O ASCETA
Depois de criticar o cristianismo por ser demais
interesseiro, torna-se inevitável criticá-lo por ser desinteressado de mais. O
sentimento de posse, o apetite por uma-herança a que me referi no capítulo
anterior, significam realmente um desprendimento das coisas deste mundo.
Trata-se de um desejo guardado para os últimos tempos; trata-se de uma
propriedade escatológica. Aqueles textos provam que o cristão tem um vivo
sentimento de posse, mas não provam, e antes parecem provar o contrário, que
ele tenha um sentimento de posse relativo às coisas deste mundo das quais se
ocupam os economistas e o próprio Chesterton com seu distributismo. A vida
rigorosa dos ascetas depõe contra essa idéia: São Francisco de Assis não queria
possuir um livro de orações e não consentia que seus irmãos tivessem uma casa
própria.
Ora, não é difícil mostrar que essa impressão,
decorrente da análise localizada de um detalhe, desaparece inteiramente se
considerarmos o pensamento geral da Igreja de todos os tempos. Quanto a São
Francisco, convém notar que a Jgreja procurou logo corrigir aquilo que era
apenas uma vocação especial e pessoal, não convindo, portanto, para uma vocação
especial mas comunitária. Os biógrafos de São Francisco entregam-se
insen-sivelmente à sedução de mostrar que o santo era maior do que a Igreja, e
muitos chegam a dizer que foi Francisco o único verdadeiro franciscano.
Chesterton, porém, não caiu nesse erro. Diz ele que Francisco foi um grande
santo, e um homem grande, e que o papa que lhe fez restrições talvez tenha sido
um homem pequeno; mas acrescenta, para informação das pessoas alheias à
história da Igreja, que nela freqüentemente os homens pequenos têm razão, e
os grandes não. É de notar que uma das mais ferozes e turbulentas heresias que
atacaram a ortodoxia católica foi a dos fraticcelli, que se julgavam os
legítimos descendentes de Francisco e que desejavam furiosamente nada possuir.
Quem disser portanto que Francisco foi o único franciscano está a dois palmos
de dizer que ele foi o único fraticcello.
Pode-se dizer, com mais exatidão, que o cristão
não é desprendido das coisas deste mundo. Ao contrário, seu sentimento de posse
sobrenatural se apoia num sentimento de posse natural. O que o asceta procura
fazer, nessa matéria, é reduzi-lo ao mínimo, não para destruir ou anular, mas
para defender esse mínimo. Para São Bento, esse mínimo era o limite de seu mosteiro;
para São Francisco esse mínimo era o pano da veste, e às vezes a pele do
corpo, que tratava humoristi-camente de seu burro, isto é, sua propriedade.
Quando porém o mínimo se reduz a esse ponto, corre o risco de deixar de ser um
mínimo. Realmente, o corpo não pode, rigorosamente
falando, ser considerado um burro, ou uma
simples propriedade da alma, a união entre os dois sendo mais íntima do -que
entre o cavaleiro e a montaria. É uma união que não suporta separação senão
durante a espera do julgamento. Um leitor mal avisado, lendo os nossos
místicos, pensará que eles desprezam o corpo. Usam freqüentemente uma linguagem
e um estilo impregnados de maniqueís-mo, assim como nós dizemos açúcar, álgebra
e alfazema, sem que isso nos obrigue a invocar Alá nas mesquitas. Cada heresia
deixou, como cada invasão, uma marca; mas essa marca representa, como gloriosa
cicatriz, uma vitória da ortodoxia. O cristão deseja salvar o corpo também;
deseja possuir um corpo glorioso; e o último de seus apetites é ser alma-do-outro-mundo.
Mas sabe que esse triunfo exige uma ginástica, uma redução, uma concentração em
um mínimo. Possui pouco, para possuir realmente. E nisso se encontram, e não
por mero acaso, dois enormes proveitos que nenhuma outra doutrina consegue
conciliar: ,o interesse próprio e o da coletividade; a justa medida da posse,
em proporção com o homem e o amor ao próximo.
Há uma profunda diferença entre a idéia de
possuir pouco e a de tender a nada possuir. Pode-se dizer que a primeira
significa uma perfeição da posse; a segunda, evidentemente, indica uma
negação. Possuir pouco quer dizer possuir bem; possuir muito quer dizer possuir
mal e, portanto, deixar de possuir bem os elementos mais próximos e mais preciosos. A pobreza cristã, no plano natural, é
uma defesa, é um recuo, uma formação militar em quadrado cerrado, uma
fortifica-ção do mínimo necessário, uma saúde para a alma e para o próprio
corpo. O capitalista é o homem que não se possui e que à força de exercer e se
deliciar com o domínio não se domina. Um exemplo talvez torne mais viva essa
diferença entre o mínimo e o nada: O homem que afia uma navalha deseja que a
lâmina tenha um certo mínimo de aço, e aplica-se laboriosamente em gastar o aço
contra o esmeril. Um observador desatento concluirá que aquele homem não gosta
do aço, que a religião daquele homem é contrária aos metais, e que a operação
a que se entrega tem o sentido de fazer a navalha tender para zero, sendo
atingido o seu ideal quando tiver na mão apenas um cabo. Ora, ele está reduzindo
o aço justamente porque precisa do aço, e porque precisa, para seu fim
especial, que esse aço seja mínimo.
