TERCEIRA PARTE
O SEMBLANTE DO SENHOR
IX– QUARTA PALAVRA: O DESAMPARO.
De todas as horas dolorosas, a mais cruel é a em
que o homem vê a solidão fazer-se em torno de si. Quer nos venha bruscamente
após uma desgraça, quer, antes, nos invada em seguimento à velhice: poucos
escapam a esse isolamento dos últimos dias, e as vidas mais felizes naufragam
finalmente na indiferença dos homens e das coisas.
Que contraste, então, entre a agitação, a
solicitude, as lisonjas do começo, e os abandonos do fim!
Todos aqueles a quem amamos já se foram, e os que
nos rodeiam não nos hão conhecido; nada mais recebemos, muito é se temos a quem
dar; aliás, é tarde demais para atar relações que a morte deverá romper tão em
breve, e a gente encerra penosamente a sua carreira como um estranho numa terra
que nos vai fugir. É o desamparo final. É o último golpe que Deus vibra no
nosso instinto, que se apegava a tudo o que respirava vida e movimento, a tudo
quanto reputávamos a felicidade.
Jesus quis, na Sua Paixão, experimentar essa dolorosa
solidão: mas, neste caso como em todos os demais, Ele não vibrou em Si mesmo os
golpes a meio, porém levou tão longe quanto possível a crueldade do desamparo:
era preciso.
Começou por operar em torno de Si esse desamparo de
maneira fulminante.
Dentro em vinte e quatro horas faz-se uma
desagregação súbita e imprevista em tudo o que se edificava a Seus lados;
pode-se dizer que houve no fim da Sua vida uma verdadeira catástrofe: Ele caiu
sem transição do triunfo no desprezo, e com rapidez assombrosa.
Ei-lO na Cruz: está no fim das Suas três horas de
agonia, as trevas já O envolvem como as sombras do túmulo, mas se pode
distingui-lO naquele patíbulo que é o Seu derradeiro leito, o Seu derradeiro
pouso, o Seu derradeiro bem. Ele já não está na terra, mas também não está no
céu, está suspenso de pregos, retido numa vida expirante por chagas alargadas.
Há quarenta e oito horas apenas, Ele não apareceria
nas ruas de Jerusalém que não fosse aclamado por todos; ufanos de um mestre
cuja fonte já se nimbava com a coroa real, os Seus discípulos caminhavam de
fronte erguida... Mas, hoje, onde estão? Que resta deles? Um em doze. O povo
renegou-O, os sacerdotes entregaram-nO, tudo se voltou contra Ele, e Ele
próprio, para acrescentar os últimos traços a esse supremo desamparo, acaba de
Se desfazer de Sua Mãe.
Nada mais tem: resta-Lhe, porém, Seu Pai do céu.
É exatamente no momento em que nada mais tem que o
homem reduzido a esses cruéis apuros compreende e sente que Deus é tudo. A sua
voz ganha então acentos que penetram o céu, e o seu olhar mortiço reveste, pelo
desprezo que ele faz dos homens, um lume de dignidade e de grandeza
incomparáveis.
Quando o Papa Bonifácio VIII, uma das mais
alevantadas imagens do poder pontifício, viu-se, na idade de oitenta anos,
abandonado por todos os cardeais e entregue aos seus inimigos, ei-lo que
subitamente se reanima: na sala vazia e erma, de onde todos haviam fugido,
restavam-lhe o seu trono: sentou-se nele com todas as exterioridades da
majestade pontifícia, e ali, assistido por um cardeal e por um religioso – os
únicos fiéis, - de tiara à cabeça, de cruz na mão, Rei supremo e grande apesar
de tudo, enquanto as portas cediam sob a pressão brutal e sacrílega dos
enviados de Filipe de França, ele exclamava: “Ao menos quero morrer como
Papa...” Almeno vaglio morire come Papa.
Poucas atitudes tão altivas, e todos, amigos ou
inimigos, se inclinam ante essa grandeza que morre de pé.
