Um Pensamento Simples
Gilbert Keith Chesterton
Traduzido por Antonio Emilio Angueth de Araujo
Capítulo do livro The Thing (A Coisa), publicado em 1929
Muitos homens retornariam à fé e moral dos velhos tempos se conseguissem alargar suas mentes o suficiente. É principalmente estreiteza mental que os mantém na rotina da negação. Mas esse alargamento é facilmente mal-entendido, porque a mente deve se alargar para perceber as coisas simples; ou mesmo as coisas auto-evidentes. Precisa-se de um esforço de imaginação para perceber os objetos óbvios contra um fundo óbvio; e especialmente os objetos grandes contra um fundo grande. Há sempre o tipo de homem que não consegue perceber nada exceto uma mancha no carpete, pois não consegue perceber o carpete. E isso tende à irritação, que ele pode exagerar e transformar numa rebelião. Então há o tipo de homem que percebe somente o carpete, talvez porque seja um carpete novo. Isso é mais humano, mas pode estar manchado de vaidade e mesmo vulgaridade. Há o homem que pode ver somente a sala acarpetada; e isso tenderá a isolá-lo demais das outras coisas, especialmente dos quartos dos empregados. Finalmente, há o homem com larga imaginação, que não consegue se sentar num cômodo acarpetado, ou mesmo no quarto de despejo, sem perceber, a todo o momento, o contorno de toda a casa contra seu fundo aborígene de terra e céu. Ele, compreendendo que o teto foi feito, desde o início, como uma proteção contra o sol ou a neve, e a porta contra o frio ou a lama, saberá melhor que o restante dos homens – e não pior –as regras internas. Ele saberá melhor que o primeiro homem que não deve haver mancha no carpete. Mas ele saberá, diferentemente do primeiro homem, porque há um carpete.
Ele considerará da mesma maneira uma nódoa ou mancha nos registros de sua tradição ou credo. Não a explicará ingenuamente; não a desprezará. Ao contrário, ele a verá de maneira muito simples; mas ele também a verá de maneira muito ampla; e contra um fundo de coisas amplas. Fará o que seus críticos nunca farão, de forma alguma; ele verá as coisas óbvias e fará as perguntas óbvias. Pois quanto mais eu leio a crítica religiosa moderna, especialmente a que se refere à minha própria religião, mais me impressiono com a acanhada concentração e a incapacidade imaginativa de considerar o problema como um todo. Li recentemente uma condenação muito moderada de práticas católicas, vinda dos EUA, onde as condenações estão longe de ser moderadas. Ela toma a forma, de maneira geral, de um enxame de questões, perguntas que eu estaria muito disposto a responder. Contudo, estou vivamente consciente das grandes questões que não foram formuladas.
E sinto, acima de tudo, este fato simples e esquecido; que se certas acusações são ou não são verdadeiras em relação aos católicos, elas são inquestionavelmente verdadeiras em relação aos demais. Nunca ocorre ao crítico fazer algo tão simples quanto comparar o que é o católico com o que é não-católico. Uma coisa que nunca parece passar pela sua mente, quando ele discute o que é a Igreja, é a simples questão do que seria do mundo sem ela.
Isto é o que eu considero ser estreito demais para perceber a casa chamada Igreja contra o fundo chamado cosmos. Por exemplo, o escritor a que me refiro entrega-se a milhares de repetições mecânicas da acusação de repetições mecânicas. Ele diz que repetimos orações e outras formas verbais sem pensar nelas. E, sem dúvida, há muitos simpatizantes dessa acusação que a repetirá sem pensar. Mas, antes que expliquemos o real ensinamento da Igreja sobre tais coisas, ou antes que citemos suas inúmeras recomendações sobre atenção e vigilância, ou que possamos expor a razão de razoáveis exceções que ela permite, há uma grande, uma simples e luminosa verdade sobre toda a situação que qualquer um pode ver, desde que ande de olhos abertos. É o fato óbvio de que TODAS as formas humanas de discurso tendem a se fossilizar em formalismos; e que a Igreja é um caso único na história, não de uma língua morta dentre línguas eternas; mas, ao contrário, como tendo preservado uma língua viva num mundo de línguas moribundas. Quando o grande clamor grego se transformou no latim da Missa, tão antigo quanto a própria cristandade, pode surpreender alguns que há muitos na igreja que realmente dizem KYRIE ELEISON e dizem-no sinceramente. De qualquer forma, dizem-no muito mais sinceramente do que um homem que começa uma carta com “Caro senhor”. “Caro” é enfaticamente uma palavra morta; naquele lugar, ela já não significa nada. É exatamente o que os protestantes chamam de ritos e formalidades papais; são feitos rapidamente, ritualmente e sem a memória do significado do rito. Quando o Sr. Jones, o pretendente, usa essa palavra ao se dirigir ao Sr. Brown, o banqueiro, ele não quer dizer que o banqueiro lhe seja querido, ou que seu coração esteja cheio de amor cristão, nem mesmo tanto quanto o coração de algum pobre e ignorante papista que assista a Missa. Mas a vida ordinária, alegre e pagã está simplesmente transbordante de tais palavras mortas e cerimônias insignificantes. Você não escapará delas escapando da Igreja e entrando no mundo. Quando o crítico em questão, ou milhares de críticos como ele, diz que exigimos apenas uma assistência material e mecânica à Missa, ele diz algo que NÃO é verdade sobre os sentimentos de um católico normal em relação aos Sacramentos Católicos. Mas ele diz algo que É verdade sobre a assistência oficial das funções oficiais ordinárias, sobre as recepções ministeriais ou na Corte, e sobre três quartos dos encontros sociais e das visitas de cortesia que ocorrem na cidade. Esse enfraquecimento da ação social repetida pode ser uma coisa inofensiva; pode ser uma coisa melancólica; pode ser a marca da Queda do Homem; pode ser qualquer coisa que o crítico escolha pensar. Mas aqueles que fazem, centenas e centenas de vezes, a acusação especial e concentrada contra a Igreja, são homens cegos para a totalidade do mundo humano em que vivem e são incapazes de ver qualquer coisa, exceto a coisa que caluniam.
