TERCEIRA PARTE
O SEMBLANTE DO SENHOR
IV – AS ZOMBARIAS
Através das vozes silenciosas daquelas recordações
que subiam do coração de Maria, do de Madalena, até o coração de Jesus Cristo,
suprema consolação à Sua dor, ai! há outras vozes que também sobem, mas como a
acre e cáustica fumarada do ódio: importa ouvi-las.
A princípio tudo é barulhento no cimo do Calvário.
É a explosão do furor satisfeito e, como quer que esta última cena do drama
cruel se desenrola normalmente e Deus lá em cima fica silencioso, ninguém se
constrange. Povo, algozes, soldados, sacerdotes e fariseus falam, gritam, vão e
vêm agitados... e zombadores.
A zombaria, irrisão; parece que todo aquele ódio
acumulado deste tantos dias acaba de fundir-se enfim numa nota única, acerba e
mordaz: a zombaria.
Era fitando uma última vez que aquele semblante
cujos olhos os haviam dantes intimidado, e cuja boca os zurzia com verdades
violentas, que os escribas e os anciãos desembestavam numa suprema zombaria.
Sobem, pois, em lufadas de ódio aquelas palavras
escarninhas e cruéis, por sobre Madalena sempre abismada ao pé da Cruz, por
sobre Maria que Se conserva de pé, e, qual derradeira bofetada estrondosa e
vencedora, aplicam-se à face pálida do Cristo agonizante.
Na Paixão do Senhor, diz Bossuet, “faz-se um tão estranho ajuntamento de
irrisões e de crueldades, que quase não se sabe qual domina, e, todavia
predomina a risota”. (2º Sermão sobre a Paixão, 1º ponto.)
Qual a razão disto? Por que aquele cenário de
confusão, aquela atmosfera de zombarias?
Como explicar aqueles propósitos feitos de desonrar
a vítima? Muito mais: quando já não há suplícios a lhes infligir porque ela
está cravada imóvel e sangrenta, e, porque já os esgotaram todos, a zombaria
persiste em subir até ela. Por quê? Insisto.
Há como que um prazer malsão que lhe rememora até
as suas menores palavras, - bem gravadas haviam sido, pois, - para tirar delas
um suco amargo com que o abeberam.
- Vamos, tu
que te gabavas de destruir o Templo
de Deus para reconstruí-lo em três dias, experimenta agora descer da cruz!
E não se contentam com estas apóstrofes diretas:
pode o Cristo ouvir todos os diálogos que se trocam a Seu respeito.
Crudelíssima picada são do ódio os golpes indiretos: prefere a gente os que
ferem em pleno rosto.
- Vede,
dizem os sacerdotes ao povo, ele salvava
os outros, mas não pode salvar-se a si.
Era pôr-Lhe à mostra a impostura.
- Dizia-se o
Filho de Deus, fiava-se em Deus: acaso Deus se mexeu para vir livrá-lo?
E por sob aquela borrasca de ódio e de zombaria
todas as cabeças revoluteiam, e até naqueles que passam e se vão embora pode
Jesus perceber aqueles últimos meneios de cabeça que parecem dizer-Lhe
brutalmente: Ora bem, está tudo acabado e bem acabado, tudo está feito e bem
feito.
Esse contágio da zombaria dominante ganha mesmo até
os algozes e os soldados de serviço que guardam os três patíbulos.
Quem era, com efeito, que induzia aqueles soldados
sentados aos pés da vítima, depois de Lhe jogarem as vestes, a ainda Lhe
oferecem sarcasticamente de beber, como se ela pudesse abaixar-se para molhar
os lábios no vaso que Lhe apresentavam?
- Os soldados,
diz São Lucas, escarneciam por sua vez,
e, aproximando-se da cruz, ofereciam-lhe irrisoriamente um vinho grosseiro
(Lc. 22,36).
Enfim, nada há, nem mesmo o Seu último grito de
angústia, que não seja objeto de zombaria sinistra.
Quando o pobre condenado, esmagado, “derretido como cera ardente e que escorre” (Sl.
21,15), põe-se a gritar desesperadamente: “Eli,
Eli, lamma sabactani”: Meu Deus, meu
Deus, por que me abandonaste? – e um pouco depois: “Tenho sede!”, dizem os guardas:
- Agora está
ele a chamar por Elias.
E ao soldado que se levanta e corre a embeber uma
esponja em vinagre para Lhe umectar os lábios moribundos: - “Deixa, esperemos a ver se Elias vem
despendurá-lo da cruz!”
