Não
há em todo o ano litúrgico, que é o vôo circular em que a Igreja contempla
amorosamente os mistérios de Cristo, momento mais jubiloso e mais belo em que,
antes de acender o Círio Pascal, o Diácono canta o“Exultet Jam Angélica Turba
Caelorum...” que é, sem dúvida alguma, o maior primor que os homens, com
inspiração divina e engenho próprio jamais lograram compor em toda a história
do cristianismo e do mundo. Quem já adulto, e já doloridamente vivido, teve a
felicidade de ouvi-lo pela primeira vez no esplendor do Movimento Litúrgico,
pôde apreciar, nessa adamantina condensação, todo o apuro, todo o requinte de
infinito bom-gosto que a Igreja, ex abundantia operis, trouxe à
civilização, e até hoje guarda a lembrança do estremecimento da alegria que nessa
noite sentiu como antecipação de todas as promessas de Deus:
O vere beata nox, quae sola meruit scire tempus et horam in qua Christus ab inferis ressurrexit! – Ó bem-aventurada noite, única que mereceu conhecer o dia e a hora em que Cristo ressuscitou dos mortos.
Inebriada
de alegria a Igreja delira, e chega à amorosa inconveniência, à desmedida
loucura de cantar:
O certe necessarium Adae peccatum... O felix culpa... – Ó necessário pecado de Adão...Ó culpa feliz.
E
depois, agora mais senhora de si, gravemente repete a grande história do Verbo
de Deus desde a madrugada da Criação, desde a promessa feita a Abraão, e
através das palavras dos profetas até aquela outra madrugada do primeiro dia da
semana em que Maria Madalena e a outra Maria vieram visitar o sepulcro.
Chegadas, viram a pedra rolada, e então as duas mulheres voltaram correndo para anunciar aos apóstolos o que viram e ouviram do anjo que estava ao lado do sepulcro: Ele ressuscitou!
E
daí em diante começaram as páginas mais transluminosas, e mais banhadas de
alegria das Sagradas Escrituras. Cada quadro tem uma luz suave e mais
penetrante do que todo o alvorecer da Criação.
Agora
num relâmpago, vemos Maria Madalena voltar-se para o vulto que julgava ser o do
jardineiro, e com ela ouvimos:
-
Maria! E logo a resposta de adoração: - Raboni!
Mais
adiante é no Cenáculo, onde estavam fechados e tristes os apóstolos, que Jesus
ressuscitado aparece e lhes diz: “A paz seja convosco.” E agora é na estrada de
Emaús que dois discípulos caminham conversando a respeito de tudo o que havia
acontecido, e à certa altura percebem que alguém caminha com eles, e lhes
pergunta: “De que falais enquanto caminhais?” Os viandantes ficaram tristes, e
o que se chamava Cleofas respondeu ao desconhecido: “Serás tu, forasteiro em
Jerusalém, o único a ignorar o que se passou nestes dias?” “O que aconteceu?”,
perguntou o desconhecido. E os peregrinos contaram a história de Jesus de
Nazaré, profeta poderoso em obras e palavras diante de Deus, que os príncipes
dos sacerdotes e magistrados entregaram para ser condenado à morte, e morte de
cruz; e disseram que estavam tristes porque esperavam que ele libertasse
Israel, e agora já três dias passaram... É verdade que algumas mulheres, que se
achavam conosco, dizem que seu corpo desapareceu do sepulcro e que um anjo
anunciou que Ele estava vivo! Mas eles ainda duvidavam...
Disse-lhes
então o desconhecido: “Ó homens sem inteligência, como tarda vosso coração em
crer o que os Profetas anunciaram!” E começando por Moisés, percorrendo todos
os Profetas, o desconhecido ia explicando as palavras de Deus à medida que se
aproximava de Emaús. O desconhecido deu a entender que tomava outro caminho,
mas a pedido dos peregrinos entrou com eles num albergue. “Fica conosco!”
pediam os peregrinos, e Jesus, com eles à mesa, tomou o pão, benzeu-o,
partiu-o, e deu-lhes, e então seus olhos se abriram, mas Jesus desaparecera.
Esta
pequena história que resiste a todos os maltratos da humana grosseria, tem
inspirado e animado o engenho de todas as artes humanas, e poderá ainda, até o
fim do mundo, ser cantada, contada, pintada e lavrada sem que a infinita
profundidade de sua beleza venha a se exaurir. Por mim, neste momento, sinto
com especial comoção a beleza da ação de graças dos dois peregrinos quando
retomam a caminhar: — “Lembras-te como nosso coração se abrasava quando Ele, no
caminho, nos explicava as Escrituras?”.
Peçamos
nós a esses santos peregrinos que nos obtenham de Deus a mesma graça de sentir
arder o coração quando ouvirmos a voz de Cristo na voz da Igreja a nos explicar
os formidáveis mistérios da Pátria.
Diz-nos
São Paulo na Vigília Pascal: “Se morrermos com Cristo, com Ele ressuscitaremos
e viveremos". Mas nosso tardo coração sente-se amedrontado diante de
tão excessiva promessa de Deus.
Na
verdade, na verdade, todos os dons de Deus e todas as suas promessas são
excessivas, e tamanho clarão de mistério às vezes mais nos ofusca e nos cega do
que nos ilumina. “Creio... na ressurreição da carne...” balbucio eu envolvendo
este artigo no mesmo global ato de fé que tem sua razão de ser na Palavra de
Deus. Balbucio e tremo quando considero esta pobre carne já tão desgastada, “comme
um vieux mouton qui a perdu sa laine aux ronces du chemin” – como um velho
carneiro que perdeu sua lã nos espinhos do caminho. Como poderá resplender e
reflorescer este pobre corpo já tão próximo do desmoronamento total?
Afina
teu ouvido, ó tardo coração, e pondera que nesta Vigília Pascal, por sua
Igreja, Cristo nos rememora todas as grandezas de Deus desde a criação até esse
momento único em que a chama do Círio representa a grande transição, a
maravilhosa travessia, a Páscoa que nos transporta de um desastrado mundo para
o mundo dos ressuscitados. E pondera bem, alma de minh’alma, que um só ato
vivificado pela graça de Cristo é maior do que todas as galáxias; e que as
vezes que do pecado saíste por um ato de contrição e pelo perdão sacramental
somam maior total de maravilhas do que todo o Universo criado. Na verdade, na
verdade tu te deténs demais na excessiva promessa anunciada pelo Exultet porque
ainda te agarras demais à idéia de que teu corpo com sua variedade de órgãos e
funções, é a maior maravilha de teu ser. No que te enganas demais, alma de
minha alma, porque a maior maravilha de meu ser é a graça da adoção, é o favor
sobrenatural que Deus nos concede: o de podermos chamá-lo de Pai Nosso...
E
nessa ordem de coisas, que importa infinitamente mais do que todas as estrelas
do céu, todas as flores da terra e todos os peixes do mar, nessa ordem nova ou
nessa nova criação – tudo é graça.
O GLOBO 29/3/75
Peçamos a Jesus que nos ressuscite para uma vida nova
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