O que dá essa coragem é, com a visão claríssima da
injustiça e da covardia dos homens, a consciência da nossa integridade e também
a confiança num Deus que tudo vê: e então naturalmente os nossos olhos se
elevam para o alto, apelando para Aquele que é a própria justiça.
Todos estes sentimentos e outros ainda mais vivos
já os experimentara Jesus no curso tão agitado da Sua vida pública: quanta vez,
para Se justificar, Ele invocara Seu Pai do céu, e o Pai Lhe respondera!
Hoje, pois, nesta hora suprema e túrbida da Paixão,
neste exato ponto a que chegou, abandonado de todos, entregue, perdido, sem
socorro de fora, moribundo a quem nada pudera já proteger: é o momento de Se
volver perdidamente para o céu distante, onde Ele é sempre ouvido.
E eis aí por que, num derradeiro esforço, por um
último instinto, Ele soergue a fronte pesada, abre os olhos apesentados, pra
procurar lá em cima, como um esteio supremo, Seu Pai.
E Este Lhe faltou.
No momento decisivo, o apoio procurado fugia-Lhe: e
o seio daquele Pai, que ainda ontem se abria aos Seus menores desejos, vai
fechar-se inexoravelmente àquele que Se dignou de fazer-Se “Pecado” por nós (2
Cor. 5,21).
Os homens jamais provarão tão cruel desamparo. A
hora escura do fim ilumina-se, não raro, para eles de uma radiação da bondade
celeste; quando tudo nos há fugido, quando tudo nos abandona, quando os nossos
passos já não têm nem luz nem arrimo: é então que, nessa noite suprema, se
levanta para nós, no fundo da nossa estrada, qual derradeiro sol, o coração de
nosso Pai do céu.
Não há pecador, por mais criminoso que seja, que,
apelando para o Deus, não ouça logo o Pai que Lhe responde.
Assim não foi, porém, na noite do Calvário.
São quase três horas. Há duas horas e meia eu
Cristo Se engolfou num silêncio tão profundo quanto às trevas que O circundam.
Que fazia Ele nesse grande silêncio? Porque, nem mesmo ao redor dEle, o quer
que seja que ouse perturbá-lO.
O ladrão perdoado calou-se; o ladrão pecador a
custo tartamudeia as suas antigas blasfêmias, hebetado pelo sofrimento, pelo
pavor e pela noite.
O povo aos poucos retirou-se. Os fariseus bem que
perpassam ainda ao pé da Cruz, ao trote espantado das suas mulas, para verem o
estado da vítima: mas já não ousam escarnecer tão abertamente. Os próprios
soldados falam mais baixo, e Maria, arrimada ao Seu novo filho, olha estupefata
para o antigo que fecha os olhos e Se cala.
Que silêncio, que lúgubre pesadume naquele ar
escurecido, que assombro circula em volta aos três patíbulos!
E Jesus, qual afogado que perde o pé e se submerge
pouco a pouco num mar profundo, Jesus parece desaparecer e abismar-se naquele
silêncio solene. Que procurava Ele então nesse silêncio?
Procurava a Deus, Seu Pai: - “Meu Pai, Eu sei que
Vós Me escutais sempre”. Na Sua derrocada geral, quer-se-Lhe, pois apegar,
porque dEle é que espera a palavra de paz e de lenitivo que Lhe recusam os
homens.
E espera, e nada vem, nem mesmo um anjo como ontem
à noite no momento da agonia. E as águas sobem, parece que a onda passou por
sobre Jerusalém, que o dilúvio voltou com a sua marcha ascendente e irresistível.
O desamparo avança, estreita-O; banha o Calvário, já cobriu quantos Se Lhes
agitavam ao pé: Madalena, João, Sua Mãe, tudo desapareceu. Quando Ele abre os
olhos amortecidos pelo pranto e pelo sangue, vê só negror, confusão, horror; e
tudo isto sobe sempre, sobe incessantemente. Eis que o Seu peito sagrado é
atingido; alguns instantes mais, e a vaga passada, atulhada dos destroços de
toda a humanidade pecadora, vai-se-Lhe embater contra o semblante.
