O HERDEIRO
É preciso imaginar um concurso de circunstâncias
as mais extravagantes, uma anormal soma de má vontade e de obscuríssima
ignorância, uma desvairada combinação de proposições que mutuamente se
destruam, para chegar a compreender o motivo, o enigmático motivo, que leva
muita gente a supor que a Igreja Católica é contrária à ideia de posse e ao
mesmo tempo aliada do capitalismo. Pretendo mostrar, ao lado de Chesterton,
que a Igreja é contrária ao capitalismo e favorável à posse; ou ainda, mais
exatamente, que é contrária ao capitalismo porque é favorável à ideia de
posse.
Antes de entrar em maiores desenvolvimentos
quero dizer alguma coisa sobre o pecado original. No capítulo anterior eu
disse que a economia política e todas as crises tinham começado na porta do
paraíso, mas agora estou pensando que o capitalismo (isso que chamamos hoje
capitalismo, e contra o que Chesterton se bateu a vida inteira) começou dentro
do paraíso. O pecado original tem sido apresentado como um pecado de gula, de
orgulho, e de inveja. Sem analisar, tomando-o em bloco, eu diria que o pecado
original foi um pecado de capitalista, tendo consistido no uso desmedido, e
numa falsa idéia de domínio que rompia as medidas do homem. A opressão e a
exploração do trabalho alheio serão as manifestações sociais posteriores, mas
o germe do capitalismo já está no primeiro pecado do homem.
Nesse sentido, nada há que tenha uma feição tão
anticapitalista como a ascese cristã que, nos seus mais variados aspectos,
consiste sempre num exercício de restauração da integridade perdida e na
reconquista do paraíso. Por isso, num lamentável equívoco, a vida ascética tem sido
comparada freqüentemente a uma espécie de socialismo ideal, mesmo por aqueles
que crêem no socialismo e não creem na ascese. Ora, nessa ordem de idéias, se o
exercício de santificação se parece com alguma coisa, é antes com o regime da
pequena economia, com o distributismo de Chesterton, por exemplo, cuja
principal finalidade é a recuperação de um patrimônio. A vida do santo não é um
modelo de desprendimento desinteressado; ao contrário, sua bússola é o
interesse. Nunca pude compreender aliás, o motivo invocado para considerar o
desinteresse em si como uma virtude, a ponto de se ter dito, contra o
cristianismo, que ele não é bastante puro porque não é bastante desinteressado.
Os que assim falam são os impulsivos, os voluntaristas, que a si mesmos se
chamam de sinceros, e que têm como primeiro artigo de seu código, como
Chesterton tão bem assinalou, despojar a vontade do seu próprio objeto.
O problema do santo se parece muito mais com o
problema de um sensato negociante do que
com o fanático
código do altruísta. O santo é profundamente
interesseiro, e sua grande virtude consiste em ter escolhido o bom objeto de
sua vontade, e em ter amado esse objeto. A idéia fixa do santo é a posse. O
cético, evidentemente, pode dizer que ele entesoura fumaça e espera uma herança
que nunca receberá; pode dizer que ele é doido; mas o que não pode dizer, sem
completo desconhecimento de causa, é que ele ama o vazio e deseja o nada. Se
estamos procurando compreender a idéia que norteia seus atos, temos que admitir
a primeira delas, isto é, a convicção, ainda que absurda, de uma vida eterna. Não
poderemos compreender o
santo se analisarmos os seus atos segundo nossas idéias. Os menores e
mais triviais espetáculos do mundo, se deixarmos de lado os objetivos que os
homens se propõem, perderiam o último vislumbre de significação. Imaginemos, por exemplo, que estamos
assistindo aos jogos olímpicos e que passam por nós os corredores, usando todas
as reservas de força e de destreza para arrebatar o prêmio final. Se um de nós
não crê em prêmios, ou não crê que aquela pista termine em algum lugar, é claro
que não entrará na competição; mas se quer saber o que é uma corrida tem que
levar em conta que os atletas, creem na chegada e no prêmio. A maior parte das pessoas que se referem à
vida do santo incorre nesse engano de aproximar os atos piedosos de suas próprias idéias.
E divertem-se muito
com o absurdo que resulta,
pensando que o tolo é o santo.
O fundamento do cristianismo, sempre foi uma
idéia de posse e de recompensa. O cristão não corre à toa, pelo gosto de
correr; o que ele quer é a palma da vitória. Aí está, por exemplo, o que diz
São Cipriano, bispo de Cartago e mártir do Cristo: "Lutemos, pois, de bom
grado e com prontidão, por essa palma das obras salvadoras; corramos no
estádio da justiça tendo Deus e o Cristo como espectadores, e — como já nos
tornamos superiores ao século e ao mundo — não retardemos nossa carreira por
qualquer cobiça do mundo e do século. Se o dia da prestação de contas ou da
perseguição nos encontrar desembaraçados, céleres, correndo nesse estádio da esmola, o Senhor não faltará com o prêmio merecido. Aos que vencerem na paz
dará uma coroa branca pelas boas obras; aos que triunfarem na perseguição,
acrescentará a coroa purpúrea do martírio". Em São Paulo, encontramos
passagem semelhante: "Quanto a mim, já estou oferecido em sacrifício, e o
momento da partida se aproxima. Combati o bom combate; terminei minha corrida;
guardei a fé: está doravante reservada para mim a coroa da justiça..."
Todo o vocabulário cristão está impregnado da
ideeia de lucro, de recompensa, de herança, de posse. Em qualquer página das
Sagradas Escrituras ou dos Santos Padres, se encontra um sinal desse
sentimento, perfeitamente análogo ao de um bom e econômico trabalhador que faz
seu pé de meia para um dia ter casa. A dificuldade da exemplificação está só na
escolha. Depois da Ceia, diz o Senhor: "Que vosso coração não se perturbe:
crede em Deus, e crede também em mim. Há numerosas moradas na casa de meu Pai;
de outro modo eu vos teria dito, porque eu me vou para vos preparar um
lugar,,.."
Chesterton guardava em sua carteira uma oração
tirada desta passagem do Evangelho de São João e, depois de sua morte, pôde o
padre Vicente, seu confessor, observar que ele alterara o texto sagrado. Onde
dizia um lugar acrescentara, pensando em sua corpulência, "a very large
place". Um lugar bem espaçoso. O que prova que seu humorismo era coisa
muito séria e, eventualmente, uma forma de oração.
Retomando os exemplos, ouvimos em São Mateus a
palavra final do Cristo, no dia do julgamento: "Vinde, benditos de meu
Pai, tomai posse do reino que está preparado para vós desde a formação do
mundo." E finalmente, em São Paulo, encontramos o título desse peregrino
que serve de espetáculo para o mundo: ele é o herdeiro de Deus e co-her-deiro
de Cristo.
(Corção,
Gustavo; Três Alqueires e uma Vaca)
Caríssimos, vocês possuem este livro de Gustavo Corção (Tres Alqueires e uma Vaca) em PDF?
ResponderExcluirSalve Maria, caro amigo.
ResponderExcluirInfelizmente não temos este livro em .pdf. Temos o livro em impresso comum.
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