sábado, 29 de março de 2014

Foi conveniente que Cristo morresse?




Parece que não foi conveniente que Cristo morresse. 

1. — Pois, o primeiro princípio, num gênero, não pode ser subordinado ao que é contrário a esse gênero; assim o fogo, princípio do calor, nunca pode ser frio. Ora, o Filho de Deus é a fonte e o princípio de toda a vida, segundo aquilo da Escritura: Em ti está a fonte da vida. Logo, parece que não foi conveniente que Cristo morresse.

2. Demais. — Maior miséria é a morte que a doença, por que por esta se chega àquela. Ora, não é conveniente que Cristo sofresse nenhuma doença, como diz Crisóstomo. Logo, também não o era que morresse.

3. O Senhor diz: Eu vim para terem vida e para a terem em maior abundância. Ora, um contrário não conduz a outro. Logo, parece que não era conveniente que Cristo morresse.

Mas, em contrário, o Evangelho: Convém-vos que morra um homem pelo povo e que não pereça toda a nação.

SOLUÇÃO. — Foi conveniente que Cristo morresse. — Primeiro, para satisfazer pelo gênero humano, que tinha sido condenado à morte por  causa do pecado, segundo aquilo da Escritura: Em qualquer dia que comeres dele, morrerás de morte. Ora, o modo conveniente de satisfazermos por outrem é nos sujeitarmos àpena que ele merecia. Por isso Cristo quis morrer a fim de morrendo, satisfazer por nós, segundo a Escritura: Cristo uma vez morreu pelos nossos pecados. — Segundo, para mostrar que assumiu verdadeiramente a natureza humana. Pois, como diz Eusébio, se Cristo, depois de ter vivido no meio dos homens, houvesse, para evitar a morte, desaparecido inopinadamente, ocultando-se-lhes aos olhos, todos os teriam julgado um fantasma. — Terceiro, a fim de morrendo, livrar-nos do temor da morte. Donde o dizer o Apóstolo: Ele participou igualmente da carne e do sangue, para destruir pela sua morte ao que tinha o império da morte, isto é, ao diabo; e para livrar aqueles que pelo temor da morte estavam em escravidão toda a vida. — Quarto, a fim de que, morrendo corporalmente, à semelhança do pecado, isto é, da pena, nos desse exemplo de morrer espiritualmente para o pecado. Donde o dizer o Apóstolo: Porque, enquanto a ele morrer pelo pecado, morreu uma só vez; mas, quanto a viver, vive para Deus. Assim também vós considerai-vos como estando mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Nosso Senhor Jesus Cristo. — Quinto, a fim de, ressurgindo dos mortos, mostrasse ao mesmo tempo o seu poder, pelo qual venceu a morte, e nos desse a esperança de ressurgir dos mortos. Donde o dizer o Apóstolo: Se se prega que Cristo ressuscitou dentre os mortos, como dizem alguns dentre vós outros que não há ressurreição de mortos?

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Cristo é a fonte da vida, como Deus, mas não como homem. Ora, morreu como homem e não como Deus. Donde o dizer Agostinho: Longe de nós pensar que Cristo, sendo ele próprio a vida, morreu perdendo-a; pois, se tal tivesse acontecido, a fonte da vida teria secado. Mas, padeceu a morte enquanto participante da fraqueza humana, que assumira espontaneamente, sem contudo perder o poder da sua natureza, pelo qual tudo vivifica.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Cristo não sofreu a morte originada de nenhuma doença, para que não se pensasse que morreu por enfermidade imposta pela natureza. Mas sim, a morte que lhe foi infligida exteriormente, ao que espontaneamente se submeteu para mostrar que era morte voluntária.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Um contrário não conduz a outro, essencialmente falando; mas tal pode dar-se por acidente, como quando, por exemplo, o frio aquece acidentalmente. E deste modo Cristo, pela sua morte, nos conduziu à vida ,destruindo a nossa morte como a sua, assim como quem sofre uma pena por outrem, torna-o livre dela. 

(Suma Teológica, part. III, quest. 50, art. 1)

sexta-feira, 28 de março de 2014

"Vos beijo Senhor"






Beijo a esponja encostada aos Vossos lábios incontaminados,
com que a amargura da transgressão
me foi transformada em doçura.

Tivesse podido eu degustar aquele fel,
que dulcíssimo alimento não teria sido!

Tivesse podido eu tomar o vinagre,
que bebida agradável!

Aquela coroa de espinhos
teria sido para mim um diadema régio.

Aquelas cusparadas
me teriam ornado como esplêndidas pérolas.

Aquelas zombarias
me teriam ornado como sinal de profundo obséquio.

