidade nas suas poesias, ao passo que nos seus documentos era indeciso; Santo Tomás devotou-se toda a vida a documentar os sistemas completos das literaturas paga e cristã; e, como homem que descansa, de vez em quando escrevia um poema.

Ambos viram o mesmo problema por ângulos diferentes: o da simplicidade e o da sutileza. São Francisco julgava ser bastante abrir o coração aos maometanos para os persuadir a não adorar Maomé. Santo Tomás quebrava a cabeça com distinções e deduções muito sutis a respeito do absoluto ou do acidente, apenas para evitar que interpretassem erradamente Aristóteles.

São Francisco era filho de um negociante de classe média, e, enquanto toda a sua vida foi de revolta contra a vida mercantil do pai, conservou, apesar de tudo, alguma coisa da animação e social adaptabilidade que torna um mercado tão ruidoso como uma colmeia. É como se diz vulgarmente: amigo que era dos prados verdes, não deixava a relva crescer-lhe debaixo dos pés. Ele era um arame vivo,3 como dizem os milionários e os bandidos americanos. É característico dos mecanicistas modernos lembrar-se só da metáfora mecânica tirada de coisas inanimadas, ainda quando procuram imaginar um ser vivo. Aquilo a que se chama verme vivo existe, mas não há um arame vivo. São Francisco sinceramente consentiria t]ue lhe chamassem verme, mas muito vivo. Sendo o maior inimigo do ideal "andar a adquirir", abandonara, é certo, o "adquirir", mas continuava a "andar".
Por seu lado, Santo Tomás provinha de um mundo em que poderia ter-se dado a todas as comodidades; sempre foi desses homens cujo trabalho tem algo da serenidade do ócio. Foi trabalhador Icnaz, mas ninguém o poderia supor precipitado. Tinha em si algo de indefinível, que caracteriza os que trabalham quando não precisam trabalhar. Por ser ele um grande senhor de nascimento, tal serenidade pôde ficar como hábito quando já não constituía motivo. Mas nele se expressava unicamente nos seus elementos mais atraentes; havia, por exemplo, algo disso na sua cortesia e na sua paciência espontâneas. Qualquer santo é homem antes de ser santo, e um santo pode fazer-se de qualquer espécie de homem; muitos escolhem entre os diferentes tipos de santos segundo o gosto de cada um. Confesso porém que, enquanto a glória romanesca de São Francisco nada perdeu, para mim, do seu esplendor, comecei a sentir nos últimos anos quase tanta ou, por certos aspectos, muito mais afeição por este homem que inconscientemente vivia num grande coração e numa grande cabeça como alguém que herdasse uma grande casa e nela oferecesse hospitalidade generosa, mas algo despreocupada. Há ocasiões em que São Francisco, o homem menos mundano que jamais andou por este mundo, se mostra mais prático do que eu esperava.
Recentemente, Santo Tomás de Aquino reapareceu na cultura corrente das universidades e dos salões de modo tal, que há dez anos pareceria estranho. Esta atenção que se concentra nele é, sem dúvida alguma, muito diferente da que popularizou São Francisco há uns vinte anos. O santo é remédio por ser antídoto. Realmente é esta a razão por que o santo é tantas vezes mártir: tomam-no por veneno por ser teriaga. Em geral sucede restabelecer ele a saúde do mundo exagerando aquilo que o mundo despreza: um elemento qualquer, que não é, de modo nenhum, sempre o mesmo em todas as épocas. No entanto, cada geração procura o seu santo por instinto, não o que ela quer, mas o de que precisa. Com certeza é este o significado destas palavras, tão mal compreendidas, dirigidas aos primeiros santos — "Vós sois o sal da terra" — que levaram o ex-imperador da Alemanha a proclamar, com a maior seriedade, que os seus rotundos alemães eram o sal da terra, querendo dizer com isso que eram os mais fortes e, por conseguinte, os melhores do mundo. O sal, todavia, serve para condimentar e conservar a carne não por lhe ser semelhante a ela, mas por ser muito diferente dela. Cristo não disse aos Seus Apóstolos que eram unicamente excelentes pessoas, ou as únicas pessoas excelentes, mas que eram pessoas excepcionais, permanentemente discordantes e incompatíveis; o texto a respeito do sal da terra é em verdade tão vivo e penetrante como o gosto do sal. Por serem pessoas excepcionais, é que não deveriam perder ,i sua qualidade excepcional. "Se o sal perder o sabor, que havemos de salgar?" é uma pergunta muito mais aguda do que qualquer lamentação a respeito do preço da melhor carne. Sc o mundo se tornar demasiado mundano, pode ser censurado pela Igreja; mas, se a Igreja se tornar demasiado mundana, não pode ser censurada por mundana pelo mundo.
Daqui resulta o paradoxo da história, de cada geração ser convertida pelo santo que mais em desacordo está com ela. São Francisco despertou uma atração curiosa e quase sobrenatural entre os vitorianos e entre os ingleses do século XIX, que pareciam à primeira vista muitíssimo presumidos e satisfeitos a respeito do seu comércio e do seu senso comum. Até os liberais ingleses que ele criticou por sua presunção, e não só um inglês presumido como Matthew Arnold,4 começaram a descobrir, pouco a pouco, o mistério da Idade Média através da história estranha contada com penas e chamas nos quadros hagiográficos de Giotto. Havia algo na história de São Francisco que deixava para trás todas aquelas qualidades inglesas, muito vulgares e vãs, para chegar a outras, mais ocultas v humanas: a brandura secreta do coração, o vago sentimento poético, o amor da paisagem e dos animais.

1 Falstaff (1370-1459), famoso capitão e diplomata inglês, foi senescal da Normandia e governador do Maine, além de companheiro de orgias de Henrique IV, rei da Inglaterra. Shakesperare fez dele, em Henrique IV e em As Alegres Comadres de Windsor, o tipo do glutão, do libertino, do cínico. Mestre Slender San, por seu lado, personagem também das Alegres Comadres de Windsor, ó de grande magreza e de caráter diverso do caráter de Falstaff. ChosliTlon, poivm, só os compara aqui pelo nspivlo físico.
2 Os Contos de Cantuária são de Geoffrey Chaucer (1340-1400), poeta inglês que muito contribuiu para a fixação da língua e da gramática inglesas. 
3 "Arame vivo" traduz aqui a expressão "live wir". A solução, excelente, é do trdutor português Antônio Álvaro Dória.
Poeta e crítico inglês (1822-1888), repassado de helenismo e sobranceria.
Filósofo e sociólogo inglês (1820-1903), de fulcro evolucionista.



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