CAPITULO XIII
O TEMPO EMPREGADO EM COMBATER A TENTAÇAO NAO É TEMPO PERDIDO.
O que aflige muitas pessoas sujeitas às tentações é imaginarem
perder o seu tempo nesses combates. Dizem elas: Raramente posso viver no
recolhimento. Se quero aplicar-me à meditação, recitar orações, passar algum
tempo junto de Jesus Cristo residente no Sacramento do seu amor, não posso
ocupar-me de Deus: é esse quase sempre o tempo em que as tentações vêm assediar-me;
e passo-o quase todo inteiramente ocupada em me defender contra a impressão
delas. Topo com esses inimigos importunos e encarniçados até na Mesa santa,
onde vou receber meu Salvador e nutrir-me do Deus das virtudes. Que fruto pode
tirar-se de exercícios de piedade feitos nessa agitação?
Este pensamento lança essas pessoas assim tentadas num
abatimento perigoso. Para curá-las, tranquilizá-las e consolá-las, é importante
por-lhes debaixo dos olhos os princípios e as reflexões que devem fazer-lhes
conhecer o seu erro, e toda a vantagem que esse estado penoso Ihes proporciona
quando elas são fiéis.
É uma máxima universalmente reconhecida que não devemos
servir a Deus segundo as nossas ideias e os nossos gostos: devemos servi-lo
como ele o exige, e tal como lhe apraz. Deus liga suas graças e suas recompensas
não precisamente às boas obras que nos impomos, porém, às que Ele autoriza ou
que pede de nós. Neste principio é que se funda a decisão de que, se a obediência
vos aplica a algum emprego que vos impede de estar na meditação, satisfazendo
esse emprego com espirito interior sois tão agradável a Deus quanto se estivésseis
na meditação. E, se tirásseis de vós mesma o exercício desse emprego, para orar
e para meditar, não serviria o Senhor como Ele quer faltaríeis para com Ele, ao
invés de o honrar.
Este principio bastaria para vos convencer de que não
perdeis o vosso tempo quando, durante os exercícios de piedade, estais ocupada
em combater o inimigo da salvação. O demônio só tem poder contra os homens na
medida em que Deus lho permite. Ele não pôde por Jó em tantas provações e tentá-lo
de tantas maneiras, senão por permissão expressa do Senhor. Deus permite, pois,
esse estado de tentação em que vos achais; e, como as distrações são uma espécie
de tentação, deve-se aplicar-lhes o que aqui dizemos.
Como quer então Deus que o sirvais? Será por uma meditação
seguida e ininterrupta das coisas santas? Será por colóquios amorosos com Ele,
colóquios que nenhum afeto terreno venha perturbar? Não: Ele quer que o sirvais
por uma resistência fiel e constante a tudo o que o inimigo vos inspira para
vos seduzir e para vos fazer renunciar ao seu divino amor; quer que, a exemplo
dos Judeus ao reerguerem os muros de Jerusalém, empunheis com uma das mãos a espada
para resistir aos inimigos (2 Esd 4, 17) que vos atacam, e com a outra
trabalheis em elevar o edifício espiritual da vossa perfeição pelos sentimentos
de uma fé viva e de uma esperança firme: digo firme na vontade, embora, a
contragosto vosso, seja ela vacilante na imaginação. Tendes tido essa fidelidade?
Então tendes cumprido a vontade de Deus, e o tendes honrado como Ele o pedia de
vós nesse momento; tendes-lhe sido tão agradável na vossa submissão, na vossa
paciência, na vossa fidelidade em resistir às tentações, como se tivésseis
feito uma meditação animada de fervor o mais sensível, cheia de sentimentos os
mais afetuosos.