Aquelas bofetadas
me teriam glorificado como o prestígio mais alto.

Eu Vos beijo, Senhor,
e a Vossa paixão é o meu orgulho.

Jorge de Nicomedia - (séc. IX)

terça-feira, 25 de março de 2014

"Por teu amor".






“Recebo-Te, ó Preço da minha redenção; recebo-Te, ó Viático da minha peregrinação, pelo teu amor estudei, fiz vigílias, trabalhei. Foi sobre Ti que preguei e ensinei, nunca disse nada contra Ti; e se o tivesse dito, tê-lo-ia dito apenas por ignorância e não quereria ser obstinado em sustentá-lo. Mas se me exprimi mal a propósito deste Sacramento, como também dos outros, deixo tudo à correção da Santa Igreja Romana, na obediência à Qual agora deixo esta vida”.

(Santo Tomás de Aquino)


As relíquias dos santos devem de algum modo ser adoradas?



 
(Fiel venera as relíquias de Santa Teresinha do Menino Jesus)

Parece que as relíquias dos santos de nenhum modo devem ser adoradas.

1.  — Pois não devemos fazer nada que seja ocasião de erro. Ora, adorar as relíquias dos mortos parece constituir um erro dos gentios, que prestavam honorificência aos mortos. Logo, não devemos honrar as relíquias dos santos.

2. Demais. — E estulto adorar uma coisa insensível. Ora, as relíquias dos santos são insensíveis. Logo, é estulto venerá-las.

3. Demais. — O corpo morto não é da mesma espécie que o vivo, e por consequência não é numericamente idêntico a ele. Logo, parece que depois da morte de um santo, não lhe devemos adorar o corpo.

Mas, em contrário, Genádio: Cremos sincerissimamente, que devem ser honrados os corpos dos santos e sobretudo os dos santos mártires. E depois acrescenta: Quem não o admitir não é considerado Cristão, mas Eumoniano e Vigilanciano.

SOLUÇÃO. — Como diz Agostinho, se as vestes paternas, um anel ou coisas semelhantes tanto mais queridas são dos filhos, quanto maior o afeto que tinham pelos pais, de modo nenhum devemos desprezar o corpo que nos é muito mais familiar e muito mais unido, do que qualquer roupa que usemos; pois, o corpo pertence à própria natureza humana. Por onde é claro, que quem tem afeto por outrem venera-lhe também o que dele resta, depois da morte; e não só o corpo ou partes do corpo, mas também certos bens exteriores, como as vestes e outros semelhantes. Ora, é manifesto que devemos venerar os santos de Deus, como membros de Cristo, filhos e amigos de Deus e nossos intercessores, Por isso, devemos lhes venerar quais relíquias, com a honra devida, em memória deles; e sobretudo os seus corpos, que foram os templos e os órgãos do Espírito Santo; que neles habitou e operou, e hão de assemelhar-se ao. corpo de Cristo pela glória da ressurreição. Por isso, o próprio. Deus honra convenientemente essas relíquias, fazendo. milagres na presença delas.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A razão de Vigilância, cujas palavras são citadas por Jerônimo no livro que contra ele escreveu, é a seguinte: Vemos introduzido, diz, a pretexto de religião, o costume mais ou menos igual ao dos Gentios, de adorar, beijando-os, não sei que pósinhos encerrados em um vaso envolto em pano precioso. Contra o que diz Jerônimo : Afirmo que não adoramos as relíquias dos Mártires como não adoramos o sol nem a lua nem os anjos, isto é, com adoração de latria. Mas, honramos as relíquias dos mártires, para adorarmos aquele a quem eles pertenceram; honramos os servos, para que a honra, a eles tributada redunde para o Senhor. Assim, pois, honrando as relíquias dos santos, não incidimos no erro dos Gentios, que prestavam culto de latria aos mortos.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O corpo insensível não o adoramos, em si mesmo, mas por causa da alma, que lhe esteve unida e que agora frui de Deus; e por causa de Deus, de que foram os ministros.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O corpo de um santo morto não é numericamente idêntico ao de quando vivia, por causa da diversidade da forma, que é a alma; mas, é lhe idêntico pela identidade da matéria, que deve de novo unir-se à sua forma.

(Suma Teológica, part III, quest. 25, art 6)

domingo, 23 de março de 2014

A dor da paixão de Cristo foi maior que todas as outras dores?




Parece que a dor da paixão de Cristo não foi maior que todas as outras dores.

1. — Pois, a dor do paciente aumenta conforme a gravidade e a duração do sofrimento. Ora, certos mártires padeceram sofrimentos mais graves e mais longos do que Cristo; assim, Lourenço, assado em grelhas, e Vicente cujas carnes foram laceradas por unhas de ferro. Logo, parece que a dor dos sofrimentos de Cristo não foi a máxima.