Era alguns instantes antes do último suspiro; e
havia ainda uma zombaria que se elevava até aos ouvidos daquele agonizante.
Certo, pode-se afirmá-lo agora, naquele lúgubre quadro é mesmo a risota que excele:
pergunto ainda, por quê?
Do lado dos homens que escarnecem cabeceando, a
razão é clara, cruelmente clara. A zombaria é o triunfo do orgulho ferido, mas
vencedor. Sob os ímpetos violentos desse orgulho, ela penetra, cinde, vai
buscar no fundo da vítima os últimos resíduos da honra, para melhor
estraçalhá-la e para, assim, matar mais definitivamente aquele homem aos olhos
de todos. A zombaria é, pois, uma arma letal, mas que atinge mais fundo do que
a morte.
Morrer achincalhado e escarnecido é morrer a toda
esperança de sobrevivência na memória pública: as ressurreições parecem
impossíveis para aqueles que a zombaria matou.
Compreende-se então por que os Judeus, sacerdotes e
fariseus, tenham querido perseguir até às últimas vascas da morte aquele homem
que tanto os humilhara e que, além disso, alardeara ressuscitar ao cabo de três
dias. Era preciso que não restasse nada: e a tanto se havia chegado. Tal era o
plano dos homens.
O plano de Deus é bem mais alto, conquanto o mesmo
no fundo. Efetivamente, se a zombaria assim aniquila a sua vítima, talvez o
Cristo tenha querido ser zombado, posto a ridículo, sinistramente troçado, para
ser mais bem aniquilado. Era também o seu programa dele. Exinanivit semetipsum (Filip 2,2). Exinanite usque ad fundamentum (Sl. 136,7).
Àquele Cordeiro que carregava os pecados do mundo
fazia-Se mister não somente o cutelo que abre as veias e esgaravata as
entranhas, mas ainda a frecha aguda. Envenenada, do riso e do sarcasmo que
investirá até contra a Sua doçura, contra o Seu sublime e divino silêncio.
Melhor não podia Ele aniquilar-Se nem suprimir-Se. Quando já não resta à vítima
moribunda a honra ou a piedade das recordações, haverá em verdade morte mais
completa e mais extensa? Como tal, o holocausto não podia ser mais perfeito.
Esta razão já basta para tudo explicar: outras há,
porém, mais tocantes para a nossa piedade.
Jesus, que via longe, sabia tudo o que teriam de
sofrer mais tarde os Seus eleitos dessa zombaria tenaz, - é a arma preferida do
mundo. Quis ser-lhes então um modelo consolador, que eles nunca poderiam
atingir, sem dúvida, mas a que ao menos poderiam visar.
É este, com efeito, um lado da Paixão que apenas
sobejas vezes temos de imitar.
Nem a todos é dado ter os cruéis estigmas dos
cravos ou as marcar dos espinhos e dos flagelos: os padecimentos do martírio
são o quinhão do pequeno número. A quem é, porém, que não é dado sofrer, um dia
ou outro, particularmente ou em público, aos olhos dos seus, aos olhos dos
estranhos, sofrer, digo, algumas humilhantes irrisões?
Deridetur
justi simplicitas (Job. 12,4).
A singela confiança do Justo é, muitas vezes,
objeto das zombarias; as menores são ser acoimado de exagero ou de pequice por
se querer amar a Deus contrariamente a qualquer usança do mundo.
Tais derrisões são tanto mais dolorosas quanto nos
virão, às vezes, daqueles que nos são próximos, e de quem esperávamos um
conforto.
Noti mei
quase alieni recesserunt a me, lamentava-se Job (19,15): e o profeta: factus sum opprobrium et vicinis meis valde,
et timor notis (Sl. 30,12).
É então o momento de levantarmos os olhos para o
semblante aniquilado do Salvador na Cruz e contemplarmos, por cima da coroa
sangrenta, essa outra, não menos dolorosa, que lhe formavam em torno da cabeça
inclinada todas as zombarias que ascendiam cínicas e odientas.
Por fim, e é esta uma razão mais alta ainda, se
Jesus assim quis morrer sob os golpes reiterados do escárnio público, é que
contava triunfar com isso abertamente do seu maior inimigo, “o do diabo”.
(Bossuet, 2º Sermão sobre a Paixão) – Tende confiança, diz-nos aquela boca que
procuram desonrar, e sobre a qual se escarram os últimos desprezos, tende
confiança, Eu venci o mundo.
