domingo, 9 de junho de 2013

Uma idéia simples

                                                                                                                                                                                                                            


Por Gilbert Keith Chesterton (A simple thought, in The Thing, Sheed & Ward, Londres, 1946)*
Traduzido por Henrique Elfes

A maior parte dos homens retornaria aos antigos costumes em matéria de fé e de moral se conseguissem ampliar suficientemente os seus horizontes. É principalmente a sua estreiteza mental que os mantém nos trilhos da negação. Mas esse alargamento mental é facilmente mal interpretado, porque a mente precisa ser alargada para poder enxergar as coisas simples, ou mesmo as que são evidentes em si mesmas. Temos necessidade de uma espécie de esticamento da nossa imaginação para conseguirmos ver os objetos óbvios delinearem-se contra o seu fundo óbvio, especialmente quando se trata de objetos grandes colocados diante de um fundo grande.

Sempre há, por exemplo, aquele tipo de pessoas que não conseguem enxergar nada além da mancha no tapete, a tal ponto que são incapazes de enxergar sequer o tapete; esse tipo de atitude tende à irritação, que por vezes se amplia até à rebelião. Depois, há aquele tipo de pessoas que só conseguem enxergar o tapete, talvez por tratar-se um tapete novo; essa atitude já é mais humana, mas pode facilmente estar tingida de vaidade e até de vulgaridade. Há também o homem que só enxerga o aposento atapetado, e assim tende a estar isolado de muitas outras coisas – especialmente das dependências do empregados. E, por fim, há o homem alargado pela imaginação, que é incapaz de permanecer sentado no quarto atapetado, ou mesmo no porão do carvão, sem enxergar a todo o momento o perfil da casa inteira delineado contra o seu fundo primevo de terra e céu. Este homem, que compreende que desde a sua origem o telhado foi concebido como um escudo contra o sol e a neve, e a porta contra o frio e a lama, saberá melhor – e não pior – do que o primeiro que não deveria haver uma mancha no tapete. E, ao contrário desse homem, saberá também por que existe um tapete.

Este homem olhará do mesmo modo as falhas e manchas que possa haver na história da sua tradição e do seu credo. Não procurará explicá-las engenhosamente, nem muito menos tentará negá-las. Muito pelo contrário, enxerga-las-á com toda a simplicidade, mas também as enxergará dentro de um marco muito amplo, e contrastando com um fundo ainda mais amplo. Fará aquilo que os seus críticos, em hipótese alguma, são capazes de fazer: verá as coisas óbvias e fará as perguntas óbvias. Quanto mais leio as modernas críticas contra a religião, e especialmente contra a minha própria religião, mais me assusta essa estreita concentração em determinados pontos, essa incapacidade imaginativa de compreender o problema como um todo.

Andei lendo recentemente uma condenação muito moderada das práticas católicas tradicionais, vinda dos Estados Unidos, onde esse tipo de condenações nem sempre é muito moderado. Falando de maneira genérica, poderia dizer que essa crítica assume a forma de um enxame de questiúnculas, às quais eu estaria plenamente disposto a responder se não tivesse uma consciência tão viva das grandes perguntas que não são formuladas, aos invés das pequenas perguntas que o são. Acima de tudo, sinto falta deste fato tão simples e tão esquecido: sejam ou não verdadeiras determinadas acusações que se lançam contra os católicos, o que está além de qualquer dúvida é que são verdadeiras quando aplicadas a qualquer outra instituição. O crítico nunca se lembra de fazer alguma coisa tão simples como comparar o católico com o não-católico. A única coisa que nunca parece cruzar-lhe a mente, quando argumenta acerca da idéia que tem da Igreja, é perguntar-se com toda a simplicidade que seria do mundo sem a Igreja.

É isto o que procuro exprimir ao dizer que se pode ser demasiado estreito para enxergar a casa que se chama Igreja contra o seu fundo que se chama Cosmos. A título de exemplo: o autor que acabei de mencionar incorre na milionésima repetição mecânica da acusação de repetição mecânica; diz ele que repetimos as orações e outras fórmulas verbais sem pensar no seu significado. Não há dúvida de que conta com milhares de simpatizantes que repetirão essa denúncia depois dele, sem pensarem nem por um momento no que significa. Mas, antes mesmo de explicarmos quais são realmente os ensinamentos da Igreja a esse respeito, ou de citarmos as suas inúmeras recomendações para que se procure prestar atenção às orações vocais, ou de expormos as razões das razoáveis exceções que ela autoriza, há uma ampla, simples e luminosa verdade acerca de toda essa questão, e qualquer pessoa pode vê-la se andar pelo mundo de olhos abertos: é o fato óbvio de que todas as formas de dizer humanas tendem a fossilizar-se em formalismos, e de que a Igreja é um exemplo único na História, não por falar uma língua morta num mundo de línguas imortais, mas, pelo contrário, por ter preservado uma língua viva num mundo de línguas moribundas. Explico-me.

Quando o grande brado grego, velho como o próprio cristianismo, invade a Missa, muitos talvez se surpreenderão ao descobrir que há muita gente na igreja que repete “Senhor, tende piedade de nós”, e pretende realmente afirmar o que está dizendo. Seja como for, essas pessoas têm muito mais consciência do que dizem do que um homem que encabeça uma carta com um “Prezado Senhor”. “Prezado” é, neste contexto, evidentemente uma palavra morta; no lugar em que é empregada, deixou de ter qualquer significado. No entanto, é exatamente isto o que qualquer crítico alega contra “os ritos e as formas papistas”: trata-se de um ato realizado de maneira rápida, ritual, sem se conservar a menor lembrança do seu significado.

