Por Santo Afonso
Maria de Ligório
Da
mortificação externa
§ I. Necessidade da mortificação externa
A mortificação
externa consiste em se fazer e sofrer o que contraria os sentidos exteriores e
em se privar daquilo que os lisonjeia. Enquanto ela é necessária para evitar o
pecado, é de obrigação absoluta para cada cristão. Se se trata de coisas que
licitamente se podem desfrutar, a mortificação não é obrigatória, mas é muito
útil e meritória. Contudo, deve-se notar aqui que, para aqueles que tendem à
perfeição, a mortificação nas coisas lícitas é absolutamente necessária.
Como pobres
filhos de Adão, devemos lutar até a nossa morte, pois “a carne deseja contra o
espírito e o espírito contra a carne” (Gál 5, 17). É próprio dos animais seguir
os seus sentidos, enquanto que aos anjos compete cumprir a Vontade de Deus;
disso conclui um ilustre escritor que nos tornamos anjos, esforçando-nos por
cumprir com a Vontade de Deus, e irracionais, se procuramos satisfazer os
nossos sentidos. Ou a alma subjuga o corpo, ou o corpo escraviza a alma.
Em vista disso,
devemos tratar o nosso corpo como um cavaleiro trata um cavalo bravio,
puxando-lhe fortemente a rédea para que não o derrube, ou como o médico que,
estando a tratar de um doente, prescreve remédios que lhe são desagradáveis e
proíbe-lhe comidas e bebidas nocivas, que ele apetece. Sem dúvida alguma, seria
cruel um médico que permitisse ao doente deixar os remédios prescritos por
serem amargos e tomar outros, nocivos, por lhe agradarem. Quanto maior não é,
pois, a crueldade de um homem sensual, que quer poupar a seu corpo todos os
desgostos nesta vida, e expor, assim, sua alma e seu corpo, ao perigo de ter
que sofrer por toda a eternidade penas imensamente maiores.
Esse falso amor,
diz São Bernardo (Apol. ad Guil., c. 8), destrói o verdadeiro amor que devemos
ter para com o nosso corpo; uma tal compaixão com o corpo é, antes, uma grande
crueldade, porque, poupando-se o corpo, mata-se a alma. O mesmo Santo dirige
aos mundanos, que zombam dos servos de Deus por mortificarem sua carne, as
seguintes palavras: “Somos em verdade cruéis para com o nosso corpo,
afligindo-o com penitências; porém, mais cruéis sois vós contra o vosso,
satisfazendo a seus apetites nesta vida, pois assim o condenais juntamente com
vossa alma a padecer infinitamente mais na eternidade”.
Se queremos,
portanto, agradar a Deus e alcançar a salvação, devemos corrigir nosso falso
gosto: devemos achar satisfação naquilo que a carne detesta e desprezar aquilo
que ela apetece. Isso significou Nosso Senhor a São Francisco de
Assis, dizendo-lhe: “Se me desejas ter junto de ti, deves ter como amargo o que
é doce e como doce o que é amargo”. Não venhas com a objeção que alguns
costumam fazer, dizendo que a perfeição não consiste na mortificação do corpo,
mas na mortificação da vontade. A isso responde o padre Pinamonti: “Se uma
videira não dá fruto [simplesmente] por estar protegida com uma cerca de
espinhos, contudo a cerca protege os frutos’, pois ‘onde não há uma cerca, será
roubada a feitoria”, diz o Sábio (Ecli 36, 27).
São Luís Gonzaga
era de saúde muito melindrosa. Apesar disso, era tão assíduo em crucificar o
corpo, que não buscava outra coisa senão mortificação e penitências; e como lhe
dissessem uma vez que a santidade não consiste nessas coisas, mas na abnegação
de sua vontade própria, respondeu mui sabiamente com as palavras do Evangelho:
“Deveis fazer isso e não deixar aquilo” (Mt 23, 23). Com isso queria dizer que,
ainda que seja necessário mortificar sua vontade, não se deve deixar de
mortificar o corpo, para refreá-lo e submetê-lo à razão. Dizia o Apóstolo:
“Castigo o meu corpo e o reduzo à servidão” (I Cor 9, 27). Sem a mortificação
da carne, é difícil submetê-la à Lei de Deus.
