A
partir daqui começa a publicação da terceira parte do livro ‘ A Subida do
Calvário’ do padre Luís Perroy. De uma reflexão profunda sobre os pormenores da
paixão de Jesus Cristo. A Primeira e a Segunda parte deste mesmo livro já foi publicada neste blog.
TERCEIRA PARTE
O SEMBLANTE DO SENHOR
I – O ANTIGO SEMBLANTE
É
nesse momento que os nossos olhos devem elevar-se até aquele vértice sangrento
da Cruz, para aí contemplarem, num misto de pasmo, de assombro e de amor, o
Semblante do Senhor.
“Vimo-lO,
exclama dolorosa e antecipadamente o profeta Isaías. Non erat aspectus, não era
de ver-se, pois era só horror, e pensávamos com aflição e com saudade no que
fora outrora aquele Semblante... Et desideravimus eum (Is. 53).”
É
coisa natural, quando se está em presença de um semblante amado, mas
desfigurado, coberto da vergonha dos escarros, sulcado de sangue, é coisa
natural pensar em como o vira a gente outrora.
Quantum
mutatus ab illo (Eneida, Virgílio, I. II, v. 274.): não é este o grito que
escapa então de todos os lábios? Como está mudado!... Faz-se então uma
comparação entre aquilo que se vê e aquilo que se tinha visto. Reflexão
dolorosa, mesclada de admiração, de tristeza profunda; e, através dos palores
da morte, e em meio aos apagamentos e aos tons lívidos que aquela morte produz,
remontamos – bem longe talvez – até à beleza antiga, até ao encanto penetrante
dos olhos e do sorriso. Quantum mutatus ab illo: ó Deus, como está mudado! non
est species ei negue decor. Hoje, nem encanto, nem beleza, nem esplendor: porém
a palidez, o sangue e a morte.
Esta
reconstituição do ente caro amesquinhado e desprezado é o amargo consolo
daqueles que amaram.
Estavam
lá, ao pé da Cruz, em grupo cerrado e lúgubre, os fiéis amigos, os que amam até
ao desfalecimento, ao desprezo e à desonra aparente dAquele que conheceram: e
todos, naquele grande silêncio, falavam, no fundo da alma, com as recordações
comovidas daquele belo Semblante.
Maria,
Sua Mãe, Madalena, a perdoada, João, o amigo do coração, Maria Cléofas e
algumas outras, os fiéis até o fim. Durante aquelas três longas horas, em que
fez quase noite, mal podem eles enxergar naquela escuridão o semblante lívido
do Mestre. A cabeça está às vezes horrivelmente pendida para frente, esmagada
pela odiosa coroa; os cabelos, empastados de sangue e suor, caem pesadamente
sobre o peito; longas estrias vermelhas correm pelas faces cavadas, a boca
entreaberta aparta os lábios adelgaçados, roxos, já ressecados; os olhos estão
cheios de lágrimas, langrerunt oculi prae inopia (Sl. 87,12), e também cheios
de sangue; sempre este sangue, há-o por toda parte, de toda parte escorre, em
tanta cópia era preciso pelos nossos pecados.
Non
erat aspectus. Não, não é mais uma face humana, e cada um dos espectadores
pensa então em segredo no antigo e belo Semblante.
(A
Subida do Calvário, pelo Pe. Luís Perroy, S.J.; Editora Vozes, III Edição,
1957. Continua com o post: Maria.)
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