TERCEIRA PARTE
O SEMBLANTE DO SENHOR
II – MARIA
Maria,
Sua Mãe, antes que todos.
Há
o recordar dos nossos amigos e o de nossa mãe: o recordar das mães é mais vivo,
mais extenso, mais amante. Só às mães é dado reencontrar no filho já homem os
olhares cândidos e sedutores da criança. Elas não esqueceram com que dor e com
que alegria deram aquele ser frágil ao mundo.
As
mães quereriam conservar sempre pequenino o filho, tomá-lo nos braços,
estreitá-lo ao seio, numa palavra, ser sós para ele só, a fim de que o filhinho
querido ainda tenha precisão delas. E, como o tempo que marcha não mais o
permite, então elas revivem nas suas recordações aquelas cenas encantadoras da
infância do estremecido.
Maria
não escapou a esta doce tirania do amor materno.
Maria auten conservabat
omnia... hace in corde suo
(Lc. 2, 19,51).
Maria
conservava todas essas coisas no Seu coração.
É
por isto que, quando, erguendo os olhos angustiados, Ela divisava no cimo da
Cruz a face lívida e sangrenta de Seu Filho querido, ó Deus, como tornava a
ver, através daqueles traços aviltados, o rosto encantador da criança de Belém
e de Nazaré!
Quem
de nós não há sentido, em alguma hora de tristeza e de lágrimas, subitamente
passarem diante de si os antigos quadros da sua ventura? É o contraste cruel do
passado e do presente; são os tons claros da aurora que se maravilhara ao lado
da noite brusca em que a tormenta estala e escurece o pleno dia.
Belém,
os seus terraços, as suas oliveiras escalonadas, os pastores que acorriam
ingênuos e confiantes, dando tudo – tudo, aquele pouco que lhes fazia a
riqueza: - Belém, a noite que se ilumina, os anjos que cantam por cima do caro
Menino enfaixado... Mas é forçoso fugir, Herodes lá está: partamos, levemo-lO
depressa... Tomou-O Maria; e a estrada do exílio traça-se penosamente na areia
do deserto.
Eis
o Nilo, “uma água tranqüila e pálida” (Lc. 2,19); as longas pirâmides, a
esfinge irônica e silenciosa, os obeliscos rígidos, e os deuses acorados no
fundo dos templos.
Maria
tem a fronte inclinada sobre o amado rostinho, é quanto Lhe basta.
Sorri
o Menino, o Menino cresce: aquela boca que hoje obstruem o sangue e a escuma da
morte, aquela boca pronunciou o nome de Maria – e com doçura! – pela primeira
vez.
O
exílio já não é exílio quando se tem Jesus. Desfruta-O Maria, não quisera sair
do deserto, sobretudo se é para ir ter àquele cimo do Calvário. Está realmente
ali o contraste doloroso entre o passado e o presente.
E
depois a Virgem Mãe revê Nazaré: a casinha escondida, a oficina, o Menino que
brinca por entre a madeira e os cavacos, e toda a obscuridade dos dias felizes.
Só se lhes vê a felicidade depois: seguiam-se aqueles dias, sem arruído, como
as horas doces que se não ouvem soar, e parecendo-se todos. No entanto, o
semblante querido mudou: o oval tão puro revestiu os seus primeiros tons de
gravidade em seguida a uma palavra incompreensível:
-
Então não sabíeis que eu devo ocupar-me primeiro das coisas de Meu Pai?... (Lc.
2,19). A Mãe obediente não compreendeu: não importa, o Menino é obediente.
Depois,
morto o pai nutrício, é o só a só íntimo entre Ela e Ele... Ele, o Menino já
feito moço. Ela acompanha com emoção todo o trabalho do pensamento divino
naquela fronte que se alarga e se ilumina. Antes, Ela dava carícias e beijos:
Ele era pequenino; agora, recebe luzes: aqueles olhos falam, aqueles lábios
falam, Ela escuta, tem a melhor parte. À noite, punha-Se aos pés do Filho, para
melhor Se fartar.
Em
torno dEla ignora-se o grande mistério... Que Lhe importa? Sabe-o Ela, e como o
goza! Durara essa dita inefável perto de trinta anos: - parecera curta – até
uma noite em que Jesus Lhe dissera, em meio às Suas lágrimas, que Eles iam
deixar-se. E a partida tivera lugar no dia seguinte; a Mãe contemplando o Filho
tão querido partir pelas grandes estradas da Galiléia, sozinho, sem discípulos
ainda, e Ela sem poder segui-lO: estava finda a Sua ventura.
Durante
os três anos de vida pública, raro o havia Ela visto só a só; a grande missão
absorvia o Messias: o rosto, crestado pela fadiga e pelo sol, tornara-se-lhe
mais grave, a Mãe via a sombra da Cruz ensombrar pouco a pouco e de antemão
aquela fronte que Ela beijara.
E,
hoje, também Ela estava à sombra daquela Cruz, nela se mantinha de pé.
E,
quando ao cabo desses quadros vivos e fugazes que se Lhe aceleravam nas reminiscências,
Ela via por que horrenda realidade terminava a Sua antiga ventura, uma angústia
indizível confrangia-A toda, Ela cambaleava quase, e, na escuridão do Calvário,
Suas mãos, que Lhe procuravam um apoio e se estendiam ainda para o Seu amor,
encontravam só e sempre a Cruz onde morria Jesus.
Consolar-se
da Cruz pela Cruz; arrimar-se nos desfalecimentos àquela Cruz que nos oprime;
deixar-se banhar pelo sangue de Jesus, ao qual misturamos o nosso; não ter
nenhum outro confidente e não ser o Deus que fere, e sob os Seus golpes
redobrados conservar-se ainda de pé como a Mãe das dores, stabat Mater: poucos cimos mais elevados na subida do Calvário.
Porém as almas que são chamadas nos sofrimentos do dileto têm de galgá-lo, nele
manter-se ainda, e, pelas suas chagas mais do que pelos seus lábios, cantar o
cântico do amor indefeso.
(A
Subida do Calvário, pelo Pe. Luís Perroy, S.J.; Editora Vozes, III Edição,
1957.)
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