O mundo e o
demônio, são, em verdade, grandes inimigos da nossa salvação; contudo, o maior
de todos é o nosso corpo, porque ele mora conosco. “O inimigo que mais nos
prejudica é aquele que mora conosco em casa”, diz S. Bernardo (Med., c. 13). Os
mais perigosos inimigos de uma fortaleza sitiada são aqueles que se acham no
seu interior, pois é muito mais difícil se defender contra estes que contra os
que estão fora.
Assim como os
mundanos só cuidam em lisonjear seu corpo com prazeres sensuais, as almas que
amam a Deus só procuram mortificar a sua carne tanto quanto possível. São Pedro
de Alcântara assim fala a seu corpo: “Fica certo de que nesta vida não te
deixarei descansar; só tribulações serão tua partilha; mas quando estivermos no
Céu, desfrutarás de uma paz que não terá mais fim”. Nesse mesmo espírito
procedia Santa Maria Madalena de Pazzi que, pouco antes de sua morte, podia
afirmar que não se lembrava de ter jamais encontrado alegria fora de Deus.
Leiamos a
biografia dos Santos, consideremos suas penitências e envergonhemo-nos de ser
tão medrosos e comedidos na mortificação de nossa carne.
Mas eu tenho uma
saúde muito fraca, me dirás, e meu confessor me proibiu todas as penitências.
Pois bem; em tal caso deves obedecer; mas ao menos aceita resignadamente todos
os incômodos que teu estado corporal te ocasionar; suporta alegremente todas as
penas que a mudança de frio e calor traz consigo. Se não podes mortificar teu
corpo com penitências, ao menos renuncia de vez em quando a um prazer lícito.
Quando São Francisco de Borja se achava na caça, fechava os olhos no momento em
que o falcão se apoderava de sua presa, para se privar do prazer que essa vista
lhe causava. S. Luís Gonzaga também evitava olhar para as representações a que
devia, às vezes assistir.
Por que não
poderás também tu, alma cristã, praticar semelhantes mortificações? Se negares
a teu corpo satisfações lícitas, não ousará reclamar ele outras ilícitas; se,
porém, te entregares a todos os prazeres lícitos, te procurarás em breve
deleitações ilícitas.
Um grande servo
de Deus, o padre Vicente Carafa, da Companhia de Jesus, diz que Deus nos
concedeu as alegrias deste mundo não só para que delas desfrutemos, mas também
para que tenhamos ocasião de oferecer a Deus um sacrifício, privando-nos delas
por Seu amor.
É verdade que
algumas inocentes alegrias são mui próprias para auxiliar a nossa fraqueza
humana e nos dispôr para os exercícios espirituais; contudo, deves estar
persuadido de que os prazeres dos sentidos por si são venenos para a alma,
porque eles a prendem às criaturas; por isso se deve gostar desses prazeres
como se usa fazer quando se toma veneno. As plantas venenosas, quando
devidamente misturadas e tomadas em pequena quantidade, são às vezes úteis à
saúde do corpo; mas são sempre e permanecem veneno. É o que se dá com os
prazeres mesmo lícitos.
Por essa razão,
só com grande precaução e moderação é que se pode desfrutar deles sem apego, e
só por necessidade, com a única intenção de se poder servir melhor a Deus.
Além disso,
devemos tomar cuidado para que, com o esforço de preservarmos o nosso corpo de
doenças, não deixemos desfalecer a nossa alma, que está sempre doente, não se
mortificando a carne. “As doenças do corpo me causam compaixão, diz São Bernardo
(Ep. 315), porém, maior compaixão me causam as doenças da alma, que são mais
perigosas e mais para temer”.
Oh! Quantas vezes
um mal estar do corpo não nos serve de pretexto para nos concedermos certas
liberalidades de que não temos nenhuma necessidade! “Um dia deixamos a oração
porque sentimos dor de cabeça, diz Santa Teresa d’Ávila (Cam. da perf. , c.
10), no outro dia porque a tivemos no anterior, e no terceiro dia para que não
nos volte a dor de cabeça”.
Fonte Maria Rosa Mulher
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