Quando o Senhor Jones, advogado, escreve “prezado Senhor” ao Senhor Brown, o banqueiro, não pretende afirmar que sente profunda afeição pelo banqueiro, ou que o seu coração está repleto de caridade cristã, nem mesmo naquela ínfima medida em que o está o coração de um pobre papista ignorante a assistir à Missa. Ora bem, a vida, essa vida humana ordinária, simples, divertida, pagã, simplesmente transborda de palavras mortas e de cerimônias sem significado. Não se escapará delas fugindo da Igreja para o “mundo”. Quando o crítico em questão, ou mil outros críticos iguais a ele, afirma que só se exige do católico uma presença material ou mecânica na Missa, está a afirmar algo que simplesmente não se aplica ao católico médio nas suas disposições para com os sacramentos católicos. Mas diz algo que efetivamente é verdade se for aplicado a qualquer funcionário público médio no desempenho das suas funções, a qualquer baile da Corte ou recepção no Ministério, ou a aproximadamente três quartos daquilo que a sociedade normal chama “visitas de cortesia”.

Essa morte lenta dos atos sociais repetitivos pode ser indiferente em si mesma, ou pode ser melancólica, ou pode ser uma conseqüência do Pecado Original, ou pode ser qualquer coisa que o crítico deseje. Mas aqueles que fizeram disso, centenas e centenas de vezes, uma acusação especial e concentrada contra a Igreja, são homens cegos para o inteiro mundo humano em que vivem e incapazes de enxergar qualquer coisa para além da única coisa que sabem repetir.

Ainda no escrito que mencionei, há inúmeros outros casos dessa estranha e sinistra inconsciência. O autor queixa-se, por exemplo, de que os sacerdotes são conduzidos de olhos vendados ao seu ministério e não compreendem os deveres que traz consigo. Também isso já o ouvimos antes. Mas raramente o ouvi formulado de maneira tão extraordinária como nessa acusação de que um homem pode ser definitivamente votado ao sacerdócio “desde a infância”. O autor parece ter idéias bastante curiosas e elásticas acerca da duração da infância, <...> pois um sacerdote tem pelo menos vinte e quatro anos quando formula os seus compromissos. Mais uma vez, sinto-me perseguido pela enorme e nua e mesmo assim negligenciada comparação entre a Igreja e tudo aquilo que está fora da Igreja. <...>

Com efeito, que havemos de dizer aos que quereriam comparar o patriotismo ou a cidadania civil com a Igreja nesta matéria? Rapazes de dezoito anos têm de alistar-se obrigatoriamente; na Guerra, vimos voluntários de dezesseis anos serem aplaudidos por afirmarem que tinham dezoito; vimo-los ser lançados aos milhares naquela imensa fornalha e câmara de torturas, que a sua imaginação era incapaz de conceber de antemão, e da qual a sua honra os proibia de fugir; e vimo-los ser mantidos nesses horrores ano após ano, sem qualquer esperança de vitória; e vimo-los ser mortos como moscas, aos milhões, antes de que tivessem tido a oportunidade de viver. Isto é o que faz o Estado; isto é o que faz o “mundo”; isto é o que faz a sociedade, essa sociedade secularizada, prática e razoável. E depois de tudo isso, ainda têm a inominável impudência de vir queixar-se de nós porque permitimos que, dentre uma pequena minoria especializada, um homem escolha uma vida de caridade e paz, não depois de ter completado vinte e um anos, mas quando já se aproxima dos trinta, e depois de ter tido quase dez anos para refletir serenamente sobre a sua vocação!

Em suma, sinto falta, em tudo isso, da pergunta óbvia: qual o resultado que obteremos se compararmos a Igreja com o “mundo” que está fora dela, ou que se opõe a ela, ou que nos é oferecido como uma alternativa para a Igreja? E a evidente resposta é que o “mundo”comete todas as barbaridades de que sempre acusou a Igreja, e as comete de maneira muito pior, e as comete em escala muito maior, e – e isto é o pior e o mais importante – as comete sem dispor de padrões para voltar à sanidade nem de motivos para fazer um movimento de penitência. Os abusos católicos podem ser reformados, porque dispomos de uma forma universalmente aceita; os pecados católicos podem ser expiados, porque há um teste e um princípio de expiação. Em que outra parte do mundo de hoje havemos de encontrar semelhante teste ou padrão? Ou mesmo qualquer coisa além de veleidades sempre cambiantes, que fizeram do patriotismo a grande moda de há dez anos, e do pacifismo a grande moda dez anos depois?

O perigo atual é que as pessoas não se dispõem a ampliar suficientemente os seus horizontes a ponto de se tornarem capazes de enxergar as coisas óbvias, e esta é uma delas. Os homens acusam a tradição Romana de ser semi-pagã, e depois se refugiam num paganismo completo; queixam-se de que os cristãos se deixaram contaminar pelo paganismo, e depois fogem dos doentes para se refugiarem junto à doença. Não há uma única falta institucional imputada à Igreja Católica que não esteja presente de maneira muitíssimo mais flagrante, e até gritante, em qualquer outra instituição – o Estado, a Escola, a moderna máquina tributária e policial – que as pessoas se voltam, na esperança de que serão salvas por elas da superstição dos seus pais. Esta é a contradição, esta é a violenta colisão, este é o inevitável desastre intelectual em que estão envolvidas até as orelhas. Quanto a nós, só nos resta esperar, pondo em jogo toda a paciência de que sejamos capazes, até descobrirmos quanto tempo levarão para descobrir o que foi que lhes aconteceu.



*Fonte: CHESTERTON, G. K. Os Paradoxos do Cristianismo. São Paulo: Quadrante, 1993



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