- Ó Pai, ó Pai, exoro-Vos e Vós não Me ouves, peço-Vos
socorro e Vós não Me ajudas: mutatus es
mihi in crudelem (Job. 30,21); como Vos tornaste cruel para comigo, as
Vossas delícias e as Vossas complacências!
E, a onda sobe sempre; e Ele não pode fugir, está
cravado, e sente aquela morte lenta que O assalta e O sufoca.
- Ó Pai!...
Se Jesus Cristo fosse um simples homem, depois de
sentir a terra toda refugá-lO, os Seus abandoná-lO, e o próprio céu extinguir
os seus raios luminosos e a sua suprema esperança, teria caído então no abismo
sem fundo do desespero.
Se Lhe não experimentou as irremediáveis feridas,
por isto que a divindade retinha em suas garras poderosas a sua humanidade
desfalecente e nas últimas, experimentou-lhe pelo menos todos os sombrios
horrores, e, no momento em que a onda negra que tudo invadira em volta dEle
subiu tanto que Lhe tocou os lábios, a garganta estrangulada pelo pavor, pelo
tédio e pela ânsia derradeira, teve um soluço que lançou na noite da natureza e
na de todos os corações este apelo desolado e pungente:
- Meu Deus! Meu Deus! porque então também Vós Me
abandonastes?...
Este lamento dilacerador perdeu-se no horror do
silêncio, como um último apelo do homem que soçobra sem esperança no fundo das
ondas. Estava acabado.
- Não. – Não queria ouvi-lO? – Não. – Repudiava-O
então? – Certamente. E, antes que Lhe estender a mão para O retirar daquele mar
medonho, ter-Se-ia inclinado sobre aquele agonizante e tê-lO-ia mergulhado
nEle.
Ó Senhor, como Vos tornaste cruel para com Ele!
Assim O queria a hora e o peso da justiça eterna.
Ao de fora só se ouviu o grito desesperado do
moribundo; por dentro, Jesus continuava as Suas queixas dolorosas: os profetas
conservaram-nos esses gritos da Sua angústia que persistiam em subir para o
coração fechado do Pai piedoso.
- “Ah! dizia Ele (Sl. 21, Comentário de Bossuet),
eu choro, rujo sem esperança: aos outros Vós escutáveis no entanto; outrora,
bastou que Meu pai Abraão Vos rogasse, e Vós lhe entregáveis cinco reis. Isaac,
Jacob, José, Moisés, os Israelitas no deserto, a todos os escutáveis, mas a
Mim!... será porque Me tornei um verme desprezível, contorcido pela dor? Ai! Já
nem sou um homem, sou a vergonha do povo... eles se riem todos à volta de Mim:
e Vós Vos calais! Neste dia de horror Me abandonais: ter-Me-ia Eu feito desprezível
aos Vossos olhos por estar imerso num incrível pavor?
“Dantes Vós Me protegíeis; desde o Meu nascimento
um anjo me abria o Egito, outro dali Me fazia volver; outros Me serviam no
deserto; ontem havia um para me fortificar: e hoje quem é que está em torno de
Mim?
“Touros, leões, feras encarniçadas; os homens são
como caçadores que Me perseguem; pois bem, vede: a caça está encurralada,
acuada, não pode mexer-Se, a matilha estraçalha-A: e Vós Vos calais!
“Meu Deus, Meu Deus, olhai para Mim, serei bastante
digno de pena? Quid dicam? Já nem
seio o que dizer!... Pater, salvifica me
ex hac hora: Pai, salvai-Me, salvai-Me desta hora: eu não posso nada por
Mim. Escorro como água, derreto-Me como cera, estou desconjuntado, as Minhas
juntas não se agüentam mais, toda a Minha força secou... já nem sequer posso
falar-Vos...
