sexta-feira, 25 de março de 2016

A Imobilidade e a Escuridão - Trecho do Livro A Subida do Calvário do Pe. Luís Perroy



Havia que chegar a isto. Todo o fatal progresso da Paixão do Cristo tende a privá-lO gradualmente da Sua liberdade, para Lhe comprar a cada privação um sofrimento novo, até  que  o  derradeiro  esforço  desse  trabalho  superior  da  Justiça  de  Deus  consiga imobilizá-lO na dor.

Primeiro  os  laços,  depois  a  entrega  entre  as  mãos  de  soldados  debochados,  depois  a privação da vista no corpo da guarda, o amortecimento das forças e a exaustão que a marcha  acarreta  e,  finalmente...  os  cravos  que  O  fincam  na  Cruz:  é  a  tremenda imobilidade!  A  simples  reflexão  pode  nos  dar  uma  ideia  deste  último  instrumento  de suplício. Estar preso, fixado por quatro Chagas a se alargarem de minuto em minuto a um sofrimento a que não se pode escapar!

O  menor  movimento  não  faria,  aliás,  senão  aumentar  esse  sofrimento.  E  três  horas durou  esse  tormento  assombroso!  O  doente  preso  de  dor  revolve-se  penosamente  no leito; tem necessidade desse movimento que, se não lho suprime, muda-lhe ao menos o sofrimento: descansa de um pelo outro. Na Cruz, porém, nenhum descanso a esperar a não ser numa morte que só há de vir lentamente. Mais uma vez: era preciso. O homem, pecando,  abusa  da  sua  liberdade:  o  castigo  correspondente  à  sua  culpa  devia  ser  a privação dessa liberdade. O Filho do Homem, que expia por toda a humanidade, será, pois,  conseqüentemente  com  o  Seu  papel  de  Vítima  expiatória,  privado  de  toda  a liberdade.

Está feito, e é sobretudo nesse exato momento que Ele salva os pecadores. Gritam-Lhe galhofando:  “Desce  agora,  se  podes”.  Já  não  pode.  Está  cravado.  As  almas  que  se queixam de estar presas à mesma cruz, pesada, esmagadora, sem esperança de a poder largar neste mundo, devem vir ao pé desta Cruz de Jesus.

Eu venho, meu Deus, e ante a Vossa imóvel atitude, ante esses cravos que Vos fincam ao dever sangrento da Redenção, eu nem sequer em desejo procurarei despregar-me de uma cruz que em alguns pontos quisestes tornar semelhante à Vossa.

Quando os algozes levantaram assim ao alto, como um troféu, a Sua Vítima sangrenta, passaram aos dois ladrões. Não tardou que se completasse o espetáculo: as três cruzes se alçaram  no  cume  do  Gólgota.  Nesse  momento  o  campo  foi  deixado  livre  à  multidão.

Houve um ímpeto em direção ao Cristo pendurado no meio. Si exaltatus fuero, omnia traham ad meipsum. “Quando eu for levantado, atrairei tudo a Mim” (Jo 12, 32). Por enquanto o ímpeto é de ódio: amanhã – que digo? – daí há pouco, transformar-se-á num ímpeto de amor cujas vastas ondas virão até o fim dos tempos bater naquele rochedo e naquela Cruz divina.

Podemos  supor  os  soldados  a  conterem  com  dificuldade  a  populaça  que  se  atira  ao espetáculo  daqueles  três  supliciados.  Podemos  crer  também  que  o  grupo  das  santas mulheres se tenha deixado de bom grado arrastar pela corrente, pois eis que elas estão mais  perto  da  montanha.  O  Cristo,  a  Quem  o  Sangue  tolhe  a  vista,  vislumbra-as  ao longe.  Mas  esta  visão,  que  O  teria  aliviado,  é  ofuscada  pela  multidão  que  circula sussurrante,  qual  enxame  malfazejo,  em  torno  aos  três  patíbulos. Circumdederunt  me sicut  apes.  Rodearam-me  semelhantes  a  uma  nuvem  de  abelhas  irritadas.  E  todas  as injúrias  que  sobem  até  Ele  crepitam  como  o  fogo  que  arde  através  das  sarças  e  dos espinhos. Exarserunt sicut ignis in spinis (Sl 117, 12).  

Há nesse crepitar de ódio uma covardia cruel, dado que a Vítima está imobilizada e que a morte que a vai colher bem devia bastar a cevar todas as cóleras. 

Aqueles   que   são   realmente   crucificados   com   Jesus   têm   que   passar   por   essas contradições das línguas; o mundo não cessará de falar sobre o que vê e de julgar o que não conhece; é por isto que ele é fundamentalmente injusto. Os eleitos se consolam no testemunho  único  da  sua  consciência  que  será a base do  último julgamento  de  Deus. 

Quem,  entretanto  se  sente  bastante  forte  contra  esse  enxame  de  línguas  maldizentes?