Mas nessa mesma operação há um risco que todo
barbeiro conhece: virar o fio. E foi esse risco que o papa viu na ordem
nascente dos franciscanos. A redução do mínimo necessário, a restrição dos
bens, mesmo voluntária, é por vezes desaconselhável, sendo milhares os casos
de ascetismo que a solicitude da Igreja procurou mitigar. A boa vontade também
se engana em seus limites; e ainda que o engano tenha a boa direção, não deixa
de ser engano e de ser nocivo. Varia muito de um para outro o mínimo
necessário; mas a fixação desse valor num mínimo-mínimo, como é o caso dos ascetas, só pode ser compreendida
e admitida como um ato voluntário, livre, e, na ordem sobrenatural, solicitada
por uma especial vocação.
O capitalismo é um mal, o mal por excelência na
ordem social, porque impede que os homens sejam pobres, obrigando-os a serem
miseráveis. Impede que os homens exerçam o livre domínio sobre si mesmos,
impondo-Ihes um domínio sem tréguas que os atormenta no corpo e na alma. O
ideal do capitalismo é que todos, com exclusão de um punhado de privilegiados,
sejam ascetas à força; e nos momentos de crise (como Ches-terton o denunciou),
seus campeões lançam mão de demagogia exatamente igual à dos socialistas,
incitando os homens ao trabalho em nome do interesse coletivo, da prosperidade
das instituições, da posteridade, de tudo enfim que não seja simplesmente - a
posse, o domínio sobre a propriedade privada. A Igreja defende o direito da
propriedade privada, e por isso, logicamente, se opõe ao capitalismo e ao
socialismo que de mãos dadas e com o mesmo vocabulário, procuram destruir essa
idéia antiga e venerável.
A Igreja Católica defende e direito à propriedade
privada; a idéia de posse é inseparável da vida cristã, mesimo na ordem
natural. A tendência do ascetismo, mesmo nos seus maiores arrebatamentos, é a
de possuir, ainda que seja para se despojar junto ao primeiro pobre que
encontre. A esse respeito convém assinalar um elemento que geralmente se
considera como coisa marginal, mas que esclarece de modo especial a vida
econômica dos santos: refiro-me à esmola. Se toda a pregação da Igreja e todas
as vidas de santo girassem em torno da distribuição das esmolas, poderia ficar
no espírito de um mau observador a idéia de que o católico é uma espécie de
fanático quando é bom católico; e que ele se despoja do dinheiro como de um
mal. Um raciocínio elementar indica logo o erro dessa suposição, porque se a
esmola é o "sacramento da caridade", como disse São Cipriano, é de
supor que a natureza do objeto dado seja bom. Ninguém distribuiria coisas más
por caridade. Ninguém, tomado de um súbito escrúpulo, e de um fervor religioso,
sairá distribuindo pelos orfanatos seus livros de sexologia moderna ou pelos
bairros proletários sua biblioteca de materialismo histórico. A esmola é boa
porque o dinheiro ou a espécie são bons; quem dá não se despoja do dinheiro
propriamente dito, mas da injusta medida.
Mas há um outro fato que completa a
apreciação'do problema. Os santos dão esmolas, mas também pedem esmolas. O
próprio São Francisco de Assis, exemplo de desprendimento, passou toda a sua
santa vida a pedir esmolas. Por aí se vê que a esmola é uma espécie de
comércio dos santos, anarquizado porque voluntário, mas com uma tendência muito
clara e muito nítida apesar da vital anarquia em que se processa. E a tendência
é a de espalhar, difundir, distribuir a pobreza; é a de evitar no seio da
sociedade cristã a hipertrofia, o gigantismo, a centralização.
Não se pode transformar a prática da esmola, que
é uma prática vital, num sistema econômico. Mas pode-se tirar dela a idéia
geral a que deve obedecer um salutar regime, ou melhor, pode-se tirar da esmola
alguma coisa que nos diga o pensamento de Deus em matéria de economia
política. Da caridade, que é a maior das virtudes, tira-se a justiça; e, por
isso, no caso dos problemas sociais (que envolvem o trabalho, o salário justo,
e a dignidade do trabalhador), essa justiça tem de ser tirada, e formulada, è
concretizada em corpo de doutrina, não sendo absolutamente justificável, como
tão bem salientou Pio XI, em Quadragesimo Anno, que a ela se fuja, justamente
em nome da caridade. "Como se a caridade devesse encobrir a violação da
justiça."
A doutrina social da Igreja já existe; já está
formulada e magistralmente formulada; e não é difícil descobrir que está toda
edifi-cada sobre o Evangelho, e que guarda uma proporção com a tradicional
ascese cristã. Os instrumentos das boas obras, a prática do jejum e da esmola,
interceptam, no plano da ordem natural, u/ma doutrina de distribuição e de
dignificação dotada de necessária largue-za para não depender de vocações e de
condições naturais especializadas. Essa doutrina existe, é um instrumento
prático adequado a uma ação praticável. Mas a curiosa objeção que levantam
contra ela, pelo que tenho ouvido, é a de não ser uma nítida receita ou um
inflexível plano de ação. Eu fico pensando que muita gente esperava de Leão
XIII e de Pio, XI qualquer coisa como, por exemplo, uma
recomendação da policultura ou uma proibição do gado zebu. Ou (quem sabe?) a
cor de um uniforme e o gesto de uma saudação. Há uma tendência hoje a se
considerar prático unicamente o que é técnico e mecanicamente delimitado; e
diante de uma doutrina moral, que entretanto prescreve coisas extremamente
práticas, o homem fica perplexo, decepcionado, sem saber o que fazer de um
elemento enorme que sobra: a sua liberdade, e a sua responsabilidade moral. E
como o papa não pode administrar o purgante que alivie a humanidade, voltam-se
muitos para outros salvadores que lhes sirvam do óleo de rícino.
(Corção,
Gustavo; Três Alqueires e uma Vaca)
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