O DISTRIBUTISMO
Não se pode dizer, rigorosamente, que Chesterton
tenha uma doutrina social. Como já disse atrás ele é mais um homem de ideias do
que um doutrinador, e o mérito de sua obra consiste na manipulação dessas
ideias, na organização particular e original dos argumentos, a serviço da
doutrina clássica. Seu distributismo não é mais do que a doutrina social da
Igreja apresentada de um modo chestertoniano, caracterizando-se pela acentuação
de certos pontos e não pelo conteúdo. A ideia central é a da defesa da pequena
propriedade e da pequena empresa contra o gigantismo, que já no seu tempo
ameaçava a sociedade, e que no nosso tornou-se uma calamidade declarada.
Afirmava o direito à posse, não como uma concessão, mas ousadamente, como
outorgado por Deus; admitia o capital enquanto indispensável reserva, mas não
admitia, de modo algum, o capitalismo, porque a principal característica desse
regime a seu ver está na raridade e não na abundância do capital. O
capitalismo é uma situação em que quase ninguém tem o capital e em que quase
ninguém possui, Não "são a existência e o uso do capital que constituem o
capitalismo, é antea a sua quase inexistência ou seu abuso. Por isso, nos
tempos de moço, teve Chesterton a idéia de rejeitar o nome de capitalismo como
impróprio e contraditório, propondo em seu lugar o de pauperismo ou
proletarismo já que sua principal conseqüência é sem dúvida a difusão da
miséria e do proletarismo escravizado. Mas reconheceu que sua denominação dava
lugar a certas confusões quando se referia, por exemplo, ao pauperismo de Lord
Northumberland. Voltou à designação corrente; mas de vez em quando, ao longo
de sua obra, manifesta uma visível antipatia: "eu não gosto dessa palavra;
é feia."
O capital em si é inteiramente admissível,
pertença ele a um só ou a uma corporação, ao Estado ou a uma sociedade anônima;
o capital, em si, existirá sempre por uma razão extremamente simples: o ritmo
da produção não é igual ao ritmo do consumo. A economia privada gasta-se numa
lixa cotidiana e contínua, pois os homens comem, vestem-se e moram todos os
dias. A produção, ao contrário, tem geralmente um ritmo mais largo, que no
campo obedece às quatro estações, e nas cidades, à organização industrial. Por
isso, uma vez que o homem gasta continuamente, e fabrica descontinuamente e em
prazo longo, torna-se inevitável o acúmulo de reservas, como nas represas e
nos açudes. Negar o capital como legítimo instrumento eqüivale a negar o
armazém, o estoque, o saco, a gaveta e o bolso. Eqüivale a obturar todos esses
buracos onde o homem, como a formiga, guarda as reservas de seu trabalho.
O que Chesterton combate é o capitalismo, e
combate-o por esse motivo que pode parecer original: porque o capitalismo é, de
fato, contrário à idéia de posse. Considerarv do o capitalismo nas suas origens
e causas, estudando o ambiente do liberalismo e apreciando o fenômeno de
dissociação entre o o conceito de posse e o de responsabilidade moral,
concluímos que o capitalismo foi gerado por um desregramento da propriedade e
da liberdade; mas tomando o fenômeno tal como hoje se apresenta, considerando-o
um fato, observamos que seu caráter atual é heterogêneo com suas origens, o
que não é de espantar, tratando-se de um erro prático, que é necessariamente
antinômico. O capitalismo, inteiramente desabrochado, tornou-se um paradoxo em
relação às suas origens: a hipertrofia da idéia de posse tornou-se uma atrofia;
a livre competição degenerou em privilégio. À primeira vista não parece
existir privilégio, uma vez que a estrutura politicamente democrática assegura
a qualquer cidadão as mesmas oportunidades e direitos de despojar os outros
cidadãos. Na realidade esse julgamento é falso e resulta de uma confusão entre
democracia política e democracia econômica. O privilégio é diferente daquele
que distinguia a nobreza da plebe, mas continua a ser um privilégio mais ou
menos análogo ao que distingue dos homens comuns um jogador de xadrez
excepcionalmente dotado. Estando o domínio da economia reduzido a uma técnica
ou uma arte, e não havendo nenhum compromisso moral, o capitalista é qualquer
coisa como um campeão de bilhar ou de xadrez; é um especialista.