E aquela cabeça tornava a pender, esmagada pelo
horror, e aquele rosto espavorido não sabia onde deter os olhares desolados.
Haverá mais incrível desamparo? Era preciso.
E é esta terrível necessidade que causa o desespero
misterioso e divino de Jesus.
O desespero provém, com efeito, de uma
possibilidade e de uma impossibilidade, e é do conflito violento destas duas
realidades que brota a dor intensa do desespero.
- Eu poderia ter evitado esta horrível desgraça,
chama O desesperado, e eis que já não posso sair dela: este será o verme eterno
dos réprobos.
- Poderia ter-Me subtraído a esta horrível fiança
pelos pecadores, exclama Jesus na Cruz: a escolha Me era deixada, e Eu quis
atirar-Me neste mar sem fundo: e dele já não posso sair.
Podia não beber esta taça envenenada, o veneno
requeima-Me as entranhas e seca-Me o sangue, e Eu não posso mais vomitá-lo. Os
pecadores da humanidade estão pregados na Minha carne como a Minha carne está
pregada na Cruz. Eu podia escapar à justíssima cólera de Deus, e fui Eu quem a
chamou sobre Mim: tenho de suportá-la toda.
Eis o que podia dizer consigo mesmo o Cristo, e,
como última conseqüência, devia Ele acrescentar – e era a mais atroz dentada do
desespero:
- “Não só não posso ter nenhum socorro humano, mas
já nem sequer mereço o socorro divino”.
Não se pode ir mais longe: abandonado dos homens,
abandonado de Deus!
- Oh! como! Senhor meu, também Vós Me rejeitais?
Depois disto, que mais poderia Eu esperar?
Há está diferença entre a agonia do horto e a da
Cruz: que na primeira Cristo não está sem esperança; há ainda um lampejo no Seu
coração angustiado: Meu Pai, tudo Vos é possível, ainda podeis, pois, afastar
este cálice. E Jesus apega-Se perdidamente a este relâmpago.
Porém na Cruz não há mais esse lampejo: toda
possibilidade é tirada: o Pai tem que ser severo, é o terrível vencimento da
fiança: era preciso.
Oportuit
Christum pati.
Ó pobre Jesus, por quê? Por quê?
Eu pecara, e necessário se fazia que Jesus,
“penetrado todo dos meus pecados, pecador Ele próprio” (Bossuet), sentisse o
grande castigo próprio do pecado: o desamparado.
Eu abandonara Deus, e mister se fazia que,
carregando sobre Si todos esses culposos abandonos, Ele lhes suportasse o
castigo tremendo que me era devido por uma eternidade: o desamparo.
Terrível pena de talião: olho por olho, dente por
dente, abandono por abandono, desamparo por desamparo.
Provou Ele essa pena, é dela que morre hoje. Mas
justa essa morte é que me salva, e por causa do atroz desamparo em que agoniza
aquele divino pecador é que, doravante abençoado e perdoado, eu já não serei
desamparado.
E, se este é o último golpe da justiça, é também o
da bondade: em verdade, Ele não podia ir mais longe para expiar e para me
tranqüilizar.
Oração
Senhor, eu atinjo aqui a obra-prima da Vossa
bondade para comigo.
De todos os instantes sagrados da Vossa cruel
agonia, nenhum me é mais preciso do que este do Vosso inteiro desamparo.
Um Deus por todos abandonado para que o não seja eu
nunca; este último golpe do Vosso amor há de triunfar da minha desconfiança.
Eu creio, sinto, vejo que agora Vós quereis
salvar-me.
Ó divino desamparado, a Vós é que eu ei de invocar
nos Seus supremos abandonos, e a Vós é que oferecerei, até lá, todos os meus
desamparos. Amém.
(A Subida do Calvário, pelo Pe. Luís Perroy, S.J.;
Editora Vozes, III Edição, 1957.)
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