CAPITULO
XII
FELIZES
EFEITOS DAS TENTAÇÕES NAS ALMAS NEGLIGENTES
As
tentações, que parecem dever perder as almas negligentes, muitas vezes têm sido
um meio de que Deus se tem servido para retirá-las do estado de displicência em
que elas viviam, e para lhes fazer praticar a virtude com um fervor porfiado. Há
almas que levam uma vida esmorecida nas vias da piedade. Na verdade, não há
desordem assinalada na conduta delas; mas também elas não dão atenção à sua
perfeição. Se não cometem dessas faltas graves que as afastariam de Deus, fazem
pouco bem, pelo pouco cuidado que têm de praticar a mortificação dos sentidos e
das paixões mesmo honestas e, em certo sentido, inocentes, ou que lhes parecem
tais; e de agirem habitualmente num espírito de fé. A sua vida, todo natural na
maioria das suas ações, bem pouco mérito tem perante Deus. Elas são como uma
nau que, em tempo de calmaria, quase não faz caminho.
Por
misericórdia, Deus perturba essa calmaria por tempestades. A tentação desperta
a piedade adormecida nessa alma, que Deus ilumina nesse momento e que atrai a
si por sua graça. Ela se vê de repente à borda de um prec1p1cio que
lhe
faz horror. Vê-se a braços com inimigos que empregam alternativamente a doçura
e o terror para seduzi-la ou intimidá-la. A Religião age então no coração dela com
mais força. Assustada com o perigo, ela recorre ao seu Deus, em quem põe toda a
sua confiança, para sair vitoriosa do combate. Se os assaltos se renovam, para
evitar perder-se ela pensa seriamente em se fortificar contra os ataques
reiterados dos seus inimigos, por todos os meios que a Fé lhe fornece.
Destarte,
aplicada à oração, que deve alcançar-lhe as graças de força de que ela precisa
para resistir; unida a Deus, a quem o perigo em que ela se acha a reconduz sem
cessar; vigilante sobre si mesma, para não cair nas ciladas que lhe são armadas,
ela não age mais senão por motivos de piedade, coloca-se num exercício continuo
de virtude. Tudo o que deseja, tudo o que faz, quer que seja uma homenagem que
o seu coração preste a Deus. Quanto mais premida se sentir pelas paixões que a
atacarem, tanto mais se firmará na determinação de nunca se afastar dessa
trilha, a única que pode pô-la coberto dos ataques dos seus inimigos. Assim, de
uma vida negligente ela passa logo a uma vida de fervor, em que todos os seus
momentos são consagrados a Deus.
Essa
mudança deve ocorrer se essa alma, até então tíbia e displicente, for fiel
à
sua graça. Porquanto, assim atacada pela tentação, vendo a sua salvação em
perigo, querendo evitar a desgraça irreparável da sua perdição, por pouco que raciocinar
segundo os princípios da Fé ela compreenderá desde logo que haveria presunção, e
uma presunção bem culpada, se esperasse de Deus a vitória sem empregar, para
alcançá-la, nenhum dos meios a que Deus a ligou. Uma alma que, a pretexto da
misericórdia de Deus, pretendesse ter os socorros para resistir às paixões que
a atacam embora levasse uma vida dissipada e omitisse ou cumprisse com negligência
os exercícios de piedade; embora se aproximasse dos sacramentos ou raramente ou
com pouca preparação, e não quisesse incomodar-se para evitar as faltas leves;
essa alma tentaria a Deus: tornar-se-ia indigna do seu socorro; mereceria que
Deus permitisse que ela experimentasse toda a sua fraqueza, que se tornasse
escrava de todas as suas paixões.
Com
tais disposições, poder-se-ia dizer com verdade que essa alma tíbia e covarde não
quereria sinceramente resistir: porquanto querer o fim sem empregar os meios é realmente
não o querer. Deus lhe diria com justiça, como dizia ao seu povo: A vossa perdição
vem de vós, ó Israel (Os 13, 9). Não falo, pois, de uma alma desse caráter:
falo daquela que, apesar da sua negligência, teme bastante o pecado, ama bastante
o Senhor, para estar na disposição sincera de não o ofender mortalmente e,
conseguintemente, de empregar os meios que Deus lhe deu para obter a sua proteção.
A tentação é utilíssima a essa alma para tirá-la da sua indolência e para lhe fazer
renascer o seu fervor.
Os
Padres, na vida espiritual, convêm que Deus permite às vezes que uma alma
que
está na tibieza caia em alguma falta grave, para tirá-la do seu torpor pelo horror
que ela sente dessa falta.
(Tratado
das Tentações – PADRE MICHEL da Companhia de Jesus)
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