quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

O Asceta - Gustavo Corção




O ASCETA

Depois de criticar o cristianismo por ser demais interesseiro, torna-se inevitável criti­cá-lo por ser desinteressado de mais. O sen­timento de posse, o apetite por uma-herança a que me referi no capítulo anterior, signifi­cam realmente um desprendimento das coisas deste mundo. Trata-se de um desejo guarda­do para os últimos tempos; trata-se de uma propriedade escatológica. Aqueles textos pro­vam que o cristão tem um vivo sentimento de posse, mas não provam, e antes parecem provar o contrário, que ele tenha um senti­mento de posse relativo às coisas deste mun­do das quais se ocupam os economistas e o próprio Chesterton com seu distributismo. A vida rigorosa dos ascetas depõe contra essa idéia: São Francisco de Assis não queria pos­suir um livro de orações e não consentia que seus irmãos tivessem uma casa própria.

Ora, não é difícil mostrar que essa impres­são, decorrente da análise localizada de um detalhe, desaparece inteiramente se conside­rarmos o pensamento geral da Igreja de todos os tempos. Quanto a São Francisco, convém notar que a Jgreja procurou logo corrigir aquilo que era apenas uma vocação especial e pessoal, não convindo, portanto, para uma vocação especial mas comunitária. Os biógrafos de São Francisco entregam-se insen-sivelmente à sedução de mostrar que o santo era maior do que a Igreja, e muitos chegam a dizer que foi Francisco o único verdadeiro franciscano. Chesterton, porém, não caiu nesse erro. Diz ele que Francisco foi um gran­de santo, e um homem grande, e que o papa que lhe fez restrições talvez tenha sido um homem pequeno; mas acrescenta, para infor­mação das pessoas alheias à história da Igre­ja, que nela freqüentemente os homens pe­quenos têm razão, e os grandes não. É de notar que uma das mais ferozes e turbulen­tas heresias que atacaram a ortodoxia cató­lica foi a dos fraticcelli, que se julgavam os legítimos descendentes de Francisco e que desejavam furiosamente nada possuir. Quem disser portanto que Francisco foi o único franciscano está a dois palmos de dizer que ele foi o único fraticcello.

Pode-se dizer, com mais exatidão, que o cristão não é desprendido das coisas deste mundo. Ao contrário, seu sentimento de pos­se sobrenatural se apoia num sentimento de posse natural. O que o asceta procura fazer, nessa matéria, é reduzi-lo ao mínimo, não para destruir ou anular, mas para defender esse mínimo. Para São Bento, esse mínimo era o limite de seu mosteiro; para São Fran­cisco esse mínimo era o pano da veste, e às vezes a pele do corpo, que tratava humoristi-camente de seu burro, isto é, sua propriedade. Quando porém o mínimo se reduz a esse pon­to, corre o risco de deixar de ser um mínimo. Realmente, o corpo não pode, rigorosamente

falando, ser considerado um burro, ou uma simples propriedade da alma, a união entre os dois sendo mais íntima do -que entre o cavaleiro e a montaria. É uma união que não suporta separação senão durante a espera do julgamento. Um leitor mal avisado, lendo os nossos místicos, pensará que eles desprezam o corpo. Usam freqüentemente uma lingua­gem e um estilo impregnados de maniqueís-mo, assim como nós dizemos açúcar, álgebra e alfazema, sem que isso nos obrigue a invo­car Alá nas mesquitas. Cada heresia deixou, como cada invasão, uma marca; mas essa marca representa, como gloriosa cicatriz, uma vitória da ortodoxia. O cristão deseja salvar o corpo também; deseja possuir um corpo glorioso; e o último de seus apetites é ser alma-do-outro-mundo. Mas sabe que esse triunfo exige uma ginástica, uma redução, uma concentração em um mínimo. Possui pouco, para possuir realmente. E nisso se encontram, e não por mero acaso, dois enor­mes proveitos que nenhuma outra doutrina consegue conciliar: ,o interesse próprio e o da coletividade; a justa medida da posse, em proporção com o homem e o amor ao pró­ximo.

Há uma profunda diferença entre a idéia de possuir pouco e a de tender a nada pos­suir. Pode-se dizer que a primeira significa uma perfeição da posse; a segunda, eviden­temente, indica uma negação. Possuir pouco quer dizer possuir bem; possuir muito quer dizer possuir mal e, portanto, deixar de pos­suir bem os elementos mais próximos e mais preciosos. A pobreza cristã, no plano natural, é uma defesa, é um recuo, uma formação militar em quadrado cerrado, uma fortifica-ção do mínimo necessário, uma saúde para a alma e para o próprio corpo. O capitalista é o homem que não se possui e que à força de exercer e se deliciar com o domínio não se domina. Um exemplo talvez torne mais viva essa diferença entre o mínimo e o nada: O homem que afia uma navalha deseja que a lâmina tenha um certo mínimo de aço, e aplica-se laboriosamente em gastar o aço contra o esmeril. Um observador desatento concluirá que aquele homem não gosta do aço, que a religião daquele homem é contrá­ria aos metais, e que a operação a que se entrega tem o sentido de fazer a navalha tender para zero, sendo atingido o seu ideal quando tiver na mão apenas um cabo. Ora, ele está reduzindo o aço justamente porque precisa do aço, e porque precisa, para seu fim especial, que esse aço seja mínimo.

