quinta-feira, 22 de agosto de 2013

A Subida do Calvário 3º parte - VI. SEGUNDA PALAVRA: O BOM LADRÃO


TERCEIRA PARTE 
O SEMBLANTE DO SENHOR

VI – SEGUNDA PALAVRA: O BOM LADRÃO. 
 

Este episódio do ladrão é um dos mais maravilhosos, dos mais consoladores para nós no grande drama do Calvário.

O que primeiro admira é a rapidez que empolga a cena. Algumas palavras se cruzam por sobre a cabeça inclinada de Jesus Cristo, uma prece a esse Cristo, uma resposta de Jesus, e está tudo acabado. Mas também está tudo mudado. Aquele bandido, coberto de todos os seus crimes mais ainda do que do seu sangue, torna-se, num abrir e fechar de olhos, um santo tão purificado e um eleito tão autêntico, que merecerá naquele dia mesmo ser o companheiro de Cristo no paraíso.

- Hoje, digo-te em verdade, Eu, este Rei achincalhado, mas eterno, hoje mesmo estarás comigo no paraíso – Que rapidez!...

Deus não precisa de muito tempo para entrar numa alma, para transformá-la completamente: e é o que é consolador para nós. Mas, nessa ação tão rápida, que drama profundo e pungente: é mister acompanhar-lhe todas as peripécias.

São, portanto, três na cruz, a dominarem com suas cabeças lívidas e já moribundas a multidão que lhes ondeia aos pés. Ora, daqueles três, só um tem a fronte curvada como um convencido, como um verdadeiro condenado que se envergonha dos seus crimes e os reconhece: é o Cristo.

Os outros dois estão no paroxismo da dor e da revolta. Um frêmito de ódio sacode-lhes os pobres membros regados de sangue. Eles parece terem esquecido todo o seu passado, não pensam em qual tenha sido a sua vida e qual também a sua justa condenação. Voltam-se contra Jesus, que parece a causa do seu suplício. Teriam eles sido crucificados naquele dia mesmo se o Cristo não tivesse tido de o ser? Ele lhes é, pois, ao menos a causa da sua morte antecipada, e em razão disto raivam, rangem de furor, blasfemando o divino Pendurado da Cruz.

Et latrones qui crucifixi erant cum eo improperabant ei (Mt. 27,44).

Jesus, cujo ouvido divino percebe todas as intenções secretas, condói-Se deles mais talvez do que os de baixo; sente nas palavras deles a dor abrasadora que os aguilhoa: e por eles tanto quanto pelos algozes foi que Ele deixou cair a sua doce e primeira prece: - Pai, perdoai-lhes, porque eles, principalmente eles, não sabem o que fazem.

Ó mistério das eleições divinas! Ó profundeza das potências da nossa vontade! Os dois ouviram a santa e abençoada palavra. Um se cala, opresso, aturdido por aquele golpe de misericórdia; o outro, entregue todo à sua dor, ao seu violento desejo de viver, à raiva de ter sido crucificado mais cedo por causa daquele Jesus, o outro, apanhado no ar todas as blasfêmias que sobem de baixo, pega de uma à passagem e exclama:

- Se verdadeiramente és o Cristo, começa por te salvares a ti mesmo, e a nós depois!...

Esta impetração não tinha nada, em si, de blasfêmia: o ladrão exacerbado clama àquele Messias, àquele taumaturgo, àquele Filho de Deus, que se salve a Si, e a eles ainda por cima. Não pede sequer a salvação para si só: Et nos, porém nós contigo, nós dois que estamos sofrendo e morrendo atrozmente. É provável, entretanto, que esse pedido tenha sido acompanhado e seguido de mais odiosas blasfêmias.

Insinua-se o evangelista: um dos ladrões, diz ele, blasfemava contra Ele, chamando:

- Salva-te então a ti mesmo e a nós dois contigo.

Mas a resposta brusca, viva do outro ladrão é a prova disso. Não é mesmo uma resposta, é uma violenta réplica:

- Oh! como! Brada o ladrão que estava defronte, nem tu também tens medo de Deus?... embora estejas morrendo no mesmo suplício?... Ainda para nós é só justiça; mas ele, ele não fez mal.

Que significa isto, em verdade? Eis então aquele ladrão, aquele celerado que cuspia blasfêmias havia apenas um instante, e que subitamente se faz advogado daquele a quem insultava? Chega até a falar de um Deus que estaria ali... pertinho... Será o delírio da agonia, será a demência do sofrimento que assim o fazem disparatar?

