TERCEIRA PARTE
O SEMBLANTE DO SENHOR
III – MADALENA A PERDOADA
Esse cântico, repete-lhe Madalena as estrofes
dolorosas ao pé da Cruz.
A tradição unânime e constante coloca o penitente
nessa posição humilhada e amorosa. Parece que ela não se atreve a subir até o
semblante do Senhor; e, entretanto, do pé da Cruz ser-lhe-ia bastante levantar
a cabeça, e os seus olhos se encontrariam, através do seu véu de lágrimas, com
os olhos cheios de sangue que o haviam fitado e transmudado outrora.
Madalena volve incessantemente a este outrora das
suas recordações.
Onde e quando viu ela o Mestre pela primeira vez?
Com que curiosidade, a princípio, a mulher leviana procurara achar-se em face
do grande taumaturgo? Com que interesse depois? Com que temor secreto também,
pois pretendem que Ele sabe ler no fundo dos corações? Como foi que, por esse
misterioso encadeamento da graça, ela chegou a desejar rever aquele ente tão
meigo e tão poderoso que a atrai estranhamente?
Quando, de volta de uma daquelas entrevistas que
ela queria triviais e sem conseqüência, Madalena tornava a encontrar-se no
cenário íntimo onde tudo só lhe falava das suas vergonhas públicas e
secretas... de que desencantamento não devia ela sentir fulminarem-se uma a uma
todas as coisas que amara, desejara, sofregamente buscara?
Toda volta a Deus começo por essa desilusão. A
grande luz do alto põe a nu o vazio que está em baixo. Deus não violenta nada
em nós; e nós somos transformados. O fruto tão doce do prazer assume então um
travor singular: o lábio tende-lhe ainda, mas a mão logo o repele, e arranca-o
àquele lábio trêmulo e desiludido.
Inconsciente do movimento que nela se opera, a alma
se agita, vai de uma flor à outra: já não há mel.
Madalena recorda-se desse vago e antigo mal-estar
quando, no fundo do horizonte da sua vida, via elevar-se lentamente o sol
estranho do semblante humano e divino cujo esplendor a fascinava.
Um dia, ainda meio ataviada, mulher pecadora e
pública, ela se levanta, sai com um vaso de perfume nas mãos: tem o andar
ansiosa, precipitado... entra numa sala onde há
um festim, ao qual não foi porém convidada; são ricos que estão deitados
nos divãs ao redor da mesa. Ela insinua-se pelo meio dos criados; é bastante
conhecida para que lhe não embarguem o passo... e ei-la inopinadamente, ela, o
orgulho e a volúpia, ei-la que cai de joelhos aos pés da divina e radiante
pureza! Há virtudes que só se aprendem de joelhos: a pureza é dessas.
Entretanto um silêncio se fez subitamente na sala;
toda gente se admira, o dono da casa, os convivas, os criados: e Madalena rega
humildemente os pés de Jesus com as primeiras lágrimas de arrependimento.
Depois quebra a empola de perfume e derrama-lhe o líquido precioso nos pés
lavados pelo seu manto. Mas tarde ela ousará subir mais: irá até a derramar o
óleo odorífero nos cabelos e na cabeça; por hoje, cinge-se aos pés, no chão, no
seu lugar, no opróbrio e no pó. E tudo isso se faz com um rito augusto e
sagrado, - pois não é a consagração da alma contrita?... – e no meio de um
silêncio em que começam, entretanto, a ressumar alguns murmúrios de convidados
os risos discretos dos criados.
Madalena não atenta nisto. Com um derradeiro gesto,
como para completar a sua humilhante atitude, desnastra os seus longos e
sedosos cabelos: assim fazia o sumo sacerdote sobre os ombros da mulher
adúltera. Só por este gesto confessa ela, pois, toda a sua vida criminosa, e,
com a fronte ruborizada de pejo, inclina-se, a modo de uma escrava, para
enxugar com as suas tranças magníficas e onduladas os pés divinos que os seus
perfumes, as suas lágrimas e os seus beijos tão ardentemente banharam.
