Transcrevemos hoje, traduzida,
a entrevista de Dom Marcel Lefebvre publicada no Figaro de 4 de
agosto(1) ; e não ignoramos que muitos leitores brasileiros, por carência de
informação ou de formação, talvez se escandalizem com a declaração de Dom
Lefebvre; e talvez a qualifiquem como simplesmente rebelde e indisciplinada.
De início eu diria ao meu
escandalizado leitor que é fácil julgar-se mais católico, mais virtuoso do que
Dom Lefebvre, mas que não é tão fácil sê-lo efetivamente.
A Europa inteira está
emocionada e aturdida diante da suspensão do venerável ancião que se achou
colocado na situação prevista na famosa carta que os cardeais Ottaviani e Bacci
dirigiram ao Sumo Pontífice em 1969: «...a promulgação do Novo Ordo coloca o
fiel católico diante de uma trágica opção».
Coube à grande alma católica do
Bispo fundador de seminários católicos o encargo de condensar em sua obra, em
seu coração, o sofrimento de todos os sacerdotes e leigos do mundo que sofrem o
mesmo dilaceramento.
Segue-se a entrevista com a
pergunta inicial do jornalista e as declarações de Dom Lefebvre:
«Dom Marcel Lefebvre, não
estará o senhor à beira de um cisma?»
«Esta é a pergunta que a si
próprios fazem muitos católicos após saberem das últimas sanções tomadas por
Roma contra nós. Na maioria dos casos, os católicos definem ou imaginam o Cisma
como uma ruptura com o Papa. Não levam além sua indagação. Se o senhor vai
romper com o Papa ou se o Papa vai romper com o senhor, temos pois um Cisma.»
«Porque romper com o Papa
constitui um Cisma? Porque, onde está o Papa está a Igreja Católica. Logo seria
apartar-se da Igreja Católica. Ora, a Igreja Católica é uma realidade mística
que existe não apenas no espaço, sobre a superfície da terra, mas também no
tempo e na eternidade. Para que o Papa represente a Igreja e seja dela a
imagem, é preciso que esteja unido a ela tanto no espaço como no tempo já que a
Igreja é uma Tradição viva na sua essência. Na medida em que o Papa se afastar
dessa Tradição estará se tornando cismático, terá rompido com a Igreja.Teólogos
como São Belarmino, Caetano, o cardeal Journet e muitos outros estudaram essa
eventualidade. Não se trata, pois, de uma coisa inconcebível.»
«Quanto a nós, é o Concílio
Vaticano II, suas reformas, suas orientações oficiais que nos preocupam, mais
do que a atitude pessoal do Papa, mais difícil de ser perscrutada.»
«Este Concílio representa, tanto
aos olhos das autoridades romanas quanto aos nossos, uma nova Igreja que,
aliás, eles próprios chamam de Igreja Conciliar.»
«Cremos poder afirmar,
atendo-nos à crítica interna e externa do Vaticano II, isto é, analisando os
textos e estudando seus antecedentes e suas conseqüências que este Concílio,
virando as costas para a Tradição e rompendo com o passado da Igreja, é
cismático. Julga-se a árvore pelos frutos. A imprensa mundial, americana e
européia, já reconhece que este Concílio está arruinando a Igreja Católica a
tal ponto que mesmo os ateus e os governos laicos começam a se inquietar.»
«Um pacto de não-agressão foi
firmado entre a Igreja e a maçonaria. É o que está mascarado pelas palavras
"agironamento", "abertura para o mundo" ou
"ecumenismo".»
«A Igreja aceitaria doravante
não ser mais a única religião verdadeira, a única via para a salvação eterna.
Ela reconheceria como religiões-irmãs as outras religiões. Reconheceria como um
direito concedido pela natureza da pessoa humana que esta pessoa é livre de
escolher sua religião e que, portanto, a existência de um Estado católico seria
inadmissível.»
«Se admitirmos este novo
princípio, temos que mudar toda a doutrina da Igreja, seu culto, seu
sacerdócio, suas instituições. Pois tudo, até então, na Igreja, manifestava que
Ela era a única a possuir a Verdade, o Caminho e a Vida em Nosso Senhor Jesus
Cristo que ela, a Igreja, é a única a deter em pessoa, na Santa Eucaristia,
onde, Ele está presente, graças à continuação de seu Sacrifício. Logo é uma
inversão total da Tradição e do ensino da Igreja que está se operando, depois
do Concílio e pelo Concílio.»
