O PARAÍSO TERRESTRE
À terceira ideia de Chesterton, chamá-la-ei ideia
de posse. E se as duas de que já nos ocupamos têm a virtude de impedir que o homem
fique doido ou bárbaro, esta agora o impedirá de se tornar escravo. Parece ela,
por ser a mais concreta e mais prática, a menos religiosa; tenciono mostrar
antes de mais nada que, por isso mesmo, é uma ideia radicalmente católica. Para
encontrar o seu primeiro fundamento, remontemos à criação do mundo e, mais
particularmente, ao dia da inauguração da humanidade: "Depois Deus disse:
Façamos o homem à nossa imagem, segundo nossa semelhança; e que ele domine sobre
os peixes do mar, sobre os pássaros do céu, sobre os animais domésticos, e
sobre toda a terra..."
Foi, pois, outorgado ao homem, no dia da sua
criação, um direito de posse e domínio sobre todas as coisas. E, no Paraíso, o
homem exerceu-o pela força da palavra: "E o homem deu nomes aos animais
domésticos, às aves do céu e a todos os animais dos campos". Depois da
culpa, é verdade, Deus disse ao homem que ele comeria o pão com o suor de seu
rosto, mas não revogou o direito de domínio e posse, condicionando-o ao
trabalho penoso. Nesse dia, às portas do Paraíso, guardadas pela espada
flamejante de um Querubim, começou a economia política, com o problema do
trabalho, a questão do salário, o capitalismo e o socialismo.
E é por isso que o trabalho humano tem qualquer
coisa que ressuma a tristeza da culpa e qualquer coisa que lembra o limiar de
um paraíso perdido. A mesa de um obscuro e infeliz funcionário é um pequeno
campo, onde um moço, extenuado de se locomover numa cidade que vai se tornando
selvagem — como já deixei dito atrás em tom de lamentação — procura
reconquistar o caminho do paraíso. Quando ele volta para casa, e se instala,
talvez em sua única cadeira, e usa os seus poucos objetos, com plena posse e
pleno domínio e dá um nome ao seu gato, e ouve os passos e a voz da companheira
arrancada de seu flanco, durante um sono de amor — ele sente vivido, palpável,
inconfundível, a lembrança de um jardim de delícias.
Preparar, pelo trabalho, a volta para casa, entre
todas as coisas do mundo, é a que tem a maior densidade de ventura. Pode o
mundo moderno aviltar o trabalho, fazendo do homem uma pura máquina para o
serviço de uma babilônia; pode semear obstáculos sem fim entre a mesa do
funcionário e aquela soleira de porta onde ele tira do bolso uma chave
encantada e toma posse de um reino; podem os pregadores anunciar um regime ideal,
em que a casa é uni prolongamento da repartição, uma máquina de morar cujos objetos
pertencem a todos (o que equivale a dizer que não pertencem a ninguém), e onde o
próprio gato receberá um nome oficial; podem socializar, burocratizar,
centralizar; e minar os alicerces da família; e arrebatar as crianças para as
chocadeiras técnicas onde se ensina que foi um dentista ou um bacharel que
fizeram o mundo; debalde farão tudo isso com o auxílio de todos os demônios: o
homem não esquece o paraíso que perdeu. Não esquece que seu primeiro pai foi
um rico proprietário rural, que dava ele mesmo os nomes aos seus bichos e
usava fartamente, e sem pena, os frutos de sua terra.
A ideia de Chesterton gira em torno disso; e eu
queria ser um gênio para convencer o leitor, depois dele, que a ideia mais
poética e mais maravilhosa do mundo está ligada à posse de três alqueires e uma
vaca. Ou então, o que é muito mais fácil, eu queria que o leitor fosse um
homem extremamente simples, para descobrir isto sozinho.
(Corção,
Gustavo; Três Alqueires e uma Vaca)
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