“A história,
diz Lacordaire, em parte alguma nos
mostra o arrependimento e o pecado a criarem juntos uma imagem tão tocante de
si próprios”. (Vida de Santa Maria Madalena, c. III.)
Foi nesse momento que, no coração do fariseu
orgulhoso da sua integridade, se elevou uma dúvida, uma irônica reflexão: “Se fosse um profeta, dizia ele de si
para si, ele saberia o que vale essa
mulher pública que o toca e o beija nos pés”. Madalena não ouviu este
pensamento, mas percebia os murmúrios e até o silêncio que enchia a sala. E eis
que, no meio dos murmúrios e do silêncio, ouve de repente uma voz que se eleva:
Jesus defende-a; faz mais, desculpa-a; faz melhor, louva-a; e, coroando tudo
com uma palavra, perdoa-lhe.
- “Vai,
filha, todos os teus pecados te são perdoados, estás ouvindo? Vai, a tua fé te
salvou, e fica em paz”.
Isto foi dito com tal tom, isto foi dito com tal
olhar, que, através das suas lágrimas e dos cabelos esparsos, Madalena, fitando
um momento aquele divino semblante, nesse mesmo instante foi ferida, abatida,
derribada, reerguida, e tão alto que, doravante reabilitada, luminosa e pura,
ela não mais deixará Jesus, segui-lO-á, apegar-se-Lhe-á, subirá com Ele a toda
parte.
- “Vede,
irmãos meus, o vôo dessa alma que o amor de Deus feriu”, exclama Bossuet
falando das virgens: pelo seu arrependimento, Madalena entrou na ascensão das
almas puras, e conclui hoje o seu vôo extático pela subida do Calvário. Ela lá
está em lugar de honra, ao lado da Rainha das Virgens e do apóstolo casto.
Ó pecadores, ó pecadoras, almas perdidas, carnes
desprezíveis e desprezadas, vinde e vede: no montão imenso dos vossos pecados,
achai-me um só de que a bondade de Deus não possa fazer um degrau para vos
elevar, se, iguais a Madalena, souberdes abaixar-vos, arrepender-vos e melhor
amar.
Madalena, que caíra tão raso por mal e em demasia
ter amado, só se alcandorou tanto por muito e bem ter sabido finalmente amar; e
hoje, nesta hora do Calvário, ela dá ao seu arrependimento o derradeiro lustre,
ao seu amor a suma intensidade.
Porquanto, se aquele grande silêncio, naquela
escuridão do Gólgota, ela ouve, principalmente, nas suas recordações comovidas
e perturbadas, naquela palavra que foi a alvorada da sua vida refeita: - “Tem confiança e vai em paz”... como,
erguendo os olhos, não devia ela compreender a que preço cruel e doloroso lhe
fora essa paz comprada! Era preciso nada menos do que aquela Cruz erguida, o
horror dos cravos enfiados na carne, e a morte que avançara e cuja sombra
pálida cobriu já aquela face adorável.
E Madalena olhava então como que furtivamente, de
baixo, onde se achava ainda aos pés de Jesus, Madalena olhava o semblante do
Senhor coberto de livor e de sangue, onde se escrevia impiedosamente a história
dos seus pecados, a história do seu perdão.
Que olhares!
Há um olhar das almas perdoadas, como há um olhar
das almas inocentes.
Em qual dos dois se aninha maior suavidade? Em qual
mais alegria e gratidão?
Isto é segredo de Deus, e também desses
privilegiados.
Afiguram-se-me, porém, ó meu Deus, que, nos olhos
da minha alma tantas vezes perdoada, luzirá mais amor, porque com os destroços
dos grilhões dos meus pecados, por Vós tantas vezes partidos, eu posso de ora
em diante formar um elo tão forte e tão doce, que nada será já capaz de separar
neste mundo da Vossa imensa caridade.
(A Subida do Calvário, pelo Pe.
Luís Perroy, S.J.; Editora Vozes, III Edição, 1957. Continua com o
post: As zombarias.)
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