TERCEIRA PARTE
O SEMBLANTE DO SENHOR
V – OS ÚLTIMOS TRAÇOS DO SEMBLANTE: "PAI PERDOAI-LHES"
Foi do seio turbulento daquelas zombarias que se
elevou, doce e vitoriosa como um incenso em meio aos acres vapores do
holocausto, a primeira palavra do Cristo na Cruz. A horrível crucifixão acaba
de ser concluída, o patíbulo está ereto, é o momento em que todo o corpo,
suspenso de chagas, experimenta a mais intensa dor. Reina desordem no Calvário:
gritos, ameaças, soluços, maldições cruzam-se como setas em torno daquele
semblante.
Foi então que daquela boca contraída escapou este
grito: “Pai, perdoai-lhes, eles não sabem o que fazem”.
São os últimos traços do semblante do Senhor que se
perfazem. Assim como, no momento de entregar o seu quadro, o pintor se
concentra e, nos derradeiros toques do pincel, faz passar o resto e o supremo
do seu ideal, assim também a Bondade divina termina a Sua obra difundindo-se em
tintas mais profundas sobre todo o semblante do Cristo.
“Pai,
perdoai-lhes!” É uma prece, é um ato de humildade também: o Filho que tudo
pode suplica ao Pai que perdoe; em verdade, não podia Ele próprio perdoar? É,
ademais, uma doçura que desculpa, que atenua, que procura o que há de bom e de
menos mau nos culpados, para justificar o perdão: porque importa que esse
perdão seja justificado, tanto a delicada bondade de Deus receia magoar
poupando e humilhar absolvendo.
“Eles não
sabem o que fazem”. Como haveriam de sabê-lo, aqueles homens habituados
àquela tarefa? Era acaso o seu primeiro crucificado? Será o último?
Nada deve parecer mais indiferente do que o algoz.
Ele mata indistintamente, como outros compram, vendem, edificam e traficam;
aquilo se torna uma função da sua existência. Acaba ele, pois, por matar com
insensibilidade.
Assim faziam os algozes de Jesus: batendo a golpes
redobrados naquelas mãos que se crispam, naqueles pés que se retraem de dor,
eles pensam nos proventos que vão tirar da sua rude tarefa, têm o olho no rosto
no vaso de vinho que lhes pagará o suor, e no monte das vestes da vítima que
eles vão repetir entre si. É preciso dizer todas as coisas como devem ter-se
passado.
“Meu pai, Vós
bem o vedes, eles não sabem o que fazem”.
Os próprios sacerdotes, os anciãos e todo o povo
que moteja também ignoram, não sabem. São Paulo (I Cor 2,8) di-lo-á mais tarde:
se eles tivessem conhecido que aquele era o Deus de glória, nunca O teriam
crucificado. Mas não conheceram, crucificaram-nO mesmo por se haver Ele dito o
Messias: logo, é que Ele não o era mesmo.
Matando-O, pretendem eles, ao contrário, render
preito à verdade, restabelecer tudo na ordem, confundir a impostura e salvar o
povo de perigosa credulidade: “Pai,
perdoai-lhes a todos, verdadeiramente eles não sabem o que fazem”.
Nem tampouco aqueles soldados sabem o que fazem,
aqueles que, sentados aos pés dos três patíbulos, esperam pelo fim, calejados
que estão de convulsões de supliciados e dos estertores daquelas cruéis
agonias. – “A eles também, Pai,
dignai-Vos de perdoar, porque são ignorantes e não conhecem”. Assim aquela
voz do alto, qual orvalho que se esparzisse em derredor, lança sobre todas
aquelas almas rancorosas ou indiferentes a doçura e o frescor do perdão.
Esta palavra já nos mostra as culminâncias do
Cristo. É a superioridade da bondade. No declínio da sua vida humana, quando
Ele sente tudo ceder em torno de Si, a Sua bondade sobe ao ápice como um sol
que dardeja ainda sobre ruínas, e o Seu primeiro raio de luz é um perdão
universal.
A humanidade, que ficou sendo a mesma, tem sempre
necessidade desse perdão. Elevemos, pois, os olhos para essa radiação da
bondade indulgente que forma a última e sublime expressão do semblante de
Cristo.
Perdoar: poucas palavras há que sejam a um tempo
mais perturbadoras e mais consoladoras para o coração do homem.
Perdoar: parece que poucos atos nos sejam tão
difíceis, tanto nos custa, decaídos como somos, sermos bons. Aos olhos do
mundo, quem perdia facilmente é um fraco: a honra interessa-lhe pouco, nada de
grande há que esperar dele.
Em compensação, quem não perdoa sabe fazer-se
respeitar, temem-no: é a fórmula do poder pagão: oderint dum metuant, que me odeiem pouco me importa, contanto que
me temam. Bem o sabia Jesus Cristo, e foi por isto que Ele quis que a Sua
primeira palavra de crucificado fosse uma expressão de perdão.
Nós não perdoamos facilmente porque, no fundo, nos
custa compreender que entre homens do mesmo sangue, irmãos pelo destino, unidos
pelos mesmos instintos, possa haver essa cruel desunião que se chama o ódio: ao
menos é uma homenagem prestada à fraternidade do gênero humano.