Pergunto-vos: perdemos o nosso tempo quando procedemos de
maneira tão assinalada e tão sólida? Deveis, pois, ficar tão satisfeita após um
exercício em que, pela misericórdia de Deus, houverdes suportado corajosamente os
assaltos dos inimigos da salvação, como se a houvésseis feito na maior
tranquilidade. Tereis tido nela menos doçura e gosto; porém o fruto, bem longe de
ser com isso diminuído, só terá feito aumentar. Tereis feito a vontade de Deus:
Deus reconhecê-lo-á pelas graças de que vos cumulará. O cumprimento dessa
vontade santa ter-vos-á sido mais penoso: essa pena não será esquecida na recompensa
que receberdes. O Espírito Santo assegura-nos disto pelo órgão do Apóstolo: Deus
não é injusto para esquecer as nossas penas e os nossos trabalhos (Heb 6, 10).
O tempo que empregamos em combater as tentações não é,
pois, um tempo perdido para a alma fiel, não somente porque prestamos a Deus a honra
e a homenagem que Ele exige, e pela maneira como a exige, como ainda porque nesses
combates adquirimos méritos que se multiplicam a cada instante. As perseguições,
multiplicando os sofrimentos dos Mártires, aumentavam-lhes a coroa: as tentações
são uma perseguição que tem o mesmo efeito quando somos fiéis.
No Eclesiástico, capítulo XXXI, o Espírito Santo declara feliz
o homem que pôde violar o mandamento de Deus e não o violou; que pôde fazer o
mal e não o fez. A sua felicidade corresponde ao mérito que ele adquiriu pela
sua fidelidade. Baseado neste principio, quando obedeceis à lei de Deus, e
quando cumpris a sua vontade de uma maneira que é penosa para a natureza, tendes
um duplo mérito: haverdes obedecido, e o haverdes feito com esforço, resistindo
e combatendo. O sacrifício que fazeis do natural que vos impele e que vos é
recompensado tanto no tempo, por novas graças, como na eternidade, por um
aumento de glória e de felicidade.
Argumentando com fundamento no mesmo principio, que
tesouro de méritos não deve amontoar uma alma que, atacada por diferentes tentações,
as combate generosamente para não se separar de Deus! É certo que cada sacrifício
que fazemos a Deus tem o seu merecimento e terá a sua recompensa. A cada vez
que a alma fiel resistiu à tentação, pode-se dizer: Ela pôde violar o
mandamento, pôde fazer o mal, e não o fez. Porém que número de sacrifícios não
faz uma alma que, frequentemente atacada, solicitada pela paixão, desaprova-a
constantemente, renuncia ao objeto que ela apresenta, resiste-lhe com perseverança!
Há poucos momentos que não sejam assinalados por uma vitória. Os esforços
reiterados e diversificados do inimigo só fazem aumentar o número das vitimas que
a alma fiel oferece ao seu Deus. Que tesouro de méritos não achará ela nessas
espécies de combates singulares com a paixão? Nem sempre ela percebe todos os
seus sacrifícios; mas não há nenhum deles que escape à vigilância do Senhor;
nenhum que não tenha a sua recompensa. Será preciso mais para consolar uma alma
nesse estado, e para animá-la à perseverança? Se o combate é penoso, a coroa é
brilhante; é imortal; é um momento de pena, e um peso imenso de glória (2 Cor 4,
17). E quereríamos perdê-lo por uma satisfação de um momento?
O mérito não se cinge a esses sacrifícios tão amiúde
reiterados; essa alma acha novos tesouros dele nas virtudes interiores que
pratica durante esse estado de tentação. Ela bem sente que não pode resistir com
constância sem o socorro do Céu, sem se tomar atenta às vistas e aos objetos da
Fé, sem se entregar aos sentimentos da Esperança e do Amor divino. O seu coração
está então num exercício continuo de oração e dos atos dessas excelentes virtudes.
Se um ato de Amor de Deus tem um mérito tão assinalado que pode reconciliar o
pecador com Deus, quantos méritos não adquire uma alma que, para se sustentar
nos combates da tentação, produz tão amiúde esses atos tão meritórios? É, pois,
à míngua de reflexão que se acredita num estado de inação para o Céu e para a
virtude quando se está ocupado em combater as tentações. Ao contrário, evidente
é, pelo que acabamos de dizer, que se está na maior ação, e num exercício
continuo, para merecer um e para praticar a outra.
(Livro Tratado das Tentações – PADRE MICHEL da Companhia
de Jesus)
Nenhum comentário:
Postar um comentário