Há naquelas palavras uma sucessão rápida de sentimentos que denota o trabalho de uma graça excessiva.

O ladrão ouviu e ainda ouve todas as blasfêmias que sobem para a cruz: ouviu ao mesmo tempo a prece e o silêncio daquele Cristo pregado naquela cruz, daquele Cristo a quem alternativamente e por mofa chamam de Messias, de Rei dos Judeus, de Filho de Deus. A princípio ele se admira; mas em seguida parece apreender a monstruosa injustiça que cravou no mesmo patíbulo aquele Cristo benfeitor e a eles... celerados.

 

Sente então – por esse instinto supremo de justiça – que um Deus mais cedo ou mais tarde vingador paira sobre aquele drama do Calvário:

- Então não o temes... esse Deus, clama ele ao companheiro... nós, nós temos só aquilo que merecemos... mas Ele, esse companheiro que ai está, no meio... que mal fez?...

E olha para ele... e, à medida que fala, dir-se-ia que uma luz lhe invade o espírito.

- Não, não, esse ente que morre como nós, e que perdoa, e que ora morrendo, não é um ente vulgar: coroaram-no irrisoriamente... e cruelmente... mas, e se fosse um Rei? Matam-no porque ele é o falso Messias: mas, e se fosse o verdadeiro?

Se fosse o Filho de Deus... o próprio Deus?...

- É, eu creio, sinto, confesso-o e imploro-o...

E, volvendo os olhares súplices para o Cristo, murmurou:

- “Senhor, lembrai-vos de mim... quando chegardes ao vosso reino!”

Ó conversão estranha, exclama São João Crisóstomo. Ele vê um crucificado... e confessa um Rei da Glória! (Crisóstomo, homilias. De cruce et latrone.)

Vê chagas abertas e sangue que corre, diz Santo Ambrósio, e, bem longe de o crer um criminoso, reconhece-o como um Deus! (Ambrósio, sermão 50).

Ele não clama como os outros, diz Eusébio: Se é Deus, salva-me; mas sim: Já que és Deus, livra-me do julgamento futuro. (Eusébio, homilia de Latrone beato.) Meu Senhor e meu Mestre... dignai-vos de Vos lembrar de mim...

Assim, aquele homem já não crê, vê, a fé foi absorvida.

Ele já está nos esplendores da graça, compreendeu num instante toda a economia da vida e da morte divinas. (Cornélio a Lapide – Comnent. in Lucam, c. 23 ss 40 – chega até a dizer que, chamando ao companheiro: Neque tu times Deum? [Tu também não temes a Deus?] videtur Christum denotare eumque confiteri esse Deum, q. e.: Times vindictam Christi quem blasphemas, quia ipse non tantum est homo sed et Deus”; parece designar o Cristo e confessar que ele é Deus; ou seja: Não temes a vingança do Cristo que blasfemas? Porque Ele não é só homem, mas também Deus. – Santo Ambrósio e Eusébio têm esses mesmos sentimentos.) O homem que está ali no meio é um Deus, e está condenado embora não tenha feito mal algum, e morre por ser o grande celerado, o grande miserável da humanidade.

Mas é também o Rei lá do alto: tem, pois um reino, um palácio, servos: vai subir a esse reino, e pode fazer ali entrar quantos quiserem crer nEle.

E então ele crê, espera, ama, aquele, pobre ladrão sem letras e sem ciências, repleto de pecados e de ignomínias; mas ele sabe divinamente que todos os seus pecados, todas as suas ignomínias lá estão sobre aquele homem-Deus, como a púrpura real do Rei que Ele é: e diz docentemente fazendo-Se pequeno na Cruz, não podendo estender a mão como um mendigo, mas estendendo a alma dolorida e radiosa:

- Meu Senhor e meu Rei, lembrai-Vos de mim, - uma simples lembrança! – quando entrardes no Vosso grande reino.

E Jesus, que não pode mexer-Se, imóvel também, e Jesus, que não pode nem erguer a cabeça para o ósculo de amor nem levantar os braços para o perdão supremo, Jesus diz-lhe, entretanto com uma irradiação de bondade e de alegria inefável:

- Hoje, amigo, sou eu quem te diz, estarás junto a mim no paraíso.

No paraíso! Com Ele! Ouviste, ó pobre facinoroso? E entre a imobilidade dolorosa daqueles dois homens passou-se num instante a maior e a mais rápida ação que jamais tenha havido.

E agora o ladrão se clã: Jesus igualmente não diz mais nada; porém os seus dois semblantes se entreolham e os seus dois corações se falam: “In hoc enim totius forma salutis”, diz Santo Ambrósio (Sermão 50). E eis aqui todo o segredo da salvação eterna.

