Capítulo
VIII
NÃO
SE DEVE DISCUTIR COM A TENTAÇÃO.
MEIOS DE SE DESVIAR DELA.
Há
potências que não poderemos vencer se não as atacarmos diretamente, seguindo uma
conduta oposta à que elas sugerem. São desse número as que vêm do fundo da
índole que se não domou. Se uma pessoa é sujeita à vaidade, à cólera, à
sensibilidade, a essa mania a que se chama antipatia, não superará essas
paixões senão praticando nas ocasiões as virtudes que lhes são diretamente
opostas. Não somente deve renunciar aos sentimentos que essas paixões lhe
inspiram, mas deve também agir para mortificá-las. Se se contentar com evitar
certas ocasiões, não destruirá esses sentimentos desregrados; e, nas ocasiões
em que não as puder evitar, sucumbirá quase sempre. É praticando a humildade, a
doçura, é renunciando-se a si mesmo, é indo ao encontro das pessoas contra quem
se têm prevenções, é deste modo que se vibram nessas paixões golpes eficazes e
poderosos que asseguram a derrota delas, e que dão uma vitória completa àquele
que combate fielmente em todos os ataques.
Mas,
também, não há nada mais prejudicial do que o procedimento de certas almas nas
tentações. Elas acreditariam ter algo a se exprobrar se não se exaurissem em
argumentações para destruir aquilo que a tentação lhes inspira. Entram, pois, em
esclarecimento com a paixão que as ataca, e à qual não faltam pretextos para se
justificar. Assim, aturam um combate longo e perigoso, combate que muitas vezes
poderia ter sido terminado num momento se elas não houvessem entrado em disputa
com um inimigo artificioso, ou que pelo menos lhes teria dado muito menos pena
a suportar. Isso lhes sucede sobretudo quando elas têm ideias contra a Fé,
contra a Esperança, sentimentos contra a Caridade. Elas querem assegurar-se das
suas disposições interiores, combatendo diretamente a tentação. Essa maneira de
proceder é uma fonte de penas, de perplexidades: é perigosíssima.
Desde
que se discute com a tentação, ou sobre matérias difíceis nas quais as
dificuldades se fazem sentir sem custo e as respostas são difíceis de
compreender por aqueles que carecem de luzes e de princípios nesse gênero; ou
sobre coisas que lisonjeiam o amor-próprio e que a malignidade natural aplaude,
estamos no maior perigo de sucumbir. Assim, se perdeu Eva.
A
tentação que entra na alma pelos sentidos, e que lhe apresenta uma satisfação conforme
à natureza, causa uma forte impressão. Não sendo sensível e não constrangendo a
natureza aquilo que se lhe tem a opor, não causa, quase certo, nesta, uma
impressão semelhante, a menos que uma fé viva lhe dê força. Na perturbação em
que nos achamos, às vezes essa fé tem dificuldades em se fazer sentir; e então já
não opomos à paixão senão uma fraca resistência. Aliás, em combatendo desse modo
a paixão, damos-lhe uma atenção que a alimenta e que a torna mais sensível, de
maneira que a todo instante parece que consentimos nela; o que lança a alma
numa perturbação e num embaraço do qual ela custa a sair quando quer dar-se conta
do seu procedimento.
Em
todas essas tentações, não há meio mais seguro para se colocar fora de alcance do
que desviar sem demora a mente dessas ideias, ligando o coração a sentimentos de
piedade. Se há na mente pensamentos que não dependem da vontade, a vontade
também pode obrigar a mente a ocupar-se de certos objetos que a desviem daqueles
que a tentação lhe apresenta. Aliás, nem sempre é necessário preferir aqueles
que são diretamente opostos à tentação. Desaprovamo-la suficientemente desde
que nos volvamos para Deus por qualquer pensamento e por qualquer ato de
virtude que seja. Cada um deve apegar-se àquilo que ordinariamente mais o sensibiliza
ou impressiona.
Uns,
sensíveis aos sofrimentos de um Deus feito homem para salvar os homens, colocam-se
ao pé da Cruz de Jesus Cristo" ocupados desse Deus Salvador, que, pelo sacrifício
da sua vida infinitamente preciosa, expiou os pecados deles; eles concebem um
vivo pesar das suas faltas, das suas infidelidades, e um grande horror a tudo o
que possa de novo crucificar no seu coração o seu bom Mestre. Outros, retirando-se,
pelo pensamento, no Sagrado Coração de Jesus, cujo socorro e misericórdia imploram,
penetram-se dos sentimentos de bondade e de compaixão que esse divino Salvador
por eles teve, para se excitarem à gratidão e à confiança que asseguram a sua
fidelidade. Uns, mais sensibilizados pelo milagre do amor de Jesus Cristo, que
quis dar-se a eles de maneira tão admirável na divina Eucaristia, servem-se dos
sentimentos que esta misericórdia infinita lhes inspira, para desviarem o seu
coração de tudo o que possa ofender um Deus tão bom. Outros, colocando-se em
espirito no momento em que irão dar contas a Deus de todo o curso da sua vida,
representam-se situados entre o Céu e o Inferno. Dizem a si incessantemente: Se,
depois deste combate, eu devesse comparecer no Tribunal de Jesus Cristo, como
quereria ter sustentado este combate? Ocupam-se vivamente desses objetos, tão
interessantes para o homem, para o cristão, e tão capazes de os afastar de todo
mal. Compenetrado dessas verdades tão tocantes, tão impressionantes, o seu
coração torna-se insensível ao objeto da tentação, a sua mente não se ocupa mais
deles.
