TERCEIRA PARTE
O SEMBLANTE DO SENHOR
VI – SEGUNDA PALAVRA: O BOM LADRÃO.
Este episódio do ladrão é um dos mais maravilhosos,
dos mais consoladores para nós no grande drama do Calvário.
O que primeiro admira é a rapidez que empolga a
cena. Algumas palavras se cruzam por sobre a cabeça inclinada de Jesus Cristo,
uma prece a esse Cristo, uma resposta de Jesus, e está tudo acabado. Mas também
está tudo mudado. Aquele bandido, coberto de todos
os seus crimes mais ainda do que do seu sangue, torna-se, num abrir e fechar de
olhos, um santo tão purificado e um eleito tão autêntico, que merecerá naquele
dia mesmo ser o companheiro de Cristo no paraíso.
- Hoje, digo-te em verdade, Eu, este Rei
achincalhado, mas eterno, hoje mesmo estarás comigo no paraíso – Que
rapidez!...
Deus não precisa de muito tempo para entrar numa
alma, para transformá-la completamente: e é o que é consolador para nós. Mas,
nessa ação tão rápida, que drama profundo e pungente: é mister acompanhar-lhe
todas as peripécias.
São, portanto, três na cruz, a dominarem com suas
cabeças lívidas e já moribundas a multidão que lhes ondeia aos pés. Ora,
daqueles três, só um tem a fronte curvada como um convencido, como um
verdadeiro condenado que se envergonha dos seus crimes e os reconhece: é o
Cristo.
Os outros dois estão no paroxismo da dor e da
revolta. Um frêmito de ódio sacode-lhes os pobres membros regados de sangue.
Eles parece terem esquecido todo o seu passado, não pensam em qual tenha sido a
sua vida e qual também a sua justa condenação. Voltam-se contra Jesus, que
parece a causa do seu suplício. Teriam eles sido crucificados naquele dia mesmo
se o Cristo não tivesse tido de o ser? Ele lhes é, pois, ao menos a causa da
sua morte antecipada, e em razão disto raivam, rangem de furor, blasfemando o
divino Pendurado da Cruz.
Et latrones
qui crucifixi erant cum eo improperabant ei (Mt. 27,44).
Jesus, cujo ouvido divino percebe todas as
intenções secretas, condói-Se deles mais talvez do que os de baixo; sente nas
palavras deles a dor abrasadora que os aguilhoa: e por eles tanto quanto pelos
algozes foi que Ele deixou cair a sua doce e primeira prece: - Pai,
perdoai-lhes, porque eles, principalmente eles, não sabem o que fazem.
Ó mistério das eleições divinas! Ó profundeza das
potências da nossa vontade! Os dois ouviram a santa e abençoada palavra. Um se
cala, opresso, aturdido por aquele golpe de misericórdia; o outro, entregue
todo à sua dor, ao seu violento desejo de viver, à raiva de ter sido
crucificado mais cedo por causa daquele Jesus, o outro, apanhado no ar todas as
blasfêmias que sobem de baixo, pega de uma à passagem e exclama:
- Se verdadeiramente és o Cristo, começa por te
salvares a ti mesmo, e a nós depois!...
Esta impetração não tinha nada, em si, de
blasfêmia: o ladrão exacerbado clama àquele Messias, àquele taumaturgo, àquele
Filho de Deus, que se salve a Si, e a eles ainda por cima. Não pede sequer a
salvação para si só: Et nos, porém
nós contigo, nós dois que estamos sofrendo e morrendo atrozmente. É provável,
entretanto, que esse pedido tenha sido acompanhado e seguido de mais odiosas
blasfêmias.
Insinua-se o evangelista: um dos ladrões, diz ele,
blasfemava contra Ele, chamando:
- Salva-te então a ti mesmo e a nós dois contigo.
Mas a resposta brusca, viva do outro ladrão é a
prova disso. Não é mesmo uma resposta, é uma violenta réplica:
- Oh! como! Brada o ladrão que estava defronte, nem
tu também tens medo de Deus?... embora estejas morrendo no mesmo suplício?...
Ainda para nós é só justiça; mas ele, ele não fez mal.
Que significa isto, em verdade? Eis então aquele
ladrão, aquele celerado que cuspia blasfêmias havia apenas um instante, e que
subitamente se faz advogado daquele a quem insultava? Chega até a falar de um
Deus que estaria ali... pertinho... Será o delírio da agonia, será a demência
do sofrimento que assim o fazem disparatar?
Há naquelas palavras uma sucessão rápida de
sentimentos que denota o trabalho de uma graça excessiva.