Reconhecer um Deus lá onde há um simples homem, e um homem humilhado; discernir através dos desfalecimentos do supliciado a glória do Rei eterno! E, quanto a nós, nas particularidades da vida, não nos escandalizarmos com a mão que nos fere: bem mais ainda, beijarmos essa mão quando nos lacera ou se retira; muito melhor, não murmurarmos do silêncio, às vezes esmagador, de Deus, e da convivência que Ele parece emprestar aos nossos inimigos: enfim, por toda parte e sempre firmes na fé e ardentes no amor, aguardarmos a “revelação futura” e consentirmos em murmurar o nosso Credo até o fim, nas trevas do Calvário: repito, é toda a santificação. In hoc totius forma salutis. Desde agora a noite pode vir, há ao pé da grande vítima um facho que arde: a alma luminosa do ladrão, que lhe ilumina a pavorosa agonia com a rutilação da bondade divina. Ele vela, ora, espera. “Comigo, no paraíso, hoje”; isto lhe basta, e ele torna a entrar na sua escuridão e na sua imobilidade.

Como Deus é bom! Como, depois do que acabamos de ver, não crermos que ele queira perdoar-nos?

Que é que nos impediria, aliás, de receber essa inesgotável misericórdia?...

Olha para o Calvário, ó minha alma: seriam os teus pecados? O número deles? A malícia? Toda a vida pregressa do bom ladrão é como que aniquilada num instante; abisma-se nesta palavra:

- Hoje, comigo, no paraíso. – Mas e ontem?
- Que importa o ontem? Se hoje estás no paraíso, que mais te é preciso?...
- Seria o tempo que te faltaria? Alguns segundos bastaram àquele criminoso.
- É a justiça de Deus que te assusta? – Onde está ela? Na Cruz. Em ti só vejo agora a obra da bondade. E então? Que é que pode atormentar-te?

Ó tortura, ó grandeza, ó suprema piedade de Deus! Ó meus pecados, como me inquietais pouco! Tivesse-os em cem vezes mais, que é preciso para os fazer para sempre perdoar?

É preciso estar na cruz: estaremos ao menos quando morrermos. É preciso reconhecer que sofremos justamente: é a única vantagem que devemos auferir dos nossos pecados. Finalmente, é preciso mendigar um olhar do Rei Jesus. Memento mei; menos do que um olhar, uma lembrança basta.

Tudo o que não passa de um temor ultrajante para com um Deus tão bom. Não só Ele perdoa, não só esquece, mas ao mesmo tempo diz:

- Estarás comigo hoje.
- E o purgatório?
- Comigo, digo-te, e no paraíso. Então eu não posso tudo apagar, tudo tirar, quando me apraz? Ecce agnus Dei qui tollit peccata mundi. Se eu tiro os pecados do mundo, não estão dentro os teus?...

E eis aí o segredo da paz e da confiança dos nossos últimos momentos.

- Mas eu sofro constrangido e forçado.
- Que importa, se sofres!

“Pois Jesus perdoa facilmente aos que sofrem com Ele e fazem um sacrifício voluntário dos seus males mesmos forçados” (Bossuet – meditação para o tempo do Jubileu, 5ª consideração.)

- Mas...
- Pára com as tuas objeções, alma ainda orgulhosa até o fim: acaso o pobre discute quando estende a mão? Estende a tua, recebe, e fica para sempre na gratidão.

Há almas santas que guardam sempre em reserva alguma força a fazer valer contra a justiça de Deus: uma irrisão!... teias de aranha diante de uma chama ardente!... mais vale ainda depender só da sua piedade.

Ir-se para Deus pobre, nu, vazio e despojado, nada mais tendo depois de ter tido tudo; só lhe poder apresentar a própria miséria e decadência, abeirar-se daquele juiz temível que penetra os anjos, e apresentar-se-Lhe sem advogado, sem inocência e sem reparação: de certo, que mais tremenda desgraça!... A não ser que se sinta desabrochar docemente nos lábios, com o espírito do bom ladrão, esta oração única que tudo salvará: In sola misericordia Domini spero salutem. Só da compaixão do Senhor espero a minha salvação. Amém (Epitáfio de uma antiga pedra sepulcral na igreja de São Remígio, em Reims.)

(A Subida do Calvário, pelo Pe. Luís Perroy, S.J.; Editora Vozes, III Edição, 1957. Continua com o post: Terceira palavra: João e Maria.)

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