TERCEIRA PARTE
O SEMBLANTE DO SENHOR
VII – TERCEIRA PALAVRA: JOÃO E MARIA.
Assim, toda a vida passada de Jesus reconstitui-se
aos pés da Cruz nas recordações comovidas e agitadas dos assistentes. Maria,
Madalena, o próprio ladrão, a se dar crédito à piedosa lenda que faz desse
ladrão um miraculado de Cristo no deserto, na estrada do exílio quando a
Sagrada Família fugiu para o Egito: - outras tantas testemunhas do passado.
Todas as santas mulheres que O seguiram pelos caminhos da Galiléia e da Judéia,
e que lá estão, ao longe, também devem repassar as recordações de outrora, sobretudo
a hora do seu primeiro encontro com o Cristo; as palestras familiares, à tarde,
ao frescor cadente da noite, debaixo das grandes figueiras, dos opulentos
sicômoros, ou através dos eloendros que beiram as margens encantadoras de
Tiberíades: o Mestre gostava tanto de ali pregar a Sua nova e insólita
doutrina!
Tudo revive, por conseguinte, aos olhos deles, e
essas múltiplas imagens formam uma auréola de glória, de amor e de saudade em
torno do Semblante lânguido do Senhor.
Estava ainda lá, com as três Marias, Salomé, a mãe
ambiciosa dos filhos de Zebedeu, Tiago e João: como ela também não havia de se
lembrar da hora em que, tomada de uma pretensão bem perdoável às mães, se
abeirava do Cristo no caminho, dizendo-Lhe: - Mestre, quero pedir-Vos uma
coisa. – Oh, que é? – Já que sois Rei, sobretudo já que o ides ser, fazei que
meus dois filhos, João e Tiago, se assentem no Vosso Reino um à Vossa direita e
outro à Vossa esquerda. – Ó mulher, não sabeis o que estais pedindo. O Meu
Reino, mas vede-lhe as insígnias hoje: o trono, uma cruz; a coroa, espinhos; as
jóias, o Meu sangue que borbota; o Meu título está pregado lá em cima, lede-o;
e os que estão a Minha direita e à Minha esquerda, dois crucificados como Eu.
Não, em verdade não sabeis o que pedis. João e Tiago, sois capazes de beber no
Meu cálice? – Sim, Senhor. – Sim?... mas este cálice é fel, vinagre, são as
lágrimas que Me escorrem dos olhos, é a cólera de Meu Pai, é o desprezo dos
homens, é o abandono dos Meus. E bebereis tudo isto? Oh! não sabeis o que
estais pedindo. O bom ladrão mendigar-Me-á uma simples lembrança, bem longe de
reclamar lugares de escolha; e há de ter a lembrança e há de ter o lugar.
Todo o que se exaltar será humilhado, e todo o que
se humilhar será exaltado.
Como todos estes pensamentos, como todos esses
longínquos quadros deviam vir flutuar em torno de Salomé, mormente quando ao
lado daquele Jesus moribundo, desconsiderado e escarnecido, ela avistava de pé
seu filho João! Ele lá estava sozinho.
E o outro, Tiago? aquele que pedia também um lugar
junto ao Rei e afirmava poder beber no mesmo cálice? Fugiu, esconde-se; João
está só, e era o mais moço.
E também este, naquele cimo ensangüentado, deve
pensar nos dias antigos, e as suas recordações comovidas escrevem uma página da
vida passada do Mestre.
A hora do primeiro encontro impõe-se-lhe
amorosamente à memória, porque há sempre que tornar a esse instinto do coração
que, em face do ser amado, amesquinhado, rebusca avidamente as primeiras
imagens do seu primeiro amor.
João pensa, assim, naquelas margens do Jordão onde
o Precursor batizava no meio dos compridos caniços afilados e das moitas de
tamargueiras que beiravam o rio. Naquele dia do primeiro encontro, o Batista
estava sozinho naquelas margens tão frescas e contrastarem violentamente com a
planície arenosa de Jericó, talada como um leito de torrente enxuto. Estava só
com dois discípulos, André de Betsaida e João filho de Salomé e de Zebedeu,
pescador, como André, no lago de Genesaré.
São quatro horas da tarde, o ar está mais tépido, o
sol vai sumir-se para as bandas de Jerusalém, por trás dos montes da
Quarentena.
Súbito, faz-se ouvir um ruído de passos; João
Batista se volta: é Jesus. A Sua alva figura sobressai através das folhagens.
- Eis o Cordeiro de Deus, murmura o Batista.
André e João apreenderam essa palavra escapada ao
Precursor, deixam-no e põem-se a seguir timidamente Jesus que caminha na
frente.
Em dado momento, o Cristo se volta.