Poucas
tentações há que resistam muito tempo numa alma que, sem escutar as razões da
imaginação escaldada pela paixão, e sem se divertir em lhe responder, animada de
uma viva confiança volve-se para Deus por sentimentos de amor, e lhe implora o
socorro sob a proteção da SS. Virgem. Este exercício do amor de Deus, enquanto
durar o ataque, é a defesa mais segura do coração. Este nunca será forçado enquanto
se mantiver apegado a Deus por esse sentimento. Para tornar esse sentimento
mais forte e mais duradouro, apliquemos a mente à consideração dos motivos que
devem alimentá-lo e aumentá-lo: logo o inimigo, confuso, abandonará o seu
ataque. Se ele recomeçar o combate, pô-lo-emos em fuga pela mesma manobra.
Finalmente,
trata-se, com a graça de Deus, de afastar da mente ou do coração as ideias
e os sentimentos que põem em perigo. Mais fácil e mais seguramente conseguimos isso
dando-lhes outro curso, outra ocupação. Há mesmo circunstâncias, quando as
tentações são fortes e obstinadas, em que é oportuno, para se distrair delas,
ocupar-se de alguma obra de espirito ou de corpo, cuidar de empregos ou de
afazeres. Estas ocupações afastam da alma os objetos que as obsidiam, e
proporcionam-lhe a tranquilidade. Quando a calma volta, a mente e o coração
elevam-se a Deus com mais liberdade, prendem-se a Ele com muito mais força.
Nesses
combates, ponto essencial é não se
perturbar, é não deixar enfraquecer a sua
confiança em Deus, sobretudo resistir aos primeiros ataques. Se a mente e o coração
são perturbados pelo temor, não sabem a que se apegar para se sustentarem: a
perturbação escurece as verdadeiras luzes. Neste estado, já não se pensa em
procurar socorro. O coração não sabe a que se resolver, porque a mente não lhe
apresenta nada que seja capaz de animá-lo. É diária a experiência disto, e
estende se às coisas temporais como às coisas espirituais. Vede esse homem que se
acha num perigo, num ataque imprevisto: fornecem-lhe meios de safar-se dele, mas
ele não os vê; tem as suas armas junto de si, mas procura-as sem as achar.
Recebei
o inimigo com mais segurança, e tornareis mais medidas para lhe aparar os
golpes , vereis melhor os meios de vencê-lo, empregareis esses meios com mais liberdade,
empregá-los-eis com mais vantagem: Afinal de contas, por que vos perturbardes? O
demônio pode, na verdade, sugerir-vos tudo o que ele tem de mais perverso,
porém não pode obrigar-vos a consentir nisso. O consentimento não depende dele;
só depende de vós. Por que, pois, vos assustardes, como fazeis, numa coisa em
que sois absolutamente senhor, em que, com o socorro da graça, podeis sempre
recusar o consentimento? Resisti, e nada tendes a temer de um inimigo que só pode vencer-vos quando bem o quiserdes.
Esta
segurança, dar-vo-la-á a confiança em Deus, se não a deixardes enfraquecer-se. Uma
alma desanimada na tentação é uma alma meio vencida. Ela não faz mais senão
fracos esforços, porque já não é sustentada por essas graças particulares que
Deus só concede à confiança. Como haveria ela de tê-las, essas graças
preciosas? Nesse estado, ela nem sequer pensa em pedi-las. Parece que Deus não
é mais para ela o Deus forte, o Deus bom, que pode, que quer sustentá-la.
Entretanto, ela experimentaria essa bondade e esse poder, se os invocasse com
fé. Deus prometeu-o: sua palavra é infalível (SI 17, 4; 137, 7).
Não
digais: Tenho experimentado tantas vezes a minha fraqueza nessa tentação! Se
a experimentastes, foi por haverdes sempre faltado à confiança. Não falteis
mais, e não mais sucumbireis. Pedro, andando sobre as águas por ordem de Jesus
Cristo, começou a afundar assim que faltou à fé e à confiança (Mt 14, 31): e
só foi salvo pela volta desse sentimento, que lhe atraiu a proteção do seu
divino Mestre.
Nas
tentações, mormente nas que geralmente são violentas, atenta aos primeiros botes
da paixão, aplicai-vos a lhe sustar os primeiros movimentos. Se deixardes à imaginação
tempo para se esquentar, ao coração tempo para se prender ao objeto, e isto por
uma defesa fraca de vossa parte, esta infidelidade enfraquecer-vos-á ainda
mais. A paixão tratada com considerações grimpa logo. Era apenas uma faísca,
que teria sido fácil apagar: mas, por essa negligência, toma-se um abrasamento
que ganha todas as potências da alma. Ainda mais necessário é este conselho nas
tentações cuja força redobra pelas impressões que elas produzem nos sentidos.
Então fazem-se mister rasgos de uma misericórdia particular para se conservar
no meio das chamas sem ser por elas danificado. A diligência em prevenir esse
perigo, ou vos teria preservado da tentação, ou vos teria assegurado a proteção
de Deus para sairdes dela sem receber ferimento.
Quando
não se tem experiência, devem-se revelar ao seu confessor as tentações assim que
começam. Assim aprende-se a maneira de combatê-las; e assim nos desfazemos
delas mais facilmente. Esse ato de humildade e de simplicidade cristã atrai
graças particulares do Céu. Uma alma que, segundo a ordem estabelecida pela Providência,
quer conduzir-se pela trilha da obediência, merece que o Senhor se interesse
especialmente por ela nas suas penas. Por isto, com frequência sucede já não
causarem essas tentações perturbação, mal as revelamos ao ministro do Senhor.
Se as calamos, na esperança de que elas passarão, ordinariamente damos-lhes
tempo para se fortificarem, e elas se tornam mais difíceis de vencer.
(Tratado
das Tentações – PADRE MICHEL da Companhia de Jesus)
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