Assim
como se pode considerar São Francisco o protótipo dos aspectos romanescos e
emotivos da vida, assim Santo Tomás é o protótipo do seu aspecto racional, razão
por que, em muitos aspectos, estes dois santos se completam. Um dos paradoxos
da história é que cada geração é convertida pelo santo que se encontra mais em
contradição com ela. E, assim como São Francisco se dirigia ao século XIX
prosaico, assim Santo Tomás tem mensagem especial que dirigir à nossa geração,
um tanto inclinada a descrer do valor da razão.
Chesterton
DOIS
FRADES - Parte I
ANTES
DE MAIS NADA, permitam-me um breve comentário acerca daquela conhecida
personalidade que se lança, precipitadamente, até onde os próprios Anjos do Doutor Angélico receariam penetrar.
Há
algum tempo, escrevi um livrinho desta espécie e proporções acerca de São
Francisco de Assis, e, pouco depois (não sei quando nem como, como diz a
canção, e certamente também não sei porquê), prometi escrever um livro semelhante
a respeito de Santo Tomás de Aquino. A promessa, na sua audácia, era
franciscana, e o paralelo estava muito longe de ser tomístico, na sua lógica.
Pode-se fazer um esboço de São Francisco; de
Santo Tomás só se pode traçar o plano, como se se tratasse de uma cidade
labiríntica, apesar de ele, de certo modo, adaptar-se tanto a um livro muito
maior como a um muito menor. O que realmente se sabe da sua vida pode-se dizer
em meia dúzia de páginas, porque não desaparece, como São Francisco, debaixo de
uma torrente de casos pessoais e de lendas populares. O que sabemos, ou
poderíamos saber, ou talvez possamos ter a sorte de aprender a respeito da sua
obra encherá provavelmente mais bibliotecas no futuro do que encheu no passado.
Podemos
dar um breve esboço de São Francisco; mas, no que respeita a Santo Tomás, tudo
depende do acabamento desse esboço. De certa maneira, seria até medieval
iluminar uma miniatura do Poverello, cujo próprio nome é diminutivo. Mas fazer
um compêndio, ao modo de comprimidos, do Boi Mudo da Sicília está além das
possibilidades dos que conseguem, por esse processo, meter um boi numa xícara
de chá. Podemos porém abrigar a esperança de vir a fazer um esboço de
biografia, agora que todo o mundo parece capaz de escrever um resumo de história
ou de qualquer outra coisa. Apenas, no caso presente, o esboço excede as suas
próprias proporções. Não existe por aí, nos guarda-roupas, o hábito capaz de
cobrir este frade colossal.
Eu
já disse que esses retratos só o podem ser em esboço, mas o contraste real é
aqui tão flagrante, que, se víssemos agora aparecer em silhueta estas duas
pessoas a descer o monte no seu hábito de frade, até acharíamos cômico esse
contraste. Seria a mesma coisa que ver, lá longe, as silhuetas de D. Quixote e
de Sancho Pança, ou de Falstaff e do Mestre Slender 1. São Francisco era magro,
pequeno e vivaz — fino como um cordel, vibrante como a corda de um arco, e, nos
seus movimentos, semelhante a uma flecha disparada. A vida toda ele foi um
conjunto de mergulhos e de fugas: correndo atrás do mendigo, ou nu pela
floresta, atirando-se para o estranho navio, ou se arremessando para a tenda do
sultão e propondo atirar-se ao fogo. Exteriormente, deve ter-se assemelhado ao
esqueleto muito fino e amarelado de uma folha outonal, a dançar eternamente
adiante do vento; em verdade, porém, ele é que era o vento.
Santo
Tomás era grande e pesado como um touro: gordo, vagaroso, tranquilo; brando e
magnânimo, mas pouco sociável; tímido, ainda que se considere à parte a
humildade da santidade; abstrato, ainda sem as suas eventuais experiências de
transporte ou êxtase, cuidadosamente ocultadas.
