Por Gilbert Keith Chesterton (A simple thought, in The Thing, Sheed & Ward, Londres, 1946)*
Traduzido
por Henrique Elfes
A
maior parte dos homens retornaria aos antigos costumes em matéria de fé e de
moral se conseguissem ampliar suficientemente os seus horizontes. É
principalmente a sua estreiteza mental que os mantém nos trilhos da negação.
Mas esse alargamento mental é facilmente mal interpretado, porque a mente
precisa ser alargada para poder enxergar as coisas simples, ou mesmo as que são
evidentes em si mesmas. Temos necessidade de uma espécie de esticamento da
nossa imaginação para conseguirmos ver os objetos óbvios delinearem-se contra o
seu fundo óbvio, especialmente quando se trata de objetos grandes colocados diante
de um fundo grande.
Sempre
há, por exemplo, aquele tipo de pessoas que não conseguem enxergar nada além da
mancha no tapete, a tal ponto que são incapazes de enxergar sequer o tapete;
esse tipo de atitude tende à irritação, que por vezes se amplia até à rebelião.
Depois, há aquele tipo de pessoas que só conseguem enxergar o tapete, talvez
por tratar-se um tapete novo; essa atitude já é mais humana, mas pode
facilmente estar tingida de vaidade e até de vulgaridade. Há também o homem que
só enxerga o aposento atapetado, e assim tende a estar isolado de muitas outras
coisas – especialmente das dependências do empregados. E, por fim, há o homem
alargado pela imaginação, que é incapaz de permanecer sentado no quarto
atapetado, ou mesmo no porão do carvão, sem enxergar a todo o momento o perfil
da casa inteira delineado contra o seu fundo primevo de terra e céu. Este
homem, que compreende que desde a sua origem o telhado foi concebido como um
escudo contra o sol e a neve, e a porta contra o frio e a lama, saberá melhor –
e não pior – do que o primeiro que não deveria haver uma mancha no tapete. E,
ao contrário desse homem, saberá também por que existe um tapete.
Este
homem olhará do mesmo modo as falhas e manchas que possa haver na história da
sua tradição e do seu credo. Não procurará explicá-las engenhosamente, nem
muito menos tentará negá-las. Muito pelo contrário, enxerga-las-á com toda a
simplicidade, mas também as enxergará dentro de um marco muito amplo, e
contrastando com um fundo ainda mais amplo. Fará aquilo que os seus críticos,
em hipótese alguma, são capazes de fazer: verá as coisas óbvias e fará as
perguntas óbvias. Quanto mais leio as modernas críticas contra a religião, e
especialmente contra a minha própria religião, mais me assusta essa estreita
concentração em determinados pontos, essa incapacidade imaginativa de
compreender o problema como um todo.
Andei
lendo recentemente uma condenação muito moderada das práticas católicas
tradicionais, vinda dos Estados Unidos, onde esse tipo de condenações nem
sempre é muito moderado. Falando de maneira genérica, poderia dizer que essa
crítica assume a forma de um enxame de questiúnculas, às quais eu estaria
plenamente disposto a responder se não tivesse uma consciência tão viva das
grandes perguntas que não são formuladas, aos invés das pequenas perguntas que
o são. Acima de tudo, sinto falta deste fato tão simples e tão esquecido: sejam
ou não verdadeiras determinadas acusações que se lançam contra os católicos, o
que está além de qualquer dúvida é que são verdadeiras quando aplicadas a
qualquer outra instituição. O crítico nunca se lembra de fazer alguma coisa tão
simples como comparar o católico com o não-católico. A única coisa que nunca
parece cruzar-lhe a mente, quando argumenta acerca da idéia que tem da Igreja,
é perguntar-se com toda a simplicidade que seria do mundo sem a Igreja.
