CONDENANDO-SE
Lisbeth
vai te contar uma história terrível. "Foi uma noite, a mais terrível de minha
vida, seguida de outras noites e dias tenebrosos. Eu quisera que estivessem aí
presentes todos aqueles a quem o diabo sugere provocar um aborto. Uma parteira
está habituada a muita coisa: aos gemidos e aos gritos, à angústia e ao
sofrimento; ao sangue e ao terror. Lá onde outras mulheres, desde muito, já
teriam desmaiado ou fugido, deve-se ficar firme e fazer o trabalho em
silêncio, com dureza se for preciso,
como se não tivesse nas mãos um ente vivo, e no peito um coração que também
palpita e sangra! Mas eu não quisera assistir outra vez a um fim semelhante ao
que teve essa mulher jovem de trinta anos!
O
relógio do campanário deu as suas doze badaladas, naquela
noite de verão, silenciosa
e quente. O dia tinha sido abafado; todas as janelas estavam abertas
para deixar entrar a frescura da noite. Os doentes, em geral, gostam de ouvir o
bater das horas. Mas aí a mulher se levanta... olha para a porta com indizível
terror... o olhar desvairado torna-se cada vez maior... os cabelos se
eriçam... de um arranco, tenta saltar da cama, do lado da janela aberta, para
aí se atirar ... "Fugir... fugir"... balbuciam os lábios
descorados...
Depois
o terror vem vindo a pouco e pouco e ela começa a falar:
"Agora...
agora voltam outra vez... um depois do outro. Um... dois... três... cinco...
esse ficou pequenino... seis... sete... oito... àquele cortou-se a cabeça que
ele agora segura nas mãos... nove. .. dez... a esse cortaram as pernas, mas
está se mexendo... foi partido ao meio, todo ensanguentado... onze... doze... e
agora só um braço e... só uma perna. Onde está a cabeça? Onde estão os outros
membros?... Por que é que vocês não têm olhos ?... onde estão os olhos?..."
De repente, um movimento brusco, levanta a coberta e a comprime contra o
rosto. "Vão-se embora vocês... vocês não têm o direito de viver..." e
cai desfalecida.
Logo
depois recomeça: "Estão ouvindo o que eles dizem? Escutem... "Não
podemos ver a luz eterna... não podemos ver a luz eterna... dá-nos os teus
olhos, mamãe! tiraste os nossos olhos, danos os teus, mamãe..." Não estão
ouvindo?... aqui... acolá... um. .. dois... três..." e outra vez a
terrível contagem até treze. Compreendo subitamente, e o coração pára de susto.
Impossível! é delírio de febre, são alucinações! No entanto, essa ideia não me
deixa mais. O final era exato: tinha saído até agora um braço, uma perna de criança,
morta criminosamente no seio materno. Mas será a décima terceira?
"Que
vêm vocês agora... fazer aqui?... estão mortos... nunca viram... eu não tenho
filhos... quem os mandou aqui?... Olhem... olhem... todos eles voltaram...
um... dois... três... Estão ouvindo como gritam? estão ouvindo?... "Não podemos
ter o sossego eterno. . . tu nos expulsaste de teu seio...".
Lisbeth
continua descrevendo a febre, a intervenção do médico para retirar os outros pedaços da criança. Fala dos gemidos de três dias e três noites, da terrível
contagem que a doente fazia, de um até treze. Conta-nos que ao fim de 4 dias a
doente voltou a si. Termina assim:
"Mandamos
chamar, outra vez, o vigário e o marido. O vigário veio e às suas primeiras palavras a mulher interrompeu, dizendo: "São treze, sim. E' inútil
fazer-me perguntas..." e quando ele quis lhe falar da misericórdia divina,
ela retorquiu, num supremo esforço: "Deixem-me ir embora... quero ir para
o inferno... quero que o canalha me pague na eternidade..."
E
ainda uma última palavra ao marido, que vinha entrando:
"Canalha/"... e
expirou..."
Leitora,
estás regelada de susto, certamente. Por amor de Deus, não imites esta infeliz.
Não cedas, portanto, a certas vontades do marido, a certos conselhos de pessoas
sem escrúpulos, sem temor de Deus.
Que
fúnebre desfecho para a vida de uma mãe!
(Livro
As Três Chamas do Lar – Geraldo Pires de Sousa)
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