terça-feira, 10 de dezembro de 2013

O Herdeiro - Gustavo Corção



O HERDEIRO

É preciso imaginar um concurso de cir­cunstâncias as mais extravagantes, uma anormal soma de má vontade e de obscuríssima ignorância, uma desvairada combinação de proposições que mutuamente se destruam, para chegar a compreender o motivo, o enig­mático motivo, que leva muita gente a supor que a Igreja Católica é contrária à ideia de posse e ao mesmo tempo aliada do capitalis­mo. Pretendo mostrar, ao lado de Chester­ton, que a Igreja é contrária ao capitalismo e favorável à posse; ou ainda, mais exata­mente, que é contrária ao capitalismo porque é favorável à ideia de posse.

Antes de entrar em maiores desenvolvi­mentos quero dizer alguma coisa sobre o pe­cado original. No capítulo anterior eu disse que a economia política e todas as crises ti­nham começado na porta do paraíso, mas agora estou pensando que o capitalismo (isso que chamamos hoje capitalismo, e contra o que Chesterton se bateu a vida inteira) co­meçou dentro do paraíso. O pecado original tem sido apresentado como um pecado de gula, de orgulho, e de inveja. Sem analisar, tomando-o em bloco, eu diria que o pecado original foi um pecado de capitalista, tendo consistido no uso desmedido, e numa falsa idéia de domínio que rompia as medidas do homem. A opressão e a exploração do traba­lho alheio serão as manifestações sociais pos­teriores, mas o germe do capitalismo já está no primeiro pecado do homem.

Nesse sentido, nada há que tenha uma feição tão anticapitalista como a ascese cristã que, nos seus mais variados aspectos, consiste sempre num exercício de restauração da inte­gridade perdida e na reconquista do paraíso. Por isso, num lamentável equívoco, a vida ascética tem sido comparada freqüentemente a uma espécie de socialismo ideal, mesmo por aqueles que crêem no socialismo e não creem na ascese. Ora, nessa ordem de idéias, se o exercício de santificação se parece com algu­ma coisa, é antes com o regime da pequena economia, com o distributismo de Chesterton, por exemplo, cuja principal finalidade é a recuperação de um patrimônio. A vida do santo não é um modelo de desprendimento desinteressado; ao contrário, sua bússola é o interesse. Nunca pude compreender aliás, o motivo invocado para considerar o desinte­resse em si como uma virtude, a ponto de se ter dito, contra o cristianismo, que ele não é bastante puro porque não é bastante desin­teressado. Os que assim falam são os impul­sivos, os voluntaristas, que a si mesmos se chamam de sinceros, e que têm como pri­meiro artigo de seu código, como Chesterton tão bem assinalou, despojar a vontade do seu próprio objeto.


O problema do santo se parece muito mais com o problema de um sensato negociante do que  com  o  fanático  código  do  altruís­ta. O santo é profundamente interesseiro, e sua grande virtude consiste em ter escolhido o bom objeto de sua vontade, e em ter amado esse objeto. A idéia fixa do santo é a posse. O cético, evidentemente, pode dizer que ele entesoura fumaça e espera uma herança que nunca receberá; pode dizer que ele é doido; mas o que não pode dizer, sem completo des­conhecimento de causa, é que ele ama o vazio e deseja o nada. Se estamos procurando com­preender a idéia que norteia seus atos, temos que admitir a primeira delas, isto é, a con­vicção, ainda que absurda, de uma vida eter­na.   Não  poderemos   compreender   o   santo se analisarmos os seus atos segundo nossas idéias. Os menores e mais triviais espetáculos do mundo, se deixarmos de lado os objetivos que os homens se propõem, perderiam o últi­mo vislumbre de significação.  Imaginemos, por exemplo, que estamos assistindo aos jogos olímpicos e que passam por nós os corredores, usando todas as reservas de força e de des­treza para arrebatar o prêmio final. Se um de nós não crê em prêmios, ou não crê que aquela pista termine em algum lugar, é claro que não entrará na competição; mas se quer saber o que é uma corrida tem que levar em conta que os atletas, creem na chegada e no prêmio.  A maior parte das pessoas que se referem à vida do santo incorre nesse engano de aproximar os atos piedosos de suas pró­prias  idéias.   E  divertem-se  muito  com  o absurdo que resulta, pensando que o tolo é o santo.

O fundamento do cristianismo, sempre foi uma idéia de posse e de recompensa. O cris­tão não corre à toa, pelo gosto de correr; o que ele quer é a palma da vitória. Aí está, por exemplo, o que diz São Cipriano, bispo de Cartago e mártir do Cristo: "Lutemos, pois, de bom grado e com prontidão, por essa pal­ma das obras salvadoras; corramos no estádio da justiça tendo Deus e o Cristo como espec­tadores, e — como já nos tornamos superio­res ao século e ao mundo — não retardemos nossa carreira por qualquer cobiça do mundo e do século. Se o dia da prestação de contas ou da perseguição nos encontrar desembara­çados, céleres, correndo nesse estádio da esmola, o Senhor não faltará com o prêmio merecido. Aos que vencerem na paz dará uma coroa branca pelas boas obras; aos que triunfarem na perseguição, acrescentará a coroa purpúrea do martírio". Em São Paulo, encontramos passagem semelhante: "Quanto a mim, já estou oferecido em sacrifício, e o momento da partida se aproxima. Combati o bom combate; terminei minha corrida; guardei a fé: está doravante reservada para mim a coroa da justiça..."

Todo o vocabulário cristão está impregna­do da ideeia de lucro, de recompensa, de he­rança, de posse. Em qualquer página das Sagradas Escrituras ou dos Santos Padres, se encontra um sinal desse sentimento, perfei­tamente análogo ao de um bom e econômico trabalhador que faz seu pé de meia para um dia ter casa. A dificuldade da exemplificação está só na escolha. Depois da Ceia, diz o Senhor: "Que vosso coração não se perturbe: crede em Deus, e crede também em mim. Há numerosas moradas na casa de meu Pai; de outro modo eu vos teria dito, porque eu me vou para vos preparar um lugar,,.."

Chesterton guardava em sua carteira uma oração tirada desta passagem do Evangelho de São João e, depois de sua morte, pôde o padre Vicente, seu confessor, observar que ele alterara o texto sagrado. Onde dizia um lugar acrescentara, pensando em sua corpulência, "a very large place". Um lugar bem espaçoso. O que prova que seu humorismo era coisa muito séria e, eventualmente, uma forma de oração.

Retomando os exemplos, ouvimos em São Mateus a palavra final do Cristo, no dia do julgamento: "Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do reino que está preparado para vós desde a formação do mundo." E final­mente, em São Paulo, encontramos o título desse peregrino que serve de espetáculo para o mundo: ele é o herdeiro de Deus e co-her-deiro de Cristo.


(Corção, Gustavo; Três Alqueires e uma Vaca)

2 comentários:

  1. Caríssimos, vocês possuem este livro de Gustavo Corção (Tres Alqueires e uma Vaca) em PDF?

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  2. Salve Maria, caro amigo.
    Infelizmente não temos este livro em .pdf. Temos o livro em impresso comum.
    Há um site chamado Estante Virtual, no qual poderá ser encontrado este livro em um preço muito bom já com o frete. o estado é regular, tendo em vista que, para nossa tristeza, os livros de Corção não são mais reeditados.

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