domingo, 11 de agosto de 2013

Condenando-se



CONDENANDO-SE

Lisbeth vai te contar uma história terrível. "Foi uma noite, a mais terrível de minha vida, seguida de outras noites e dias tenebrosos. Eu quisera que estivessem aí presentes todos aque­les a quem o diabo sugere provocar um aborto. Uma parteira está habituada a muita coisa: aos gemidos e aos gritos, à angústia e ao sofrimento; ao sangue e ao terror. Lá onde outras mulheres, desde muito, já teriam desmaiado ou fugido, de­ve-se ficar firme e fazer o trabalho em silêncio, com dureza se for preciso,   como se não tivesse nas mãos um ente vivo, e no peito um coração que também palpita e sangra! Mas eu não quisera as­sistir outra vez a um fim semelhante ao que teve essa mulher jovem de trinta anos!

O relógio do campanário deu  as suas doze badaladas,  naquela  noite de  verão,  silenciosa  e quente. O dia tinha sido abafado; todas as jane­las estavam abertas para deixar entrar a frescura da noite. Os doentes, em geral, gostam de ouvir o bater das horas. Mas aí a mulher se levanta... olha para a porta com indizível terror... o olhar desvairado torna-se cada vez maior... os cabe­los se eriçam... de um arranco, tenta saltar da cama, do lado da janela aberta, para aí se ati­rar ... "Fugir... fugir"... balbuciam os lábios descorados...


Depois o terror vem vindo a pouco e pouco e ela começa a falar:
"Agora... agora voltam outra vez... um de­pois do outro. Um... dois... três... cinco... esse ficou pequenino... seis... sete... oito... àque­le cortou-se a cabeça que ele agora segura nas mãos... nove. .. dez... a esse cortaram as per­nas, mas está se mexendo... foi partido ao meio, todo ensanguentado... onze... doze... e agora só um braço e... só uma perna. Onde está a ca­beça? Onde estão os outros membros?... Por que é que vocês não têm olhos ?... onde estão os olhos?..." De repente, um movimento brusco, le­vanta a coberta e a comprime contra o rosto. "Vão-se embora vocês... vocês não têm o direito de viver..." e cai desfalecida.

Logo depois recomeça: "Estão ouvindo o que eles dizem? Escutem... "Não podemos ver a luz eterna... não podemos ver a luz eterna... dá-nos os teus olhos, mamãe! tiraste os nossos olhos, da­nos os teus, mamãe..." Não estão ouvindo?... aqui... acolá... um. .. dois... três..." e outra vez a terrível contagem até treze. Compreendo subitamente, e o coração pára de susto. Impossível! é delírio de febre, são alucinações! No entanto, essa ideia não me deixa mais. O final era exa­to: tinha saído até agora um braço, uma perna de criança, morta criminosamente no seio materno. Mas será a décima terceira?

"Que vêm vocês agora... fazer aqui?... estão mortos... nunca viram... eu não tenho filhos... quem os mandou aqui?... Olhem... olhem... todos eles voltaram... um... dois... três... Es­tão ouvindo como gritam? estão ouvindo?... "Não podemos ter o sossego eterno. . . tu nos expulsaste de teu seio...".

Lisbeth continua descrevendo a febre, a in­tervenção do médico para retirar os outros pedaços da criança. Fala dos gemidos de três dias e três noites, da terrível contagem que a doente fa­zia, de um até treze. Conta-nos que ao fim de 4 dias a doente voltou a si. Termina assim:
"Mandamos chamar, outra vez, o vigário e o marido. O vigário veio e às suas primeiras palavras a mulher interrompeu, dizendo: "São treze, sim. E' inútil fazer-me perguntas..." e quando ele quis lhe falar da misericórdia divina, ela retorquiu, num supremo esforço: "Deixem-me ir embora... quero ir para o inferno... quero que o canalha me pague na eternidade..."

E ainda uma última palavra ao marido, que vinha entrando:
"Canalha/"...   e   expirou..."

Leitora, estás regelada de susto, certamente. Por amor de Deus, não imites esta infeliz. Não cedas, portanto, a certas vontades do marido, a certos conselhos de pessoas sem escrúpulos, sem temor de Deus.

Que fúnebre desfecho para a vida de uma mãe!



(Livro As Três Chamas do Lar – Geraldo Pires de Sousa)

Nenhum comentário:

Postar um comentário