Numa
cidadezinha perdida e esquecida, lá nos confins deste tão imenso
Brasil, existe uma igreja quase sem existir. Em torno, mil ou duas
mil almas mais ou menos desalmadas; dentro, um velho vigário a fazer contas
intermináveis, e um padre coadjutor, na sacristia, a olhar o
morro, a linha férrea lá longe, o rio, talvez o céu.
Já
traz cinzas na cabeça e uma curvatura nas costas, mas naquele
momento o que mais lhe pesa é a solidão que cerca a velhice que se aproxima.
Está ali. Não é nada. Não sente forças para fazer nada pela vila
indiferente que quer viver sua vida rotineiramente encaminhada para a morte.
Sente-se inútil a mais não poder. Quer que ele celebre a única
missa da féria, e com uma só porta apenas entreaberta. Precaução
aliás inútil porque ninguém mais aparece nas missas dos dias da
semana. O povo não gostou quando o vigário tirou os santos que há
mais de cem anos povoavam a velha igrejinha. Diminuiu a assistência à missa,
diminuíram as confissões. A conversa com o vigário, na hora do jantar, reduz-se
a monossílabos.
Padre
Antônio torna a pensar nas coisas que se perderam: a água benta, a
oração do terço à noite, os santinhos que dava aos moleques na rua
com magnanimidade, e tudo o mais que fazia companhia, que cercava
a alma da gente nas igrejinhas da roça. Por que esta devastação?
O vigário não gosta de abordar o assunto. Sofre a seu modo, com
a tenacidade obtusa dos animais feridos. Cerra os dentes. Não pensa.
Não fala. Faz o que o bispo mandou fazer e encerra-se num mutismo
quase vegetal. Às vezes parece ter gosto de transmitir seu sofrimento
fazendo um outro sofrer. É seu modo de conversar, e quem paga é
padre Antônio.
Um
dia padre Antônio não encontrou sua velha batina e teve de pedir
uma explicação a d. Ana e ao vigário. Explicaram-lhe que estava
imprestável. Ganharia nova batina? Não. Clergy-man também é muito caro. Padre
Antônio deveria comprar na loja do João Mansur umas calças de
lonita e duas camisas esporte. E é com esta roupa pobre que padre
Antônio agora se debruça na janela e consulta o infinito. Pobre,
pobre padre Antônio. Ele nunca foi propriamente vaidoso e preocupado com a
roupa que haveria de vestir, como aconselha Nosso Senhor. Mas essa história da
batina doía-lhe ainda como se estivesse em carne viva, como se 1he
tivessem arrancado a pele. E o pior é pensar que é com esta roupa por
baixo, esta roupa de rua, esta roupa sem bênçãos que deve celebrar
a Santa Missa. Disseram-lhe que era mais prático usar uma só alva
por cima do traje esporte. E esta alva não era mais daquelas antigas,
rendadas e compridas. Padre Antônio não queria as rendas para si, já que
era desgracioso e escuro: queria-as para enfeitar o louvor de Deus. Mesmo
porque, descontada alguma andorinha, nenhum ser vivo aparecia para assistir ao
Sacrifício de nosso Salvador. Nem valia a pena bater a campainha.
As novas alvas não têm rendas. São ordinárias e curtas, sim, curtas, porque o
importante é aparecerem as calças para todo o mundo ver que o padre é
homem, como outro homem qualquer.
Está
na hora de preparar a missa da tarde, e padre Antônio sente a tristeza
aumentar. Está só. Está só. Não tem com quem falar. Poderá
conversar na farmácia com a turma do gamão do Frederico, mas depois a
volta para a casa é ainda mais pesada. Poderá perguntar a d.
Emília se está melhor do reumatismo, e a d. Maria se o marido já voltou
do Rio. Mas não tem ninguém com quem possa falar, com quem possa
desabafar, a quem possa explicar a desmedida tristeza de vestir por cima das
calças uma alva sem rendas, e a quem possa dizer a saudade que tem
da batina preta, a batina bendita em que um dia amortalhara o
homem velho para viver em Cristo Nosso Senhor. E não tem ninguém a
quem possa perguntar tremendo: «O que é que está acontecendo em
nossa Igreja? E o Papa?» Ou então alguém, um irmão, um padre, a
quem possa dizer com medida indignação: «Não pode ser! Não pode ser! As
portas do inferno não prevalecerão!»
Padre
Antônio olhou mais uma vez para o horizonte que a noite já
escondia. O mundo começava além daquela serra... O mundo! Padre
Antonio curvou a cabeça como um condenado. Estava preso! Estava preso! Abriu
então as duas mãos grandes e magras que considerou com triste
ternura: um dia elas tinham recebido o poder de consagrar o Pão e o Vinho, e de
trazer assim ao mundo, como a Virgem Santíssima, o Corpo de Deus.
Mãos grandes, mãos nervosas e escuras, mãos consagradas. Ao menos esta
pele não lhe arrancam, esta marca não lhe tiram.
Num
desamparo infinito padre Antônio contemplava as duas mãos frementes, tão
poderosas e tão inúteis. Turvava-se o espírito, vacilava a razão e a fé. Estão
ali as mãos. E o resto. E a água benta? o Latim? as coisas da Igreja? As palmas
inúteis não respondiam às suas indagações, e até pareciam pedir-lhe uma
resolução, uma decisão, já que a mão foi feita mais para fazer do que para
pensar... O que é isto? O que é isto nas palmas das mãos? Estará chovendo?
Padre Antônio, padre Antônio, o senhor está chorando. Quem foi que falou?
Ninguém. Ninguém. É o próprio padre Antônio que tomou o costume de falar com o
padre Antônio.
Juntam-se
as mãos. E das profundezas dos abismos que todos trazemos, mesmo debaixo de uma
camisa esporte, subiu um clamor de aflição: «Usquequo exaltabitur inimicus meus
super me? Respice et exaudi me! Respice et exaudi me! Respice et exaudi me,
Domine Deus meus...».
E
então, neste momento infinito, padre Antônio teve a incomparável certeza de que
não estava só.
FONTE: Permanência
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