É
isto o que procuro exprimir ao dizer que se pode ser demasiado estreito para
enxergar a casa que se chama Igreja contra o seu fundo que se chama Cosmos. A
título de exemplo: o autor que acabei de mencionar incorre na milionésima
repetição mecânica da acusação de repetição mecânica; diz ele que repetimos as
orações e outras fórmulas verbais sem pensar no seu significado. Não há dúvida
de que conta com milhares de simpatizantes que repetirão essa denúncia depois
dele, sem pensarem nem por um momento no que significa. Mas, antes mesmo de
explicarmos quais são realmente os ensinamentos da Igreja a esse respeito, ou
de citarmos as suas inúmeras recomendações para que se procure prestar atenção
às orações vocais, ou de expormos as razões das razoáveis exceções que ela
autoriza, há uma ampla, simples e luminosa verdade acerca de toda essa questão,
e qualquer pessoa pode vê-la se andar pelo mundo de olhos abertos: é o fato óbvio
de que todas as formas de dizer humanas tendem a fossilizar-se em formalismos,
e de que a Igreja é um exemplo único na História, não por falar uma língua
morta num mundo de línguas imortais, mas, pelo contrário, por ter preservado
uma língua viva num mundo de línguas moribundas. Explico-me.
Quando
o grande brado grego, velho como o próprio cristianismo, invade a Missa, muitos
talvez se surpreenderão ao descobrir que há muita gente na igreja que repete
“Senhor, tende piedade de nós”, e pretende realmente afirmar o que está
dizendo. Seja como for, essas pessoas têm muito mais consciência do que dizem
do que um homem que encabeça uma carta com um “Prezado Senhor”. “Prezado” é,
neste contexto, evidentemente uma palavra morta; no lugar em que é empregada, deixou
de ter qualquer significado. No entanto, é exatamente isto o que qualquer
crítico alega contra “os ritos e as formas papistas”: trata-se de um ato
realizado de maneira rápida, ritual, sem se conservar a menor lembrança do seu
significado.
Quando
o Senhor Jones, advogado, escreve “prezado Senhor” ao Senhor Brown, o
banqueiro, não pretende afirmar que sente profunda afeição pelo banqueiro, ou
que o seu coração está repleto de caridade cristã, nem mesmo naquela ínfima
medida em que o está o coração de um pobre papista ignorante a assistir à
Missa. Ora bem, a vida, essa vida humana ordinária, simples, divertida, pagã,
simplesmente transborda de palavras mortas e de cerimônias sem significado. Não
se escapará delas fugindo da Igreja para o “mundo”. Quando o crítico em
questão, ou mil outros críticos iguais a ele, afirma que só se exige do
católico uma presença material ou mecânica na Missa, está a afirmar algo que
simplesmente não se aplica ao católico médio nas suas disposições para com os
sacramentos católicos. Mas diz algo que efetivamente é verdade se for aplicado
a qualquer funcionário público médio no desempenho das suas funções, a qualquer
baile da Corte ou recepção no Ministério, ou a aproximadamente três quartos
daquilo que a sociedade normal chama “visitas de cortesia”.
Essa
morte lenta dos atos sociais repetitivos pode ser indiferente em si mesma, ou
pode ser melancólica, ou pode ser uma conseqüência do Pecado Original, ou pode
ser qualquer coisa que o crítico deseje. Mas aqueles que fizeram disso,
centenas e centenas de vezes, uma acusação especial e concentrada contra a
Igreja, são homens cegos para o inteiro mundo humano em que vivem e incapazes
de enxergar qualquer coisa para além da única coisa que sabem repetir.
Ainda
no escrito que mencionei, há inúmeros outros casos dessa estranha e sinistra
inconsciência. O autor queixa-se, por exemplo, de que os sacerdotes são
conduzidos de olhos vendados ao seu ministério e não compreendem os deveres que
traz consigo. Também isso já o ouvimos antes. Mas raramente o ouvi formulado de
maneira tão extraordinária como nessa acusação de que um homem pode ser
definitivamente votado ao sacerdócio “desde a infância”. O autor parece ter
idéias bastante curiosas e elásticas acerca da duração da infância, <...>
pois um sacerdote tem pelo menos vinte e quatro anos quando formula os seus
compromissos. Mais uma vez, sinto-me perseguido pela enorme e nua e mesmo assim
negligenciada comparação entre a Igreja e tudo aquilo que está fora da Igreja.
