“Se
Eu não tivesse vindo e não lhes tivesse dirigido a palavra, eles
não teriam pecado; mas agora não há desculpas para
o pecado deles” (Jo. XV, 2).
Estas
palavras terríveis ditas por Jesus na noite da Ceia, devem ser lidas e
meditadas com especial atenção nos atuais tempos litúrgicos, para bem
apreendermos o nexo entre a Natividade e a Paixão, e sobretudo para aprendermos
um vislumbre das dimensões trágicas da vinda de Jesus para a nossa Salvação.
Costumamos pensar que Jesus recém-nascido trouxe ao mundo, para nos salvar, uma
atmosfera com perfumes dos céus e cânticos dos anjos; costumamos associar a
idéia de Natal à de um socorro da divina misericórdia, pousado no regaço da
Virgem Santíssima e todo feito de delicadezas e fragrâncias; ora, é Ele mesmo,
no momento supremo em que nos ensinará na última estação o segredo de Sua
vinda. E diz-nos estas palavras das quais inferimos que, se não se pode dizer sem
absurdo e blasfêmias que Ele nos trouxe o pecado, pode-se entretanto dizer que,
a este mundo já marcado pelo pecado mal definido, cinzento, misturado ao bem de
um modo desordenado, Jesus trouxe a Ordem que discrimina mal e bem, e trouxe
aos homens, com preço e condição da Salvação, um sentimento mais agudo, uma
responsabilidade abismal. Essa iluminação moral, que nos mostra que todo mal é
uma ofensa a Deus, já estava anunciada nos clamores proféticos, mas o mundo
inteiro, na confusão da cinzenta mistura muito vagamente sentia a Vontade de
Deus contrariada. De uma maneira cósmica, nas catástrofes, nos incêndios e nas
inundações, tinham uma vaga intuição de que os elementos irritados traduziam a
irritação de uma alta instância. Mas esse vago panteísmo mais eclipsava do que
elucidava o transcendental contraste do bem e do mal, e principalmente a noção
de pecado pessoal cometido contra um Deus pessoal.
“Se
Eu não tivesse vindo...” diz-nos Jesus na hora da Paixão não se teria realizado
o plano eterno de Deus: o de oferecer aos homens um alvo, um blanco, contra o
qual, nitidamente, com inacreditável ferocidade se concentrasse a maldade
difusa para que o cinzento desse lugar ao claro-escuro, e o bem fosse chamado
bem, e o mal, mal. “Se o mundo vos odeia, sabei que a Mim Me odiou primeiro”. E
também: “Aquele que me odeia, odeia também meu Pai”.
Então,
retornando pela terceira vez a terrível declaração de Jesus, diríamos que o
Natal, Sua vinda, foi também a vinda do ódio mais consciente, mais nítido e
mais cruel. Mas para que a humanidade pudesse abrir os olhos para essa
consciência do mal como ofensa a Deus, como ódio a Deus, o Pai inventou esse
recurso extremo de se tornar acessível às mãos dos homens: “Se és Deus,
adivinha quem Te bateu!” Coroara de espinhos: “Salve o Rei dos Judeus!”.
E
assim, por Sua vinda e por Sua Paixão, Jesus trouxe a Ordem que da ao mal o
nome de mal, e ao bem o nome de bem.
“Agora
já não poderão esquivar-se: Se Eu não tivesse vindo, e não lhes tivesse falado,
eles não teriam pecado; mas agora o pecado que cometem, chama-se pecado, sem
subterfúgios, sem pseudônimos”.
Por
isso, quis o Pai, desde o princípio, que a Religião de nosso perdão fosse a
Religião que por isso mesmo dá ao pecado o nome de pecado. Mas também, se na
divina invenção todos os homens que se levantam contra Deus, contra Sua
Vontade, contra Sua Lei são participantes da flagelação de Jesus, este com a
sua bofetada, aquele com sua martelada nos pregos da cruz, aquele outro com o
escarro na Santa Face, sim, sim, se a humanidade inteira, agora sem desculpas,
tem participação de verdugo na Paixão, também está incluída na invenção de Deus
os santos recursos que oferecem a todos os homens a participação de vítima, a
participação de sacrifício oferecido ao Pai.
Na
verdade, na verdade, não sei como pode um coração humano, sem estalar de dor,
suportar a lembrança da profundidade de seu pecado, e a lembrança da altura de
sua esperança. Nem entendo como é possível pensar na Ceia do Senhor como um
ameno e festivo encontro de onde os padres e bispos tiram modelo para
brincadeirinhas mais ou menos sexuadas entre jovens! Nem entendo a frivolidade
com que se mexeu e remexeu no Santo Sacrifício da Missa para agradar aos
heréticos, aos frívolos e aos anormais.
***
Uma
das características de nosso tempo é justamente aquele cinzento informe,
desordenado, anárquico, onde bem não é bem e mal não é mal, ou tanto faz como
tanto fez. Este estado de toda uma civilização é o estuário de erros trazidos e
acumulados por séculos de Revolução contra Deus, contra a Igreja, para a
reconquista do ameno charco inconsequente, que era o mundo depois do Pecado, e
antes da Vinda de Cristo.
“Se
não fosse minha vinda...” O Demônio para bem persegui-la, conhece melhor a
Sagrada Doutrina às avessas do que os bispos modernistas ou simplesmente
modernos que querem fazer da Igreja uma barraca atraente, agradável, divertida.
Essa Igreja persegue Jesus pela degradação, pela inflação, pela vulgarização a
fim de que, com seu apagamento, se apaguem da memória dos homens aquelas
palavras: “Se Eu não tivesse vindo...” e então voltava ao mundo a mistura de
mal e bem, e o tranqüilo esquecimento de Deus.
E
nessa direção que trabalham todos os ditos progressistas que se esforçam por
fazer da Igreja um circo, um cassino, um lupanar qualquer coisa onde possam
agradar aos homens, até o desprezo de Deus.
Revista
Permanência nº 66, abril de 1974
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