São
Francisco era tão fogoso e até irrequieto, que os eclesiásticos diante dos
quais aparecia de repente o julgavam doido. Santo Tomás mostrava-se tão tardo,
que os mestres nas escolas que frequentava com regularidade o supunham
estúpido. Em verdade, pertencia a essa classe de estudantes, não raros, que
preferem ser considerados estúpidos a ver os seus sonhos invadidos por
estúpidos mais ativos e animados. Esse contraste exterior se torna extensivo a
quase todos os aspectos das duas personalidades. O paradoxo de São Francisco r
que, amando a poesia tão apaixonadamente, desconfiava muito dos livros. O fato
saliente em Santo Tomás consistia em amar os livros e viver deles; em viver a
vida própria do clérigo ou letrado dos Contos de Cantuária,2 o qual preferia
possuir cem livros de Aristóteles e sua filosofia a todas as riquezas que o
mundo lhe pudesse dar. Quando lhe perguntavam o que agradecia mais a Deus, respondia
simplesmente:
—
Ter compreendido todas as páginas que li.
São
Francisco punha grande vivacidade nas suas poesias, ao passo que nos seus
documentos era indeciso; Santo Tomás devotou-se toda a vida a documentar os
sistemas completos das literaturas paga e cristã; e, como homem que descansa,
de vez em quando escrevia um poema.
Ambos
viram o mesmo problema por ângulos diferentes: o da simplicidade e o da
sutileza. São Francisco julgava ser bastante abrir o coração aos maometanos
para os persuadir a não adorar Maomé. Santo Tomás quebrava a cabeça com
distinções e deduções muito sutis a respeito do absoluto ou do acidente, apenas
para evitar que interpretassem erradamente Aristóteles.
São
Francisco era filho de um negociante de classe média, e, enquanto toda a sua
vida foi de revolta contra a vida mercantil do pai, conservou, apesar de tudo,
alguma coisa da animação e social adaptabilidade que torna um mercado tão
ruidoso como uma colmeia. É como se diz vulgarmente: amigo que era dos prados
verdes, não deixava a relva crescer-lhe debaixo dos pés. Ele era um arame
vivo,3 como dizem os milionários e os bandidos americanos. É característico dos
mecanicistas modernos lembrar-se só da metáfora mecânica tirada de coisas
inanimadas, ainda quando procuram imaginar um ser vivo. Aquilo a que se chama
verme vivo existe, mas não há um arame vivo. São Francisco sinceramente
consentiria t]ue lhe chamassem verme, mas muito vivo. Sendo o maior inimigo do
ideal "andar a adquirir", abandonara, é certo, o "adquirir",
mas continuava a "andar".
Por
seu lado, Santo Tomás provinha de um mundo em que poderia ter-se dado a todas
as comodidades; sempre foi desses homens cujo trabalho tem algo da serenidade
do ócio. Foi trabalhador Icnaz, mas ninguém o poderia supor precipitado. Tinha
em si algo de indefinível, que caracteriza os que trabalham quando não precisam
trabalhar. Por ser ele um grande senhor de nascimento, tal serenidade pôde
ficar como hábito quando já não constituía motivo. Mas nele se expressava
unicamente nos seus elementos mais atraentes; havia, por exemplo, algo disso na
sua cortesia e na sua paciência espontâneas. Qualquer santo é homem antes de
ser santo, e um santo pode fazer-se de qualquer espécie de homem; muitos escolhem
entre os diferentes tipos de santos segundo o gosto de cada um. Confesso porém
que, enquanto a glória romanesca de São Francisco nada perdeu, para mim, do seu
esplendor, comecei a sentir nos últimos anos quase tanta ou, por certos
aspectos, muito mais afeição por este homem que inconscientemente vivia num
grande coração e numa grande cabeça como alguém que herdasse uma grande casa e
nela oferecesse hospitalidade generosa, mas algo despreocupada. Há ocasiões em
que São Francisco, o homem menos mundano que jamais andou por este mundo, se
mostra mais prático do que eu esperava.