<...>
Com
efeito, que havemos de dizer aos que quereriam comparar o patriotismo ou a
cidadania civil com a Igreja nesta matéria? Rapazes de dezoito anos têm de
alistar-se obrigatoriamente; na Guerra, vimos voluntários de dezesseis anos
serem aplaudidos por afirmarem que tinham dezoito; vimo-los ser lançados aos
milhares naquela imensa fornalha e câmara de torturas, que a sua imaginação era
incapaz de conceber de antemão, e da qual a sua honra os proibia de fugir; e
vimo-los ser mantidos nesses horrores ano após ano, sem qualquer esperança de
vitória; e vimo-los ser mortos como moscas, aos milhões, antes de que tivessem
tido a oportunidade de viver. Isto é o que faz o Estado; isto é o que faz o
“mundo”; isto é o que faz a sociedade, essa sociedade secularizada, prática e
razoável. E depois de tudo isso, ainda têm a inominável impudência de vir
queixar-se de nós porque permitimos que, dentre uma pequena minoria
especializada, um homem escolha uma vida de caridade e paz, não depois de ter
completado vinte e um anos, mas quando já se aproxima dos trinta, e depois de
ter tido quase dez anos para refletir serenamente sobre a sua vocação!
Em
suma, sinto falta, em tudo isso, da pergunta óbvia: qual o resultado que
obteremos se compararmos a Igreja com o “mundo” que está fora dela, ou que se
opõe a ela, ou que nos é oferecido como uma alternativa para a Igreja? E a
evidente resposta é que o “mundo”comete todas as barbaridades de que sempre
acusou a Igreja, e as comete de maneira muito pior, e as comete em escala muito
maior, e – e isto é o pior e o mais importante – as comete sem dispor de
padrões para voltar à sanidade nem de motivos para fazer um movimento de
penitência. Os abusos católicos podem ser reformados, porque dispomos de uma
forma universalmente aceita; os pecados católicos podem ser expiados, porque há
um teste e um princípio de expiação. Em que outra parte do mundo de hoje
havemos de encontrar semelhante teste ou padrão? Ou mesmo qualquer coisa além
de veleidades sempre cambiantes, que fizeram do patriotismo a grande moda de há
dez anos, e do pacifismo a grande moda dez anos depois?
O
perigo atual é que as pessoas não se dispõem a ampliar suficientemente os seus
horizontes a ponto de se tornarem capazes de enxergar as coisas óbvias, e esta
é uma delas. Os homens acusam a tradição Romana de ser semi-pagã, e depois se
refugiam num paganismo completo; queixam-se de que os cristãos se deixaram
contaminar pelo paganismo, e depois fogem dos doentes para se refugiarem junto
à doença. Não há uma única falta institucional imputada à Igreja Católica que
não esteja presente de maneira muitíssimo mais flagrante, e até gritante, em
qualquer outra instituição – o Estado, a Escola, a moderna máquina tributária e
policial – que as pessoas se voltam, na esperança de que serão salvas por elas
da superstição dos seus pais. Esta é a contradição, esta é a violenta colisão,
este é o inevitável desastre intelectual em que estão envolvidas até as
orelhas. Quanto a nós, só nos resta esperar, pondo em jogo toda a paciência de
que sejamos capazes, até descobrirmos quanto tempo levarão para descobrir o que
foi que lhes aconteceu.
*Fonte:
CHESTERTON, G. K. Os Paradoxos do Cristianismo. São Paulo: Quadrante, 1993
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