CAPITULO
X
AS
VANTAGENS DAS TENTAÇÕES
Não
encaramos as tentações sob o seu verdadeiro ponto de vista: dai vem o entristecermo-nos
tanto com elas. Só prestamos atenção ao perigo a que elas nos expõem, ao mal a
que nos levam; mas não pensamos nas vantagens que delas podemos tirar, nos bens
espirituais que elas podem proporcionar-nos. Esta ignorância, ou esta falta de
reflexão, é a causa do pouco proveito que nelas achamos. As reflexões seguintes
servirão para no-las fazer suportar mais pacientemente, e dar-nos-ão mais facilidade
para vencê-las.
As
tentações podem empenhar um coração cristão na prática das virtudes mais sólidas,
e fazer-lhe adquirir grandes merecimentos para o Céu. Bem grande consolação é
poderdes tirar, dos próprios inimigos que vos atacam vantagens eternas, e
poderdes fazê-los servir à vossa felicidade. A vista de tamanho bem não pode deixar
de animar uma alma no combate. É um motivo que nos propõe o Apóstolo S. Tiago: Considerai um motivo de alegria quando fordes
atacados de diferentes tentações; quando
fordes postos em diversas provações (c. I); sabendo que essas provações em
que vossa fé é posta produzem a paciência e que a paciência dá a perfeição às
obras.
O
homem reflete pouco sobre si mesmo: conhece-se pouco; evita examinar-se a fundo,
com medo de achar em si defeitos de que o amor-próprio teria de corar. Toda a sua
atenção dedica-se, pois, naturalmente a paliar, aos seus próprios olhos; os seus
vícios, a salientar as suas boas qualidades. Desta conduta tão pouco sábia é que
vem esse amor-próprio tão delicado, tão sensível, tão susceptível, essa vã estima
que ele tem de si mesmo, essa presunção que o expõe a tantos perigos; essa vaidade,
essa preferência que ele se dá sobre os outros. O orgulho, fonte de todos os
males, cega-o sobre a sua miséria, sobre os seus defeitos, sobre as suas quedas,
sobre as suas fraquezas. As próprias pessoas que se afeiçoam à piedade nem sempre
estão isentas dessa vã complacência, tão natural, de, uma alma que se nutre das
suas virtudes, e que procura a distinção e a estima. É um princípio de orgulho e
de vaidade que as eleva aos seus próprios olhos, que as enche de si mesmas, que
as faz contar com as suas próprias forças, e que as mantém numa segurança temerária
e perigosa: veneno sutil que, muitas vezes infecta as ações mais santas em aparência.
As
tentações são um remédio soberano para esse mal tão perigoso, e para as suas consequências
funestas. Elas desvendam ao homem todo o seu coração fazem-lho conhecer tal
qual é quando está entregue a si mesmo, sem que ele possa ocultá-lo ou disfarçá-lo
a si mesmo. Ao clarão desse triste facho, ele vê todas as misérias desse coração,
todas as fraquezas, toda a corrupção. Atacado alternativamente por diferentes paixões
de inveja, de ciúme, de ódio, de vingança, e por outras ainda mais baixas e mais
vergonhosas, ele vê no seu coração o germe de todas aquelas que arrastam os homens
às maiores desordens, e facilmente se persuade de que naturalmente nada tem
acima deles.
O
primeiro efeito que essa visão produz numa alma cristã é inspirar-lhe uma
humildade proporcionada à miséria em que ela se acha: ela só vê em si motivos de
humilhação e de desprezo. A estima que poderia conceder a si por algumas boas qualidades
que vislumbra no seu coração, logo é abatida por essa chusma de más inclinações
contra as quais é obrigada a lutar incessantemente. Ela é aos seus próprios olhos
o que seria aos olhos dos homens se o seu coração, com todas as suas paixões, lhes
fosse desvendado. Já não tem por si mesma senão os sentimentos de um desprezo cristão,
que a humilham diante de Deus, e que fazem cessar de sua parte toda pretensão
diante dos homens.
Que
vantagens uma alma não tiraria desse conhecimento, sustentado pelo espírito de
religião? É ela afligida? Sofre? Submissa à Providência, pensa em que mesmo assim,
Deus ainda a poupa e não a trata segundo a corrupção do seu coração. É consolada?
Recebe benefícios? Então adora a bondade do seu Deus, que se digna de tratá-la
tão favoravelmente. O contraste entre a sua indignidade e a bondade divina excita-lhe
no coração a mais viva gratidão, faz nascer nele os sentimentos do amor mais
perfeito. Na convicção em que está de ser indigna dos bens que recebe, de só os
dever a uma misericórdia infinita, ela aperfeiçoa a sua humildade, essa virtude
tão necessária e o recurso de tantas virtudes.
Uma
alma a quem as tentações fazem conhecer toda a baixeza do seu coração, sente diante
de Deus a mesma confusão que sentiria diante dos homens, se fosse por eles conhecida.
Confusão salutar, que a esperança sustenta. Assim sendo, guiada pelo espirito de
religião, ela já não se irrita: contra o proceder das criaturas a seu respeito,
por mais duro, por mais desagradável que ele possa ser. A luz da fé' faz-lhe
ver que ela merece ainda mais desprezo do que lhe é testemunhado; e que, se as pessoas
não levam ainda mais longe esse desprezo, é que não a conhecem tal como ela é no
fundo, é que a caridade lhes oculta mesmo uma parte daquilo que aparece exteriormente.
Será preciso mais para lhe fazer perder para sempre toda vã estima de si mesma?
(Tratado
das Tentações – PADRE MICHEL da Companhia de Jesus)
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