Recentemente,
Santo Tomás de Aquino reapareceu na cultura corrente das universidades e dos
salões de modo tal, que há dez anos pareceria estranho. Esta atenção que se
concentra nele é, sem dúvida alguma, muito diferente da que popularizou São
Francisco há uns vinte anos. O santo é remédio por ser antídoto. Realmente é esta
a razão por que o santo é tantas vezes mártir: tomam-no por veneno por ser
teriaga. Em geral sucede restabelecer ele a saúde do mundo exagerando aquilo
que o mundo despreza: um elemento qualquer, que não é, de modo nenhum, sempre o
mesmo em todas as épocas. No entanto, cada geração procura o seu santo por
instinto, não o que ela quer, mas o de que precisa. Com certeza é este o significado
destas palavras, tão mal compreendidas, dirigidas aos primeiros santos —
"Vós sois o sal da terra" — que levaram o ex-imperador da Alemanha a
proclamar, com a maior seriedade, que os seus rotundos alemães eram o sal da
terra, querendo dizer com isso que eram os mais fortes e, por conseguinte, os
melhores do mundo. O sal, todavia, serve para condimentar e conservar a carne
não por lhe ser semelhante a ela, mas por ser muito diferente dela. Cristo não
disse aos Seus Apóstolos que eram unicamente excelentes pessoas, ou as únicas
pessoas excelentes, mas que eram pessoas excepcionais, permanentemente
discordantes e incompatíveis; o texto a respeito do sal da terra é em verdade
tão vivo e penetrante como o gosto do sal. Por serem pessoas excepcionais, é
que não deveriam perder ,i sua qualidade excepcional. "Se o sal perder o
sabor, que havemos de salgar?" é uma pergunta muito mais aguda do que qualquer
lamentação a respeito do preço da melhor carne. Sc o mundo se tornar demasiado
mundano, pode ser censurado pela Igreja; mas, se a Igreja se tornar demasiado
mundana, não pode ser censurada por mundana pelo mundo.
Daqui
resulta o paradoxo da história, de cada geração ser convertida pelo santo que
mais em desacordo está com ela. São Francisco despertou uma atração curiosa
e quase sobrenatural entre os vitorianos e entre os ingleses do século XIX, que
pareciam à primeira vista muitíssimo presumidos e satisfeitos a respeito do seu
comércio e do seu senso comum. Até os liberais ingleses que ele criticou por
sua presunção, e não só um inglês presumido como Matthew Arnold,4 começaram a
descobrir, pouco a pouco, o mistério da Idade Média através da história
estranha contada com penas e chamas nos quadros hagiográficos de Giotto. Havia
algo na história de São Francisco que deixava para trás todas aquelas
qualidades inglesas, muito vulgares e vãs, para chegar a outras, mais ocultas v
humanas: a brandura secreta do coração, o vago sentimento poético, o amor da
paisagem e dos animais.
1 Falstaff (1370-1459), famoso capitão e diplomata inglês, foi senescal da Normandia e governador do Maine, além de companheiro de
orgias de Henrique IV, rei da Inglaterra. Shakesperare
fez dele, em Henrique IV e em As Alegres Comadres de
Windsor, o tipo do glutão, do libertino, do cínico. Mestre Slender San, por seu lado, personagem também das Alegres
Comadres de Windsor, ó de grande magreza e de caráter diverso
do caráter de Falstaff. ChosliTlon, poivm,
só os compara aqui pelo nspivlo físico.
2 Os Contos de Cantuária
são de Geoffrey Chaucer (1340-1400), poeta
inglês que muito contribuiu para a fixação da língua e da gramática inglesas.
3 "Arame vivo" traduz aqui a expressão "live wir". A
solução, excelente, é do trdutor
português Antônio Álvaro Dória.
4 Poeta e crítico inglês
(1822-1888), repassado de helenismo e sobranceria.
5 Filósofo e sociólogo inglês
(1820-1903), de fulcro evolucionista.
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