«Todos aqueles que cooperam
nesta reviravolta de valores aceitam e aderem a essa nova Igreja Conciliar –
como o próprio Dom Benelli a designa na carta que me dirigiu em nome do Santo
Padre em 25 de junho último – e entram no cisma.»
«O fato de terem sido adotadas
no Concílio teses liberais só pode acontecer num concílio pastoral, não
infalível e não pode ser explicado sem uma minuciosa e secreta preparação que
os historiadores, no futuro, um dia descobrirão, para grande estupefação dos
católicos que confundem a Igreja Católica, Romana, Eterna com a Roma humana e
susceptível de ser invadida por inimigos vestidos de púrpura.»
«Como poderíamos nós, por
obediência servil e cega, fazer o jogo desses cismáticos que nos pedem
colaboração para seus empreendimentos de destruição da Igreja?»
«A autoridade legada por Nosso
Senhor ao Papa, aos bispos e ao sacerdócio em geral está a serviço da fé na Sua
divindade e da transmissão de Sua própria vida divina. Todas as instituições
divinas ou eclesiásticas estão destinadas a esse fim. O direito e as leis não
têm outra finalidade. Servir-se do direito, das instituições e da autoridade
para aniquilar a fé católica e impedir que a vida seja comunicada é uma espécie
de aborto ou de contraconcepção espiritual. Quem ousará dizer que um católico
verdadeiramente digno desse nome, pode cooperar com tal crime pior do que o
aborto corporal?»
«Eis porque estamos prontos e
submissos para aceitar tudo o que for conforme à nossa fé católica, tal como
foi ensinada durante dois mil anos mas recusamos tudo o que lhe é contrário.»
«Já ouvimos a objeção: "Então
cabe a nós julgarmos a fé católica?" Mas não será dever de um católico
julgar entre a fé que lhe ensinam hoje e a que foi ensinada e crida durante
vinte séculos e que está escrita nos catecismos oficiais como o do Concílio de
Trento, o de São Pio X e em todos os catecismos antes do Vaticano II? Como foi
que agiram os verdadeiros fiéis diante das heresias? Preferiram dar o sangue a
trair sua fé.»
«Que a heresia venha pelos mais
altos dignitários, isso não altera o problema quanto à salvação de nossa alma.
Sobre isso há uma ignorância grave entre os católicos quanto à natureza e
extensão da infalibilidade do Papa. Muitos pensam que toda palavra saída da
boca do Papa é infalível.»
«Por outro lado, parece-nos
muito mais certo que a fé ensinada pela Igreja durante 20 séculos não pode
conter erros do que seja certo que o Papa é verdadeiramente Papa. A heresia, o
cisma, a excomunhão "ipso facto", a invalidade da eleição, tudo isso
são causas eventuais que podem fazer com que um Papa não tenha sido jamais Papa
ou não mais o seja. Nesse caso, evidentemente excepcional, a Igreja se
encontraria numa situação semelhante àquela em que ela se acha quando morre um
Soberano Pontífice.»
«Um grave problema, diante da
consciência e da fé de todos os católicos desde o começo do pontificado de
Paulo VI. Como é possível que um Papa, verdadeiro sucessor de Pedro, socorrido
pela assistência do Espírito Santo, possa presidir a destruição da Igreja, a
mais profunda e extensa da história dela, em tão pouco tempo e de um modo que
nenhum heresiarca jamais conseguiu?»
«A essa pergunta será preciso
responder um dia. Mas embora deixando o problema aos teólogos e aos
historiadores somos constrangidos pela realidade a responder praticamente,
seguindo o conselho de São Vicente de Lérins: "O que deverá fazer o
cristão católico se alguma parcela da Igreja venha a se desligar da comunhão da
fé universal? Que outro partido tomar senão preferir ao membro gangrenado e
corrompido, a parte sã do organismo? E se um contágio ou uma epidemia arrisca
envenenar não somente uma pequena parcela da Igreja mas ao mesmo tempo toda
Igreja, então, o maior zelo deverá ser o de se unir à antiguidade que
evidentemente não pode mais ser seduzida por nenhuma novidade falsificadora".»
«Estamos pois decididos a
continuar nossa obra de restauração do sacerdócio católico aconteça o que
acontecer, persuadidos de que não podemos prestar melhor serviço à Igreja, ao
Papa, aos bispos e aos fiéis.»
«Deixem-nos fazer a experiência
da Tradição!»
Marcel Lefebvre
Nota. 1 Entrevista feita
em Ecône dia 2 de agosto de 1976
Revista Permanência n°
140-14, 1Julho-Agosto 1980
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