- Que quereis? Perguntou-lhes. – Mestre, saber onde
morais. – Vinde e vede.
Aonde os conduziu Ele? A que retiro? A Jericó? Mais
além, para o lado do Mar Morto? Ou na direção da fonte de Eliseu? Não o
sabemos, mas sabemos que eles ficaram com Ele todo o resto do dia; sabemos
também que, no dia seguinte ao dessa entrevista, André, encontrando-se com seu
irmão Simão, dizia-lhe: - Encontramos o Messias. E sabemos mais que, há algum
tempo daí, passando Jesus por diante da barca de João e de Tiago, os dois
irmãos que pescavam com seu pai Zebedeu, o Mestre diz: - Vinde e segui-Me.
Assim foi feito. João estava capturado. Lembrava-se
dessa captura deliciosa, e também do quanto entrara depois na intimidade do
Senhor, a ponto de repousar a cabeça no Seu peito, quase rosto contra rosto. E
hoje, que mudança! Sobretudo quando, contemplando aquele Semblante conspurcado
e desdourado, revia-o nas suas lembranças brilhantes como o sol, no cimo do
Tabor.
No lugar daqueles dois ladrões havia então Elias e
Moisés: o céu falava, o Cristo rutilava, alvejara-se-Lhe a veste de uma alvura
de neve... e agora, naquela escuridão crescente do Calvário, João já não via
senão três agonizantes que estertoravam em três cruzes.
Evidentemente devia operar-se-lhe uma subversão no
espírito: ele não compreendia, não apreendia o porquê de tantos sofrimentos.
Nem nós, tampouco, compreendemos na nossa vida a
causa misteriosa das provações que nos acabrunham: faz-se mister uma luz mais
alta do que a da nossa razão. Creiamos, porém, que isso é justo, que isso é
bom, que isso é glorioso para Deus. Este ato de fé é a única luz que sobrevive
a muitas sombras, e que brilha através dos destroços esparsos da nossa pobre
vida...
Nesse ínterim, o céu se velava cada vez mais de
trevas inexplicáveis: foi nesse momento, foi no meio do desconcerto que
naturalmente devia causar esse fenômeno, que subitamente Jesus chamou por Sua
Mãe:
- Mulher, diz Ele docemente, Mulier...
Não estaquemos ante a frieza aparente de um termo
que em realidade e na língua do lugar é um termo de respeito e de veneração
afetuosa.
“Ele chama por Sua Mãe, diz Santo Ambrósio, porque
a Sua ternura de Filho devia este último testemunho a semelhante Mãe”.
(Epístola à Igreja de Verceil).
Que frêmito não deve ter sacudido todo o coração de
Maria! Como Ela Se aproximou da Cruz, quase a colar os lábios aos membros de
Seu querido Filho, estendendo os braços para cima, e mais ainda toda a Sua
alma!
- Mulher, Mãe!... é o último apelo dos moribundos.
Aqueles que assistem; testemunhas contristadas, às agonias dos hospitais, aos
últimos estertores do ferido nos campos de batalha, surpreendem-se de ouvir
brotar, nos extremos delírios, como um grito lancinante, esse doce nome de mãe.
É um clamor desesperado ao ente a quem mais havemos querido. Quando o homem
sente que tudo lhe vai fugir, por um derradeiro instinto volve-se então para
aquele que nunca abandona porque sempre amou, e chama: Minha mãe!
Naquele espírito que soçobra só há um semblante que
sobrenada a tudo o mais: minha mãe! E é como que uma invencível esperança de
que essa mãe reclamada vencerá todos os obstáculos e todas as distâncias, para
vir uma última vez beijar aquela fronte que empalidece e aqueles lábios que
morrem...
“Santa Maria, Mãe de Deus e mãe nossa, rogai por
nós pecadores, agora, mas, sobretudo na hora da nossa morte”.
Eu compreendo esta oração, ela é feita para mim, ó
meu Deus; e nesse último apelo ao coração tão bom de minha Mãe do céu eu
saberei por tudo quanto minha alma ainda conservar de ternura e de súplica.
- Mulier,
Mulher, Mãe, dizia, pois Jesus, esse será doravante o Vosso filho!... e indicou
João com o olhar.
- Eis aí Vosso Filho em Meu lugar, ó Mulher, em Meu
lugar, ó Mãe!...
E, volvendo para o discípulo a quem amava os olhos
dolorosos, murmurou:
- Eis aí vossa Mãe.
E, isto dizendo, reengolfou-Se num grande silêncio.
(A Subida do Calvário, pelo Pe. Luís Perroy,
S.J.; Editora Vozes, III Edição, 1957. Continua com o post: o grande silêncio.)
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