- E onde, Senhor? – Na Cruz. – E como? – Pela Cruz.
Maneira divina que me confunde: sim, vence Ele esse
inimigo assumindo aquilo que ele mais teme: a humilhação. Ora, como Ele sabe,
por natureza, repelir o mal e escolher o bem, diz-nos assim bastante alto que a
ignomínia, quando não vem do pecado, não é um mal; que a irrisão nos não
rebaixa, e que o conjunto esplendoroso dos favores do mundo não passa de
miserável pobreza sendo a única riqueza o possuir Aquele que é a riqueza
eterna: Deus.
O mundo clama o contrário; Jesus desprezado
desmascara-o; um inimigo desmascarado é um inimigo meio vencido.
Jesus vai, porém, mais longe, e não se detém nesta
primeira vitória, persegue o inimigo, e do alto da Cruz mostra-nos a sua
fraqueza de fundo.
De feito, não podia Ele mostrar melhor a vaidade
das forças do mundo do que dignando-Se de consentir em ser aparentemente
derrubado por ele.
À feição de um gigante que se compraz às vezes em
se deixar pear um instante pelos débeis laços de uma criança, porque sabe que
romperá quando quiser a frágil rede daquelas teias de aranha, e que afinal de
contas os golpes de uma mão tão pequena e tão vã não passam de um brinquedo de
que ele zombará por seu turno, quando lhe aprouver.
Exsurgat
Dominus et dissipentur inimici ejus (Sl. 67,2).
Cuido ver o sobressalto do Mestre, abatido um
instante por aquela chusma de mundanos que acumularam sobre eles míseros
entraves: um rebate do Senhor, e eles desaparecem para todo o sempre.
Como são, pois, pouca coisa as forças soberbas do
mundo! A prova disso Pompéia no seio do Seu triunfo no Calvário mesmo.
Julga ele ter dado cabo de Jesus porque o pôs a
ridículo: aguarda-lhe o último suspiro. Ora, mal se exalou esse último suspiro,
através das últimas zombarias, só porque a terra se remexe um pouco e um
rochedo se fende, logo a multidão dos zombadores se escoa como água: os mais
ardorosos lá se vão batendo no peito, e o centurião, que também zombava talvez
como os demais, cai de joelhos dizendo: “Este
homem verdadeiramente era o Filho de Deus”.
Ó mundo, onde está então o teu poder? Em último
golpe ainda, e adeus de ti. Este último golpe dá-lho sempre Jesus na Cruz, Ele
não tem melhor campo de batalha. Acaba, assim, de triunfar do mundo servindo-se
contra ele da mesma arma de que o mundo se servira para O aniquilar: o
desprezo.
Não o leva em conta; aquele montão de opróbrios,
todas aquelas zombarias, aquelas irrisões, Ele não faz nenhum caso delas.
Sustinuit
crucem confusione contempta (Heb 12,2), diz-nos São Paulo: sofreu a Cruz
desprezando o pejo. Eis aqui a arma escolhida e última que vence finalmente o
mundo. Desprezamo-lo; os seus ataques, as suas blandícias, desprezemos tudo
nele, ele é de todo ponto desprezível, porque é fraco, porque é falso.
Fraco, porque é o primeiro a tremer ante os
desprezos, e porque abandona tudo para os não suportar.
Falso, porque não pode dar nem riqueza nem paz
duradoura: todas as suas promessas são mendazes.
“Olha e passa”, non
ragioniam di lor, ma guarda e passa
(Dante, O Inferno, canto III.), era a fórmula do desprezo antigo. Vamos até aí;
passemos altaneiros por diante dele: a altanaria cristã é o desprezo do mundo.
Quem quer que penetrou neste mistério terá
compreendido aquilo a que São Paulo chama “o tesouro superior das ignomínias de
Cristo” (Heb. 11,26); é aí, ó minha alma, que cumpre as tuas esperanças e as
tuas miras.
Bem elevado cimo é este das culminâncias de Cristo
desprezador e desprezado. Quando um homem há tomado pé sobre si mesmo, pode
atingir essas culminâncias, mas lhe é forçoso palmilhar ruínas bem caras para
ter esse arrojo.
(A Subida do Calvário, pelo Pe. Luís Perroy, S.J.; Editora Vozes, III Edição, 1957. Continua com o post: Os últimos traços do semblante: Pai, perdoai-lhes)
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