Não insisto na amoralidade ou na imorali-(te.de
dos processos que permitem o vertiginoso enriquecimento, mas insisto na
especialidade técnica que faz do capitalista um privilegiado. Se o direito de
posse é um direito comum não pode ser um privilégio. Logo, o capitalismo, como
tal, de fato, é uma negação do direito à propriedade privada. Talvez seja
negativo o dom principal do moderno herói das finanças; talvez seja
simplesmente uma falta de escrúpulos; ou talvez seja uma especial falta de
imaginação. Um homem normal (e normalmente dotado de escrúpulos e imaginação)
ou recua diante de certas situações, ou distrai-se apreciando o desenho de uma
flor; e basta esse pequeno colapso em sua defesa para que o obstinado, que não
recua ou não se distrai, ponha um pé adiante e. tome conta de um pequeno pedaço
dos três alqueires que o outro não soube guardar. É verdade que o outro não
soube guardar. Mas se ganhar é uma técnica, o guardar é também uma arte em que
nem todos são capazes.
Eu disse acima que o capitalismo atual está em
contradição com suas origens e com a idéia de propriedade. A contradição vai
ainda mais longe e chega até o nível da psicologia de seus habilidosos
campeões. O capitalista hoje, sendo um dionisíaco, prende-se menos à
propriedade concreta do que à ação. O que.ele quer acima de tudo é o domínio
sobre os homens, o poder conferido marginalmente por um estado ainda tolerante
nessamatéria. Tivesse ele o apetite das coisas concretas, o mal não seria .tão
grande, porque essas coisas encontram seus limites mais depressa que o poder.
Um homem não pode comer muito mais do que um pobre; nem muito melhor. E o
capitalista moderno é geralmente sóbrio. O pobre, nos delírios de sua miséria,
imagina o ricaço com um enorme guardanapo no pescoço, a se fartar das mais
esquisitas iguarias; mas na verdade o milionário é um pobre sujeito que tem
uma dieta rigorosa e que vive de pílulas. Também não pode morar em muitas casas
nem sustentar um harém, porque os incômodos que essas coisas trazem, cedo ou
tarde, o impelem a um esquema mais simples de duas ou três casas e de uma só mulher
como reserva clandestina, para não cair na excessiva simplicidade da
monogamia. O rico, em suma, é um homem de costumes muito mais moderados do que
alguns oficiais de gabinete ou subchefes de seção nas repartições públicas.
O capitalista moderno é um homem empreendedor
que muitas vezes acorda cedo, que quase sempre trabalha pelo amor ao trabalho,
e que tem a mística das realizações; e é nisso que consiste sua insanidade e
sua monstruosidade. O capitalista, em poucas palavras, é um chefe de pequena
república socialista enquistada no corpo de uma nação.
O distributismo de Chesterton (que tinha por
divisa, entre outras, a fórmula rural que escolhi para título deste livro, cuja
capa foi tirada de um desenho do próprio Chesterton) combatia o capitalismo
pelo que esse regime tem de semelhante ao socialismo no que se refere ao
direito de propriedade e à dignidade humana. Chesterton pugnava pela pequena
propriedade e pela pequena empresa. Recomendava, com grande escândalo de um
jornal, que recusou um artigo seu a esse respeito, o boicote sistemático dos
grandes armazéns. E tomava como sua uma palavra de Francis Bacon: "A
propriedade é como o estrume, só é boa quando espalhada".
(Corção,
Gustavo; Três Alqueires e uma Vaca)
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