Mas nessa mesma operação há um risco que todo barbeiro conhece: virar o fio. E foi esse risco que o papa viu na ordem nascente dos franciscanos. A redução do mínimo ne­cessário, a restrição dos bens, mesmo volun­tária, é por vezes desaconselhável, sendo mi­lhares os casos de ascetismo que a solicitude da Igreja procurou mitigar. A boa vontade também se engana em seus limites; e ainda que o engano tenha a boa direção, não deixa de ser engano e de ser nocivo. Varia muito de um para outro o mínimo necessário; mas a fixação desse valor num mínimo-mínimo, como é o caso dos ascetas, só pode ser com­preendida e admitida como um ato voluntá­rio, livre, e, na ordem sobrenatural, solicitada por uma especial vocação.

O capitalismo é um mal, o mal por exce­lência na ordem social, porque impede que os homens sejam pobres, obrigando-os a serem miseráveis. Impede que os homens exerçam o livre domínio sobre si mesmos, impondo-Ihes um domínio sem tréguas que os ator­menta no corpo e na alma. O ideal do capi­talismo é que todos, com exclusão de um punhado de privilegiados, sejam ascetas à força; e nos momentos de crise (como Ches-terton o denunciou), seus campeões lançam mão de demagogia exatamente igual à dos socialistas, incitando os homens ao trabalho em nome do interesse coletivo, da prosperi­dade das instituições, da posteridade, de tudo enfim que não seja simplesmente - a posse, o domínio sobre a propriedade privada. A Igreja defende o direito da propriedade privada, e por isso, logicamente, se opõe ao capitalismo e ao socialismo que de mãos dadas e com o mesmo vocabulário, procuram destruir essa idéia antiga e venerável.

A Igreja Católica defende e direito à pro­priedade privada; a idéia de posse é insepa­rável da vida cristã, mesimo na ordem natural. A tendência do ascetismo, mesmo nos seus maiores arrebatamentos, é a de possuir, ainda que seja para se despojar junto ao primeiro pobre que encontre. A esse respeito convém assinalar um elemento que geralmente se considera como coisa marginal, mas que esclarece de modo especial a vida econômica dos santos: refiro-me à esmola. Se toda a pregação da Igreja e todas as vidas de santo girassem em torno da distribuição das esmo­las, poderia ficar no espírito de um mau observador a idéia de que o católico é uma espécie de fanático quando é bom católico; e que ele se despoja do dinheiro como de um mal. Um raciocínio elementar indica logo o erro dessa suposição, porque se a esmola é o "sacramento da caridade", como disse São Cipriano, é de supor que a natureza do objeto dado seja bom. Ninguém distribuiria coisas más por caridade. Ninguém, tomado de um súbito escrúpulo, e de um fervor religioso, sairá distribuindo pelos orfanatos seus livros de sexologia moderna ou pelos bairros prole­tários sua biblioteca de materialismo histó­rico. A esmola é boa porque o dinheiro ou a espécie são bons; quem dá não se despoja do dinheiro propriamente dito, mas da injusta medida.

Mas há um outro fato que completa a apreciação'do problema. Os santos dão esmo­las, mas também pedem esmolas. O próprio São Francisco de Assis, exemplo de despren­dimento, passou toda a sua santa vida a pe­dir esmolas. Por aí se vê que a esmola é uma espécie de comércio dos santos, anarquizado porque voluntário, mas com uma tendência muito clara e muito nítida apesar da vital anarquia em que se processa. E a tendência é a de espalhar, difundir, distribuir a pobre­za; é a de evitar no seio da sociedade cristã a hipertrofia, o gigantismo, a centralização.

Não se pode transformar a prática da esmola, que é uma prática vital, num sistema eco­nômico. Mas pode-se tirar dela a idéia geral a que deve obedecer um salutar regime, ou melhor, pode-se tirar da esmola alguma coisa que nos diga o pensamento de Deus em ma­téria de economia política. Da caridade, que é a maior das virtudes, tira-se a justiça; e, por isso, no caso dos problemas sociais (que envolvem o trabalho, o salário justo, e a dig­nidade do trabalhador), essa justiça tem de ser tirada, e formulada, è concretizada em corpo de doutrina, não sendo absolutamente justificável, como tão bem salientou Pio XI, em Quadragesimo Anno, que a ela se fuja, justamente em nome da caridade. "Como se a caridade devesse encobrir a violação da justiça."

A doutrina social da Igreja já existe; já está formulada e magistralmente formulada; e não é difícil descobrir que está toda edifi-cada sobre o Evangelho, e que guarda uma proporção com a tradicional ascese cristã. Os instrumentos das boas obras, a prática do jejum e da esmola, interceptam, no plano da ordem natural, u/ma doutrina de distribuição e de dignificação dotada de necessária largue-za para não depender de vocações e de con­dições naturais especializadas. Essa doutrina existe, é um instrumento prático adequado a uma ação praticável. Mas a curiosa objeção que levantam contra ela, pelo que tenho ou­vido, é a de não ser uma nítida receita ou um inflexível plano de ação. Eu fico pensan­do que muita gente esperava de Leão XIII e de Pio, XI qualquer coisa como, por exemplo, uma recomendação da policultura ou uma proibição do gado zebu. Ou (quem sabe?) a cor de um uniforme e o gesto de uma sauda­ção. Há uma tendência hoje a se considerar prático unicamente o que é técnico e meca­nicamente delimitado; e diante de uma dou­trina moral, que entretanto prescreve coisas extremamente práticas, o homem fica perple­xo, decepcionado, sem saber o que fazer de um elemento enorme que sobra: a sua liber­dade, e a sua responsabilidade moral. E como o papa não pode administrar o purgante que alivie a humanidade, voltam-se muitos para outros salvadores que lhes sirvam do óleo de rícino.



(Corção, Gustavo; Três Alqueires e uma Vaca)

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