terça-feira, 20 de agosto de 2013

As vantagens das tentações.




CAPITULO X

AS VANTAGENS DAS TENTAÇÕES

Não encaramos as tentações sob o seu verdadeiro ponto de vista: dai vem o entristecermo-nos tanto com elas. Só prestamos atenção ao perigo a que elas nos expõem, ao mal a que nos levam; mas não pensamos nas vantagens que delas podemos tirar, nos bens espirituais que elas podem proporcionar-nos. Esta ignorância, ou esta falta de reflexão, é a causa do pouco proveito que nelas achamos. As reflexões seguintes servirão para no-las fazer suportar mais pacientemente, e dar-nos-ão mais facilidade para vencê-las.

As tentações podem empenhar um coração cristão na prática das virtudes mais sólidas, e fazer-lhe adquirir grandes merecimentos para o Céu. Bem grande consolação é poderdes tirar, dos próprios inimigos que vos atacam vantagens eternas, e poderdes fazê-los servir à vossa felicidade. A vista de tamanho bem não pode deixar de animar uma alma no combate. É um motivo que nos propõe o Apóstolo S. Tiago: Considerai um motivo de alegria quando fordes atacados de diferentes tentações; quando fordes postos em diversas provações (c. I); sabendo que essas provações em que vossa fé é posta produzem a paciência e que a paciência dá a perfeição às obras.


O homem reflete pouco sobre si mesmo: conhece-se pouco; evita examinar-se a fundo, com medo de achar em si defeitos de que o amor-próprio teria de corar. Toda a sua atenção dedica-se, pois, naturalmente a paliar, aos seus próprios olhos; os seus vícios, a salientar as suas boas qualidades. Desta conduta tão pouco sábia é que vem esse amor-próprio tão delicado, tão sensível, tão susceptível, essa vã estima que ele tem de si mesmo, essa presunção que o expõe a tantos perigos; essa vaidade, essa preferência que ele se dá sobre os outros. O orgulho, fonte de todos os males, cega-o sobre a sua miséria, sobre os seus defeitos, sobre as suas quedas, sobre as suas fraquezas. As próprias pessoas que se afeiçoam à piedade nem sempre estão isentas dessa vã complacência, tão natural, de, uma alma que se nutre das suas virtudes, e que procura a distinção e a estima. É um princípio de orgulho e de vaidade que as eleva aos seus próprios olhos, que as enche de si mesmas, que as faz contar com as suas próprias forças, e que as mantém numa segurança temerária e perigosa: veneno sutil que, muitas vezes infecta as ações mais santas em aparência.

As tentações são um remédio soberano para esse mal tão perigoso, e para as suas consequências funestas. Elas desvendam ao homem todo o seu coração fazem-lho conhecer tal qual é quando está entregue a si mesmo, sem que ele possa ocultá-lo ou disfarçá-lo a si mesmo. Ao clarão desse triste facho, ele vê todas as misérias desse coração, todas as fraquezas, toda a corrupção. Atacado alternativamente por diferentes paixões de inveja, de ciúme, de ódio, de vingança, e por outras ainda mais baixas e mais vergonhosas, ele vê no seu coração o germe de todas aquelas que arrastam os homens às maiores desordens, e facilmente se persuade de que naturalmente nada tem acima deles.

O primeiro efeito que essa visão produz numa alma cristã é inspirar-lhe uma humildade proporcionada à miséria em que ela se acha: ela só vê em si motivos de humilhação e de desprezo. A estima que poderia conceder a si por algumas boas qualidades que vislumbra no seu coração, logo é abatida por essa chusma de más inclinações contra as quais é obrigada a lutar incessantemente. Ela é aos seus próprios olhos o que seria aos olhos dos homens se o seu coração, com todas as suas paixões, lhes fosse desvendado. Já não tem por si mesma senão os sentimentos de um desprezo cristão, que a humilham diante de Deus, e que fazem cessar de sua parte toda pretensão diante dos homens.

Que vantagens uma alma não tiraria desse conhecimento, sustentado pelo espírito de religião? É ela afligida? Sofre? Submissa à Providência, pensa em que mesmo assim, Deus ainda a poupa e não a trata segundo a corrupção do seu coração. É consolada? Recebe benefícios? Então adora a bondade do seu Deus, que se digna de tratá-la tão favoravelmente. O contraste entre a sua indignidade e a bondade divina excita-lhe no coração a mais viva gratidão, faz nascer nele os sentimentos do amor mais perfeito. Na convicção em que está de ser indigna dos bens que recebe, de só os dever a uma misericórdia infinita, ela aperfeiçoa a sua humildade, essa virtude tão necessária e o recurso de tantas virtudes.

Uma alma a quem as tentações fazem conhecer toda a baixeza do seu coração, sente diante de Deus a mesma confusão que sentiria diante dos homens, se fosse por eles conhecida. Confusão salutar, que a esperança sustenta. Assim sendo, guiada pelo espirito de religião, ela já não se irrita: contra o proceder das criaturas a seu respeito, por mais duro, por mais desagradável que ele possa ser. A luz da fé' faz-lhe ver que ela merece ainda mais desprezo do que lhe é testemunhado; e que, se as pessoas não levam ainda mais longe esse desprezo, é que não a conhecem tal como ela é no fundo, é que a caridade lhes oculta mesmo uma parte daquilo que aparece exteriormente. Será preciso mais para lhe fazer perder para sempre toda vã estima de si mesma?



(Tratado das Tentações – PADRE MICHEL da Companhia de Jesus)

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