2. Demais. — A força do espírito mitiga a dor, a ponto de os estóicos ensinarem que a alma do sábio não é susceptível de tristeza. E Aristóteles diz que a virtude moral faz conservar o justo meio nas paixões. Ora, Cristo teve a virtude perfeitíssima da alma. Logo, parece que Cristo sofreu a mínima das dores.

3. Demais. — Quanto mais sensível é um paciente, tanto maior é a dor da paixão. Ora, a alma é mais sensível que o corpo, pois, pela alma é que o corpo sente. E também, Adão parece ter tido, no estado de inocência, um corpo mais sensível que o de Cristo, que assumiu o corpo humano com as suas deficiências naturais. Logo, parece que a dor da alma padecente no purgatório ou no inferno, ou ainda a dor de Adão, se alguma sofreu, teria sido maior que a dor da paixão de Cristo.

4. Demais. — A perda de um maior bem causa uma dor maior. Ora, o pecador, pecando, perde um maior bem que Cristo, sofrendo, porque a vida da graça é melhor que a da natureza humana. Demais, Cristo, que perdeu a vida, havendo de ressurgir três dias depois, parece que perdeu um bem menor do que aqueles que perdem a vida, havendo de permanecer mortos. Logo, parece que a dor de Cristo não foi a máxima das dores.

5. Demais. — A inocência do paciente diminui a dor da paixão. Ora, Cristo sofreu inocentemente, segundo a Escritura: Eu era como um manso cordeiro que élevado a ser vítima. .Logo, parece que a dor da paixão de Cristo não foi a máxima.

6. Demais. — Nada do que teve Cristo era supérfluo. Ora, uma dor mínima de Cristo bastaria para o fim da salvação humana, pois, teria uma virtude infinita, por causa da sua pessoa divina. Logo, foi supérfluo assumir a máxima das dores.

Mas, em contrário, a Escritura diz, da pessoa de Cristo: Atendei e vê de se há dor semelhante à minha dor.

SOLUÇÃO. — Como dissemos, quando tratamos das deficiências assumidas por Cristo, ele sofreu verdadeiramente a dor, na sua paixão. Tanto a sensível, causada pelos tormentos corpóreos, como a interior, causada pela apreensão do mal, que se chama tristeza. Ora, ambas essas dores foram máximas em Cristo, entre as dores da vida presente. O que se explica por quatro razões. Primeiro, pelas causas da dor. — Pois, a dor sensível teve como causa uma lesão corpórea cheia de acerbidade, tanto pela generalidade da paixão, de que já tratamos, como pelo gênero da mesma. Pois, a morte dos crucificados é acerbíssima, por serem trespassados em lugares nervosos e sobremaneira sensíveis, que são as mãos e os pés. E além disso, o peso mesmo do corpo pendente continuamente aumenta a dor; acrescentando-se ainda a diuturnidade dela, pois, os crucificados não morrem logo como os mortos pela espada. — Quanto à dor interna teve as causas seguintes. Primeiro todos os pecados do gênero humano, pelos quais satisfazia com os seus sofrimentos; por isso como que os avocou a si, dizendo: Os clamores dos meus pecados. Segundo e especialmente, a culpa dos judeus e dos outros, que lhe infligiram a morte; e sobretudo a dos discípulos, que se escandalizaram com a paixão de Cristo. Terceiro, ainda, a perda da vida do corpo, naturalmente horrível à natureza humana. Em segundo lugar, a grandeza da dor pode ser considerada relativamente à sensibilidade do paciente. — Assim, o seu corpo tinha a melhor das compleições; pois, fora formado milagrosamente por obra do Espírito Santo. Porque nada é mais perfeito que o produzido por milagre, como o nota S. João Crisóstomo, a propósito da água convertida em vinho por Cristo, nas bodas. Assim, o sentido do tato, que serve para perceber a dor, era em Cristo extremamente delicado. — Também a alma, nas suas potências interiores, apreendia com grande eficácia todas as causas de tristeza. Terceiro, a grandeza da dor de Cristo na sua paixão, pode ser considerada quanto à pureza da mesma dor. Pois, nos outros pacientes, mitiga-se a tristeza interior e também a dor externa, pela reflexão racional, causando uma certa derivação ou redundância das potências superiores para as inferiores. Oque não se deu na paixão de Cristo, pois. à cada uma das potências permitia agir dentro do que lhe era próprio, como diz Damasceno. Em quarto lugar, a grandeza da dor de Cristo pode ser considerada quanto ao fato de ser a sua paixão e a sua dor assumidas voluntariamente, com o fim de livrar o homem do pecado. Por isso, assumiu uma dor tão grande, que fosse proporcionada àgrandeza do fruto dela resultante. Assim, pois, de todas essas causas simultaneamente consideradas resulta claro que a dor de Cristo foi a máxima das dores.