O ladrão ouviu e ainda ouve todas as blasfêmias que
sobem para a cruz: ouviu ao mesmo tempo a prece e o silêncio daquele Cristo
pregado naquela cruz, daquele Cristo a quem alternativamente e por mofa chamam
de Messias, de Rei dos Judeus, de Filho de Deus. A princípio ele se admira; mas
em seguida parece apreender a monstruosa injustiça que cravou no mesmo patíbulo
aquele Cristo benfeitor e a eles... celerados.
Sente então – por esse instinto supremo de justiça
– que um Deus mais cedo ou mais tarde vingador paira sobre aquele drama do
Calvário:
- Então não o temes... esse Deus, clama ele ao
companheiro... nós, nós temos só aquilo que merecemos... mas Ele, esse
companheiro que ai está, no meio... que mal fez?...
E olha para ele... e, à medida que fala, dir-se-ia
que uma luz lhe invade o espírito.
- Não, não, esse ente que morre como nós, e que
perdoa, e que ora morrendo, não é um ente vulgar: coroaram-no irrisoriamente...
e cruelmente... mas, e se fosse um Rei? Matam-no porque ele é o falso Messias:
mas, e se fosse o verdadeiro?
Se fosse o Filho de Deus... o próprio Deus?...
- É, eu creio, sinto, confesso-o e imploro-o...
E, volvendo os olhares súplices para o Cristo,
murmurou:
- “Senhor, lembrai-vos de mim... quando chegardes
ao vosso reino!”
Ó conversão estranha, exclama São João Crisóstomo.
Ele vê um crucificado... e confessa um Rei da Glória! (Crisóstomo, homilias. De cruce et latrone.)
Vê chagas abertas e sangue que corre, diz Santo
Ambrósio, e, bem longe de o crer um criminoso, reconhece-o como um Deus!
(Ambrósio, sermão 50).
Ele não clama como os outros, diz Eusébio: Se é
Deus, salva-me; mas sim: Já que és Deus, livra-me do julgamento futuro.
(Eusébio, homilia de Latrone beato.)
Meu Senhor e meu Mestre... dignai-vos de Vos lembrar de mim...
Assim, aquele homem já não crê, vê, a fé foi
absorvida.
Ele já está nos esplendores da graça, compreendeu
num instante toda a economia da vida e da morte divinas.
(Cornélio a Lapide – Comnent. in Lucam, c. 23 ss 40 – chega até a dizer que,
chamando ao companheiro: Neque tu times
Deum? [Tu também não temes a Deus?] videtur
Christum denotare eumque confiteri esse Deum, q. e.: Times vindictam Christi quem blasphemas, quia ipse non tantum est homo
sed et Deus”; parece designar o Cristo e confessar que ele é Deus; ou seja:
Não temes a vingança do Cristo que blasfemas? Porque Ele não é só homem, mas
também Deus. – Santo Ambrósio e Eusébio têm esses mesmos sentimentos.) O homem que está ali no meio é um Deus, e está
condenado embora não tenha feito mal algum, e morre por ser o grande celerado,
o grande miserável da humanidade.
Mas é também o Rei lá do alto: tem, pois um reino,
um palácio, servos: vai subir a esse reino, e pode fazer ali entrar quantos
quiserem crer nEle.
E então ele crê, espera, ama, aquele, pobre ladrão
sem letras e sem ciências, repleto de pecados e de ignomínias; mas ele sabe
divinamente que todos os seus pecados, todas as suas ignomínias lá estão sobre
aquele homem-Deus, como a púrpura real do Rei que Ele é: e diz docentemente
fazendo-Se pequeno na Cruz, não podendo estender a mão como um mendigo, mas
estendendo a alma dolorida e radiosa:
- Meu Senhor e meu Rei, lembrai-Vos de mim, - uma
simples lembrança! – quando entrardes no Vosso grande reino.
E Jesus, que não pode mexer-Se, imóvel também, e
Jesus, que não pode nem erguer a cabeça para o ósculo de amor nem levantar os
braços para o perdão supremo, Jesus diz-lhe, entretanto com uma irradiação de
bondade e de alegria inefável:
- Hoje, amigo, sou eu quem te diz, estarás junto a
mim no paraíso.
No paraíso! Com Ele! Ouviste, ó pobre facinoroso? E
entre a imobilidade dolorosa daqueles dois homens passou-se num instante a
maior e a mais rápida ação que jamais tenha havido.
E agora o ladrão se clã: Jesus igualmente não diz
mais nada; porém os seus dois semblantes se entreolham e os seus dois corações
se falam: “In hoc enim totius forma
salutis”, diz Santo Ambrósio (Sermão 50). E eis aqui todo o segredo da
salvação eterna.