Há, nessa área, inúmeros outros casos dessa inconsciência estranha e sinistra. O escritor reclama que padres são levados cegamente à vocação e não entendem as responsabilidades nela envolvidas. Isso também já ouvimos antes. Mas raramente a ouvimos de forma tão extraordinária quanto em sua afirmação de que um homem se compromete com o sacerdócio quando ainda é “uma criança”. Ele parece nutrir idéias estranhas e elásticas quanto à duração da infância. Como observou o Sr. Michael Williams, em sua ponderada e esclarecedora coleção de ensaios, “Catolicismo e Mente Moderna”, isso é brincar com uma matéria de fato, desde que um padre tem no mínimo 24 anos quando toma votos. Mas, aqui e de novo, sou assombrado pela imensa, nua, e mesmo assim, desprezada comparação entre a Igreja e tudo o mais fora dela. Muitos críticos do catolicismo declaram-no destrutivo ao patriotismo; e esse crítico diz algo sobre as desvantagens da Igreja estar meramente “ligada a uma diocese italiana.” Bem, eu mesmo fui sempre defensor do culto ao patriotismo; e nada que eu diga aqui tem alguma ligação com o que é normalmente chamado de pacifismo. Penso que nossos amigos e irmãos empreenderam, dez anos atrás, uma guerra justa contra o duro paganismo do norte; penso que o prussianismo que eles venceram era o orgulho congelado do inferno; e aqueles que morreram estão, talvez melhor que nós que vivemos para ver quão má a Paz pode ser.
Mas, e quando falamos sobre a Igreja envolver jovens com votos? O que devemos dizer àqueles que contrapõem patriotismo ou cidadania pagão à Igreja nessa questão? Eles convocam, usando de violência, garotos de 18 anos, eles aplaudem voluntários de 16 anos que dizem ter 18, lançam milhares deles num enorme forno ou câmara de tortura, do qual sua imaginação nada consegue conceber e do qual sua honra os proíbe de escapar; eles os mantêm nesses horrores ano após ano sem qualquer esperança de qualquer vitória; e os matam como moscas, aos milhões antes que comecem a viver. Isso é o que o Estado faz; isso é o que o Mundo faz; isso é o que faz a sociedade protestante, prática, razoável e secular. Depois disso, eles têm a impressionante imprudência de reclamar de nós porque, ao tratar com uma minoria de especialistas, permitimos a um homem finalmente escolher uma vida de caridade e paz, não somente muito depois que ele tenha passados dos 21 anos de idade, mas quando ele esteja já bem próximo dos 30, e depois que tenha tido aproximadamente 10 anos para pensar se ele quer isso ou não.
Em resumo, o que sinto falta em tudo isso é a coisa óbvia: a comparação da Igreja com o mundo fora dela, ou a ela oposto, ou o mundo oferecido como o substituto da Igreja. E o fato é que o mundo fará tudo o que sempre acusou a Igreja de fazer, e fá-lo-á de uma maneira muito pior, e em muito maior escala, e (o que é o pior e mais importante) sem qualquer padrão de retorno à sanidade ou qualquer motivo para um movimento de arrependimento. Os abusos católicos podem ser “reformados”, porque há a admissão de uma forma. Os pecados católicos podem ser expiados, porque há um teste e um princípio de expiação. Mas onde mais, no mundo de hoje, há um tal teste ou padrão; ou algo exceto um temperamento em permanente mudança, que faz do patriotismo uma moda, dez anos atrás, e do pacifismo uma moda, dez anos depois?
O perigo hoje é que os homens não tenham alargado suficientemente suas mentes para entender as coisas óbvias; e esta é uma delas. É que os homens acusam a tradição de Roma de ser meio-pagã e então se refugiam num completo paganismo. É que os homens reclamam porque os cristãos se infectaram de paganismo; e então fogem da praga e se refugiam na pestilência. Não há um único desses defeitos alegados contra a instituição católica que não seja ainda mais flagrante e mesmo gritante em todas as outras instituições. E é para essas outras instituições, o Estado, a Escola, a máquina moderna de cobrança de impostos e policiamento, que essas pessoas realmente se voltam à procura de socorro contra a superstição de seus pais. Esta é a contradição; esta é a colisão destruidora; este é o desastre intelectual inevitável no qual eles já se envolveram; e temos apenas de esperar tão pacientemente quanto pudermos para ver quanto tempo eles ainda levarão para perceberem o que aconteceu.
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