DONDE A RESPOSTÀ ÀPRIMEIRA OBJEÇÃO. — A objeção colhe quanto a uma só das causas de sofrimento enumeradas, a saber, a lesão corpórea, causa da dor sensível, Mas, as outras causas aumentaram muito mais a dor de Cristo na sua paixão, como se disse.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A virtude moral não mitiga do mesmo modo a tristeza interior e ador sensível externa, Assim, a tristeza interior ela a diminui diretamente, estabelecendo nela a mediedade, como em matéria própria. Ao passo que a virtude moral constitui a mediedade nas paixões, como estabelecemos na Segunda Parte, introduzindo nelas não uma quantidade real, mas uma quantidade proporcional, de modo que a paixão não ultrapasse a regra racional. E como os estóicos reputavam a tristeza totalmente inútil, por isso criam que ela se divorcia totalmente da razão e, por consequência, deve ser totalmente evitada pelo sábio, Mas, na verdade das causas, há uma certa tristeza digna de louvor, como o prova Agostinho: é a procedente de um amor santo, como quando nos entristecemos dos pecados próprios ou dos alheios, e também é considerada como útil quando tem por fim satisfazer pelas pecados, segundo aquilo do Apóstolo: A tristeza, que é segundo Deus, produz para a salvação uma penitência estável. Por isso Cristo, a fim de satisfazer pelos pecados de todos os homens, assumiu uma tristeza máxima pela sua quantidade absoluta, mas que não ultrapassava a regra racional. - Mas quanto àdor exterior do sentido, a virtude moral não a diminui diretamente, porque essa dor não obedece àrazão, mas resulta da natureza do corpo. Diminui-a, porém indiretamente pela redundância das potências superiores para as inferiores. Oque não se deu com Cristo, como dissemos.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A dor da alma do padecente, separada, é própria do estado futuro de danação, que excede todos os males desta vida, como a glória dos Santos excede todos os bens da vida presente. Por isso, quando dizemos que a dor de Cristo foi máxima, não a comparamos com a dor da alma separada. - Quanto ao corpo de Adão, ele não podia sofrer se não tivesse pecado, tornando-se assim mortal e passível. E, sofrendo, padeceria menos que o corpo de Cristo, pelas razões referidas. — Donde também resulta que mesmo se, por impossível, considerássemos que Adão no estado de inocência sofreu, a sua dor teria sido menor que a de Cristo.

RESPOSTA À QUARTA. — Cristo não somente sofreu perdendo a vida do seu próprio corpo, mas também pelos pecados de todos os homens. Porque a dor de Cristo ultrapassou toda dor de qualquer paciente. Quer porque procedia de uma sabedoria e caridade maiores, que aumentam a dor do padecente; quer também porque sofreu simultaneamente por todos os pecados, segundo aquilo da Escritura: Verdadeiramente ele foi oque tomou sobre si as nossas fraquezas. — Mas a vida corporal de Cristo foi de tão grande dignidade, e, sobretudo, pela divindade que lhe estava unida, que sofreu mais, perdendo-a, mesmo momentaneamente, que qualquer outro homem perdendo a sua, por qualquer tempo que fosse. Donde o dizer o Filósofo, que o virtuoso tanto mais ama a sua vida, quanto mais a tem como melhor; e, contudo, a expõe pelo bem da virtude, E semelhantemente, Cristo, tendo uma vida amável por excelência, a expôs pelo bem da caridade, segundo aquilo da Escritura: Dei a minha amada alma em mãos de seus inimigos.

RESPOSTA À QUINTA. — A inocência do paciente diminui numericamente a dor da paixão; porque quando padece por culpa, sofre não só pela pena, mas também pela culpa; sendo inocente, porém, sofre só pela pena. Contudo a sua inocência lhe aumenta a dor, porque sabe que não merece o mal que lhe é infligido. E por isso são tanto mais repreensíveis os que não se compadecem dele, conforme a Escritura: O justo perece e não há quem considere no seu coração.

RESPOSTA À SEXTA. — Cristo quis liberar o gênero humano dos pecados, não só pelo seu poder, mas ainda por justiça. Por isso, não só levou em conta a grandeza do poder que tinha a sua dor, em virtude da divindade que lhe estava unida, mas também o quanto bastava essa dor pela sua natureza humana, para tão grande satisfação.

(Suma Teológica, part. III, quet.46, art. 4)