TERCEIRA PARTE
O SEMBLANTE DO SENHOR
VIII – O GRANDE SILÊNCIO.
Esse silêncio devia durar mais de duas horas.
Durante esse lapso de tempo as trevas ir-se-ão cada vez mais adensando; tudo se
espavorirá em torno do augusto moribundo, e as palavras que Ele acaba de
pronunciar operarão lentamente, qual germe poderoso, nas almas.
O perdão, lançado indistintamente sobre todos os
algozes e sobre todos os soldados, já inclina o coração do centurião e o dos
seus homens... E dentro em pouco, prostrando-se, eles vão ser os primeiros a
exclamar: este era verdadeiramente o Filho de Deus!
A misericórdia divina concebida ao ladrão enche-o,
eleva-o, purifica-o, e aquele santo moribundo conserva a alma deliciosamente
ocupada com aquela soberana e divina compaixão.
Aquela dupla palavra: Mulher, eis aí Vosso filho!
João, eis aí vossa mãe!... oh! como opera a um tempo suave e dolorosamente no
coração de Maria e de Seu novo filho!
A princípio, ao primeiro enunciado dessa palavra,
João e Maria devem ter-se entreolhado... e, nesses recíprocos olhares, que
respeitosa veneração da parte do novo filho!... que ternura do lado da nova
Mãe!
Em seguida Maria compreendeu, com a reflexão e pela
operação divina que agia nEla, compreendeu todo o singular alcance dessa
doação. Indubitavelmente, e é o primeiro sentido verdadeiro falando daquele
modo Jesus não fazia mais do que cumprir os deveres de um bom Filho. Ele
partia, morria: Sua Mãe ali estava, ia ficar sozinha, e Ele não quer que Ela
fique assim sem arrimo e isolada. Queria dizer que Ele ainda se ocupava com
Ela, mesmo durante a Sua vida pública. Nem tudo está relatado nos evangelhos:
há um evangelho do coração que se não escreve, sente-se.
Jesus se vai, e quer que alguém O substitua: Seus
olhos procuram, há um apóstolo presente... Ah! se Pedro ali estivesse! Aquela
Mãe inconsolável tocava-lhe de direito, a ele, o chefe da Igreja, o vigário, o
representante de Cristo. Mas não estava. E então Jesus dá à felicidade de João
aquilo que houvera talvez dado ao primado de Pedro, se este tivesse sido fiel.
Há horas em que Deus procura: feliz de quem se acha
então sob os olhares do Senhor!
Portanto Maria se torna a Mãe de João, e João
deverá ter para com Ela toda a ternura de Jesus.
Porém a Virgem penetrou mais a fundo na palavra de
Seu Filho: dá-Lhe Ele coisa melhor e Lhe pede mais. Ela compreendeu-O.
É uma maternidade mais extensa; e, segundo a
tradição da piedade cristã, para corresponder a Seu Filho, que lhO pedia moribundo,
Ela devia amar no novo filho todos os homens presentes, todos os homens
futuros.
E é precisamente esta dolorosa maternidade que
executa a Sua obra durante aquelas duas horas de silêncio.
- Ah! meu Jesus, que é que Me pedis? Todos os
homens presentes?... E Maria olha à volta de Si. Há lá João, certamente o Seu
olhar se compraz nele, mas há também os algozes, os soldados, os motejadores,
os sacerdotes e os fariseus. Será mister ir até estes? – Ó Mãe dolorosa, é
mister. Que revolvimento nas Suas entranhas! Uma vez mais, é mister.
E os homens vindouros? Ai! Assim como Seu Filho, do
alto da Cruz, abraçava com Seu olhar divino todas as gerações, do pé da Cruz
Maria deve estender a amplitude da Sua maternidade a todos os homens futuros.
Não recueis ante esta tarefa, ó minha Mãe, vinde
até mim e estreitai-me nesse cruel amplexo!
Ela assim faz; porém, ao mesmo tempo em que se Lhe
operava nas entranhas essa nova e cruel parturição, o coração se Lhe rasgava
sob a ponta do gládio prometido por Simeão. Ela compreendeu então o alcance da
sinistra profecia; mas, como via Seu Filho oferecer as mãos e os pés aos
cravos, ofereceu Seu coração ao gládio, e foi desta ferida cruenta que nós
nascemos, naquela hora de silêncio e de trevas, ao pé da Cruz, a dois passos do
ladrão perdoado, ao lado de Madalena chorosa, e na aproximação simbólica e
divina de João e Maria.
E Jesus contemplava tudo do alto ao Seu trono
sangrento; e pôde dizer então, como após os dias da primeira criação, que tudo
tinha sido bem feito: et vidit Deus quod
esset bonum (Gên. 1,12).
Desde aquela hora do Calvário, desde aquele parto
laborioso e novo, Maria tem pelo mundo duas classes bem distintas de filhos.
Há a raça de João: as almas puras ou purificadas. A
estas, as carícias e as doçuras dos olhares de uma Mãe que ama neles a vida de
Seu Jesus, a graça. Quantas se encontram, ó Mãe, dessas almas seletas? Eu vejo
só um João no Calvário.
E há a raça dos algozes. Ai! Quem há que possa
lisonjear-se de lhe não pertencer ou de lhe não haver pertencido?
- Quem comete o pecado não crucifica de novo Jesus
Cristo? E ao lado dessa Cruz incessantemente erguida não deve haver uma Mãe
incessantemente de pé e dolorosa? Ela lá está, mas nós lá estamos com Ela, e
Ela nos ama.
E é este talvez um dos maiores milagres de Deus, o
haver sabido de tal sorte atrair a Si os pecadores, que deles tenha feito
filhos de Sua Mãe; porque aquela hora lúgubre Maria não somente Se digna de
recebê-los, como ainda os procura, vai atrás deles, retém-nos e lhes abre o Seu
coração como o melhor e o mais seguro dos refúgios.
Sancta
Maria, refugium paccatorum, ora pro nobis.
(A Subida do Calvário, pelo Pe. Luís Perroy, S.J.; Editora Vozes,
III Edição, 1957. Continua com o post: Quarta palavra: O desamparo.)
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