Senhor,  exclamava  Davi  perseguido  por  seus  inimigos, muta  fiant  labia  dolosa, emudecei  essas  bocas  peçonhentas  e  protegei  os  Vossos  servos  dessas  contradições turbadoras das línguas inimigas, protege nos acontradictione linguarum (Sl. 30, 31).

A minha fraqueza Vos dirige a mesma súplica, ó Jesus; mas, quando eu me acerco da Vossa Cruz, onde como num alvo único cospem todas as bocas as suas blasfêmias, o meu amor susta-me nos lábios o anelo da minha fraqueza e diz-Vos tremendo, porém, suplicando-Vos:

- Tomarei também eu o cálice do meu Senhor, tomá-lo-ei, bebê-lo-ei... Nas Suas Mãos estão as tempestades e as borrascas da minha vida... Tomarei o cálice do meu Senhor, o mesmo, quero nele beber, e invocarei o Seu Nome como o meu melhor sustentáculo.

In manibus tuis sortes meae (Sl. 30, 16).

Calicem salutaris accipiam et nomem Domini invocabo (Sl. 111, 13).

A  partir  do  momento  em  que  a  Cruz  de  Jesus  fôra  erguida,  o  céu  se  havia progressivamente   toldado,   o   sol   parecia   velar   o   seu   disco   luminoso.   Entregue inteiramente  ao  espetáculo  que  aguardava,  a  multidão  não  deve  ter  prestado  grande  atenção  a  esse  fenômeno.  A  pouco  e  pouco,  porém,  o  céu  se  enchia  de  sombras crescentes, e logo trevas espessas cobriam o Calvário, os jardins, a cidade de Jerusalém, e, diz-nos o Evangelista, estenderam-se pela terra inteira.

Aquela noite esquisita, caindo assim subitamente e subtraindo à vista a Vítima divina, lançou a inquietação nas filas da multidão. As vozes que blasfemava calaram-se pouco a pouco.  Os  soldados  que  montavam  guarda  aos  supliciados  quase  não  os  viam:
admiraram-se. Além de que aquilo lhes atrapalhava a partida de dados...

Em breve não houve naquele cume desolado mais que sombras a circularem medrosas, falando-se baixo. Foi favorecidas por essas trevas que as santas mulheres se insinuaram até ao pé da Cruz. Ninguém lhes tolheu o passo. Elas subiram ao alto e se conservaram de pé muito perto dos patíbulos; Madalena, Maria de Cléofas, algumas outras mais e, na
primeira fila, Maria, a Mãe de Jesus: um só discípulo, João, o predileto.

Jesus, através da noite que O oprime, já os distinguiu. Fita-os longamente, é para Ele um  consolo  supremo,  e ao mesmo  tempo  um como doloroso  instrumento  de suplício, pois é a renovação do encontro de ainda há pouco; pois é também a renovação da ferida que  Lhe  fez  o  abandono  dos  Seus,  visto  que,  dos  Apóstolos,  apenas  João  lá  está, sozinho,  fiel,  ao  pé  da  Cruz.  Fita  e  cala-se.  Este  silêncio  de  Jesus  entre  as  Suas  três primeiras palavras, antes das trevas, e as quatro últimas, antes da morte, durou cerca de  três horas. Três horas de silêncio imóvel e de escuridão! É mister sentir esta derradeira angústia, ficar ao pé da Cruz nessa escuridão, escutar esse silêncio e imitá-lo.

Porque também, todos os instrumentos de suplício estão esgotados, só resta a morte a esperar. Cada qual veio à sua hora bater e dilacerar aquele Corpo. Sob os Seus golpes sabiamente dirigidos, mais sabiamente ainda renovados, porque no Calvário se acham compendiadas  todas  as  dores  já  experimentadas,  sob  os  seus  golpes  aquele  Corpo divino, esticado no madeiro da Cruz, vai retumbar o hino da dor e também da vitória. 

Mas, ó Senhor Jesus, resta-me penetrar mais dentro ainda no mar doloroso e profundo da  Vossa  Paixão.  Depois do  Vosso  Corpo  sagrado, é  o Vosso  Coração divino que  eu quero ver, triturado, despedaçado, aberto, traspassado de lado a lado.

De joelhos, pois, no cimo do Calvário, ao pé da Vossa Cruz, durante aquelas três horas de silêncio e de escuridão, ouvindo só os surdos gemidos da Vossa oração e da Vossa agonia, ou o ruído abafado e irregular do Sangue que escorre em terra, eu vou tornar a subir  essa  onda  de  Sangue  e  de  dor  que  Vos  trouxe  até  aqui,  para  distinguir  nele, cruelmente  revolvido  por  essas  águas  dolorosas,  o  Vosso  Coração! Esse  Coração  que me amou até querer extinguir-se por mim.


Ó vós todos que passais, parai, pois um momento e vejamos juntos se há sofrimento que se possa comparar ao de Jesus na Cruz!

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