E tão verdade é isto, que, quanto mais próximos
somos pela família, pelas afinidades e pelo sangue, tanto mais difícil se torna
o perdão. Que de mais áspero, às vezes, nos seus rancores do que dois irmãos
que sugaram o mesmo leite, amaram a mesma mãe, e cujas vidas se haviam
entrelaçado como os ramos de uma virente e mesma vida? Abismo insondável do coração humano.
Não perdoamos, ainda, facilmente, porque não
motivamos os nossos perdões. Cumpre, entretanto, procurar a circunstância
atenuante: creiamos que ela lá está. Bem a descobriu Jesus que o crucificavam.
Está nisto todo o trabalho divino da caridade. O homem é melhor, no fundo, do
que parece; há poucas almas, por mais perversas que sejam, que não tenham
ocultas algumas fibras sensíveis. É até estas que deve descer a caridade: é
mister ir buscar o verdadeiro homem muito ao fundo, para aí o amar.
Mas, para podermos executar essa obra laboriosa,
temos primeiramente que nos elevar e dizer:
Pater, pai! Só então saberemos abaixar-nos para dizer: Irmão. Assim também,
à medida que nos formos alteando, iremos vendo os óbices à união minguarem, e
aquilo que nos pareciam montanhas perder-se aos poucos e confundir-se na linha
da planície. Quais os que, no fim da sua vida, não enxergam haverem, muitas
vezes, exagerado o seu ódio ou o seu amor?
Era meditando ao pé daquela Cruz, era recolhendo
essa suave palavra, que os santos sentiam a alma se lhes fundir de indulgência.
Um coração bom é um coração para o qual Deus é bom: mas Ele o reconhece, e
então dá daquilo que recebe.
O último raio de luz da santidade é a bondade, a
que dá e, sobretudo a que perdoa. Nunca quando imita essa divina prerrogativa,
e é por isto que o perdão das injúrias opera às vezes tão depressa a
transfiguração e adapta tão bem o semblante da criatura ao do Criador, que a
semelhança é completa. Ora, não há serem salvos senão os que forem achados
parecidos com Jesus Cristo, e com Jesus Cristo crucificado.
Oh! quando Ele inclinar sobre o nosso leito de
morte a cabeça lânguida e coroada de espinhos, e quando murmurar com os lábios
frios: - Pai, perdoai-lhe!...
apressemo-nos a inclinar-nos sobre a nossa própria vida, antes que ela finde,
sondemos, esmerilhemos o nosso passado, para descobrir nele algo que tenhamos a
perdoar.
Felizes nós se pudermos achá-lo, para que possamos
com segurança murmurar por nossa vez: - Assim
como eu perdoei, meu Deus, dignai-Vos de perdoar-me!
Se nada encontrarmos, formulemos mesmo assim esse
desejo de suprema indulgência, esse desejo de tudo atenuarmos, de sermos bom,
supinamente bom no nosso declínio, a fim de entrarmos, da outra banda, na
aurora eterna com o verdadeiro semblante que perdoou.
Quando, no cimo do Calvário que começa a escurecer
ligeiramente, caía essa palavra sublime, era um pouco depois da sexta hora. Bem
diversamente impressionou ela quantos a ouviram.
Maria foi a primeira a distingui-la; ainda quando
fora só um respiro, o Seu ouvido de Mãe, que estava como que colado à boca do
Filho, tê-lo-ia recolhido. Mesmo compreendendo aquela sublime generosidade... –
ela era nossa Mãe, Jesus vai proclamá-lo dentro em pouco, - Ela não se sentiu
menos dolorosamente comovida... pensando nesse perdão divino lançado naquele
cimo árido sobre tantos corações mais áridos ainda, e nesse apelo de amor que,
com a continuação dos tempos, devia repetir-se, tantas vezes ressoar inútil e
sem resposta.
Também Madalena deve ter ficado surpreendida: mas,
depois de baixar os olhos sobre si mesma e de rever todo o seu passado,
compreendeu, exultou de compreender... e que ósculo de gratidão não devia ela
imprimir naqueles pés sangrentos enquanto se elevava a sublime prece, eco do
seu próprio perdão: - Pai perdoai-lhes,
eles não sabem o que fazem!...
João, as santas mulheres ficaram suspensos: aquilo
era demais. Os soldados também não compreenderam; nunca semelhante palavra
vagara nos lábios das suas vítimas comuns. Os Judeus e os fariseus, se a
ouviram, aumentaram com ela os seus risos zombeteiros e os seus sarcasmos
vergonhosos.
Só um homem, que blasfemava ao lado mesmo do Cristo
que perdoava, foi ferido como que por um golpe certeiro, irresistível e
vencedor.
Calou-se subitamente, olhou estupefato para aquele
ente singular: era um dos ladrões.
(A Subida do Calvário, pelo Pe. Luís Perroy,
S.J.; Editora Vozes, III Edição, 1957. Continua com o post: Segunda
palavra: O bom ladrão.)
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