Reconhecer um Deus lá onde há um
simples homem, e um homem humilhado; discernir através dos desfalecimentos do
supliciado a glória do Rei eterno! E, quanto a nós, nas particularidades da
vida, não nos escandalizarmos com a mão que nos fere: bem mais ainda, beijarmos
essa mão quando nos lacera ou se retira; muito melhor, não murmurarmos do
silêncio, às vezes esmagador, de Deus, e da convivência que Ele parece
emprestar aos nossos inimigos: enfim, por toda parte e sempre firmes na fé e
ardentes no amor, aguardarmos a “revelação futura” e consentirmos em murmurar o
nosso Credo até o fim, nas trevas do Calvário: repito, é toda a santificação. In hoc totius forma salutis. Desde agora
a noite pode vir, há ao pé da grande vítima um facho que arde: a alma luminosa
do ladrão, que lhe ilumina a pavorosa agonia com a rutilação da bondade divina.
Ele vela, ora, espera. “Comigo, no paraíso, hoje”; isto lhe basta, e ele torna
a entrar na sua escuridão e na sua imobilidade.
Como Deus é bom! Como, depois do que acabamos de
ver, não crermos que ele queira perdoar-nos?
Que é que nos impediria, aliás, de receber essa
inesgotável misericórdia?...
Olha para o Calvário, ó minha alma: seriam os teus
pecados? O número deles? A malícia? Toda a vida pregressa do bom ladrão é como
que aniquilada num instante; abisma-se nesta palavra:
- Hoje, comigo, no paraíso. – Mas e ontem?
- Que importa o ontem? Se hoje estás no paraíso,
que mais te é preciso?...
- Seria o tempo que te faltaria? Alguns segundos
bastaram àquele criminoso.
- É a justiça de Deus que te assusta? – Onde está
ela? Na Cruz. Em ti só vejo agora a obra da bondade. E então? Que é que pode
atormentar-te?
Ó tortura, ó grandeza, ó suprema piedade de Deus! Ó
meus pecados, como me inquietais pouco! Tivesse-os em cem vezes mais, que é
preciso para os fazer para sempre perdoar?
É preciso estar na cruz: estaremos ao
menos quando morrermos. É preciso reconhecer que sofremos justamente: é a única
vantagem que devemos auferir dos nossos pecados. Finalmente, é preciso mendigar
um olhar do Rei Jesus. Memento mei;
menos do que um olhar, uma lembrança basta.
Tudo o que não passa de um temor ultrajante para
com um Deus tão bom. Não só Ele perdoa, não só esquece, mas ao mesmo tempo diz:
- Estarás comigo hoje.
- E o purgatório?
- Comigo, digo-te, e no paraíso. Então eu não posso
tudo apagar, tudo tirar, quando me apraz?
Ecce agnus Dei qui tollit peccata mundi. Se eu tiro os pecados do mundo,
não estão dentro os teus?...
E eis aí o segredo da paz e da confiança dos nossos
últimos momentos.
- Mas eu sofro constrangido e forçado.
- Que importa, se sofres!
“Pois Jesus perdoa facilmente aos que sofrem com
Ele e fazem um sacrifício voluntário dos seus males mesmos forçados” (Bossuet –
meditação para o tempo do Jubileu, 5ª consideração.)
- Mas...
- Pára com as tuas objeções, alma
ainda orgulhosa até o fim: acaso o pobre discute quando estende a mão? Estende
a tua, recebe, e fica para sempre na gratidão.
Há almas santas que guardam sempre em reserva
alguma força a fazer valer contra a justiça de Deus: uma irrisão!... teias de
aranha diante de uma chama ardente!... mais vale ainda depender só da sua
piedade.
Ir-se para Deus pobre, nu, vazio e
despojado, nada mais tendo depois de ter tido tudo; só lhe poder apresentar a
própria miséria e decadência, abeirar-se daquele juiz temível que penetra os
anjos, e apresentar-se-Lhe sem advogado, sem inocência e sem reparação: de
certo, que mais tremenda desgraça!... A não ser que se sinta desabrochar
docemente nos lábios, com o espírito do bom ladrão, esta oração única que tudo
salvará: In sola misericordia Domini
spero salutem. Só da compaixão do Senhor espero a minha salvação. Amém
(Epitáfio de uma antiga pedra sepulcral na igreja de São Remígio, em Reims.)
(A Subida do Calvário, pelo Pe. Luís Perroy,
S.J.; Editora Vozes, III Edição, 1957. Continua com o post: Terceira
palavra: João e Maria.)
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