segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

O Paraíso Terrestre - Gustavo Corção




O  PARAÍSO  TERRESTRE

À terceira ideia de Chesterton, chamá-la-ei ideia de posse. E se as duas de que já nos ocupamos têm a virtude de impedir que o homem fique doido ou bárbaro, esta agora o impedirá de se tornar escravo. Parece ela, por ser a mais concreta e mais prática, a menos religiosa; tenciono mostrar antes de mais nada que, por isso mesmo, é uma ideia radicalmente católica. Para encontrar o seu primeiro fundamento, remontemos à criação do mundo e, mais particularmente, ao dia da inauguração da humanidade: "Depois Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem, segundo nossa semelhança; e que ele domine sobre os peixes do mar, sobre os pássaros do céu, sobre os animais domésticos, e sobre toda a terra..."

Foi, pois, outorgado ao homem, no dia da sua criação, um direito de posse e domínio sobre todas as coisas. E, no Paraíso, o homem exerceu-o pela força da palavra: "E o homem deu nomes aos animais domésticos, às aves do céu e a todos os animais dos campos". Depois da culpa, é verdade, Deus disse ao ho­mem que ele comeria o pão com o suor de seu rosto, mas não revogou o direito de do­mínio e posse, condicionando-o ao trabalho penoso. Nesse dia, às portas do Paraíso, guardadas pela espada flamejante de um Queru­bim, começou a economia política, com o pro­blema do trabalho, a questão do salário, o capitalismo e o socialismo.

E é por isso que o trabalho humano tem qualquer coisa que ressuma a tristeza da cul­pa e qualquer coisa que lembra o limiar de um paraíso perdido. A mesa de um obscuro e infeliz funcionário é um pequeno campo, onde um moço, extenuado de se locomover numa cidade que vai se tornando selvagem — como já deixei dito atrás em tom de la­mentação — procura reconquistar o caminho do paraíso. Quando ele volta para casa, e se instala, talvez em sua única cadeira, e usa os seus poucos objetos, com plena posse e pleno domínio e dá um nome ao seu gato, e ouve os passos e a voz da companheira arrancada de seu flanco, durante um sono de amor — ele sente vivido, palpável, inconfundível, a lembrança de um jardim de delícias.

Preparar, pelo trabalho, a volta para casa, entre todas as coisas do mundo, é a que tem a maior densidade de ventura. Pode o mundo moderno aviltar o trabalho, fazendo do ho­mem uma pura máquina para o serviço de uma babilônia; pode semear obstáculos sem fim entre a mesa do funcionário e aquela soleira de porta onde ele tira do bolso uma chave encantada e toma posse de um reino; podem os pregadores anunciar um regime ideal, em que a casa é uni prolongamento da repartição, uma máquina de morar cujos objetos pertencem a todos (o que equivale a dizer que não pertencem a ninguém), e onde o próprio gato receberá um nome oficial; po­dem socializar, burocratizar, centralizar; e minar os alicerces da família; e arrebatar as crianças para as chocadeiras técnicas onde se ensina que foi um dentista ou um bacharel que fizeram o mundo; debalde farão tudo isso com o auxílio de todos os demônios: o homem não esquece o paraíso que perdeu. Não es­quece que seu primeiro pai foi um rico pro­prietário rural, que dava ele mesmo os nomes aos seus bichos e usava fartamente, e sem pena, os frutos de sua terra. 

A ideia de Chesterton gira em torno disso; e eu queria ser um gênio para convencer o leitor, depois dele, que a ideia mais poética e mais maravilhosa do mundo está ligada à posse de três alqueires e uma vaca. Ou então, o que é muito mais fácil, eu queria que o lei­tor fosse um homem extremamente simples, para descobrir isto sozinho.


(Corção, Gustavo; Três Alqueires e uma Vaca)

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