quarta-feira, 16 de maio de 2012

Ateímo Militante - Parte 2

 
O Ateísmo Militante
Expressão nova a designar uma realidade também nova. 
 
 
(Continuação)
Nele, se reúnem, hipostasiados, todos os predicados essenciais da espécie, todos os valores que lhe parecem úteis e que o simples indivíduo não consegue realizar plenamente na precariedade de sua vida. Deus é assim uma projeção mítica, uma apoteose inconsciente da natureza humana.
 
Mas este transfert para um sujeito pessoal dos predicados impessoais da espécie não constitui só uma mistificação enganosa senão ainda funesta. Criamos a Deus, como uma ficção, mas criamo-lo alienando de nós o que em nós há-de-melhor. Despoja-se assim o homem da sua própria natureza, desvaloriza-se. Em vez de conservar e pôr a serviço de si e da sociedade a sua inteligência e vontade, orienta-as para um além quimérico onde a sua imaginação mítica projetou uma ficção. A religião é, portanto, a grande inimiga do homem. Por ela explica-se esta alienação, pela qual a humanidade se torna como que estranha (= alheia) a si mesma, desumanizada, incapaz de realizar a plenitude do “ser para si”. Combater a religião é reintegrar o homem em si mesmo. Uma preocupação humanitária sobredoira assim a hostilidade anti-religiosa.
 
Em resumo. Um materialismo radical, inimigo de toda metafísica, que desconhece os valores do espírito e não vê na realidade humana senão matéria; um ateísmo intolerante, para o qual Deus é um mito malfazejo, e a religião, uma ilusão fatal à humanidade e responsável pela alienação que lhe frusta a atuação de suas melhores virtualidades; um humanismo estreito, sem Deus e sem alma, em que a humanidade, fechada num terrenismo absoluto, plenamente bastante a si mesma, é a norma última de todos os valores e o fim soberano de todas as atividades.
 
Aí estão os outros tantos motivos que serão assimilados por Marx e se encontrarão com variações múltiplas na orquestração definitiva da sua ideologia.
 
A obra de Feuerbach foi saudada com entusiasmo pelos jovens hegelianos. É bem conhecida a célebre página de Engels que nos descreve a “ação libertadora”, produzida pelo novo livro. Marx que asfixiava na atmosfera sutil e rarefeita do idealismo hegeliano, deixou-se empolgar pelo “verdadeiro vencedor da filosofia antiga”. “Feuerbach, escreve ele na Sagrada Família, foi o primeiro a completar e criticar Hegel de maneira hegeliana, reduzindo o absoluto do Espírito metafísico à realidade do homem enraizado na natureza”3. Com um trocadilho intraduzível, atira ele aos teólogos e filósofos esta advertência: “Para vós só existe um caminho que conduz à verdade e à liberdade: atravessar o Feuer-Bach. O Feuerbach é o purgatório do nosso tempo4
 
Tal o ambiente intelectual que respirou o jovem Marx na fase de assimilação de idéias que precedeu a elaboração de seu sistema definitivo. Hegel e Feuerbach vincaram profundamente o seu espírito. Sem os repetir com servilismo, não conseguiu nunca desvencilhar-se de suas influências orientadoras. A crítica, por vezes desapiedada, feita aos dois mestres, é, não raro, uma confirmação de quanto lhes deve o futuro autor do Capital, que, antes de iniciar as suas análises econômicas, já estava enfeudado a uma sistematização filosófica.
 
Com efeito, Marx não se satisfaz inteiramente com Feuerbach como não se contentara com Hegel. O seu materialismo não lhe pareceu bastante radical e coerente. Reflete ainda os preconceitos de uma “metafísica burguesa”. Reagindo contra Hegel, Feuerbach não faz mais que substituir uma noção abstrata por outra: lá a Idéia, aqui a Humanidade. O Espírito hegeliano era uma pura abstração lógica, mas a Espécie feuerbachiana não era menos outra abstração hipostasiada. Num como noutro sistema, esquecia-se a única realidade concreta, o homem que vive em sociedade, a braços com as dificuldades econômicas, criando a história e sendo por ela recriado. Feuerbach esquece esta atividade humana concreta, viva, que se desenrola no tempo e constitui essencialmente o próprio homem. A sua filosofia é ainda puramente “contemplativa”.
 
O dinamismo de uma entidade irreal, - eis o que nos propõe Hegel; uma realidade sem dinamismo, eis o que lhe substitui Feuerbach. Ambas estas visões das coisas, parciais e incompletas. Urge integrá-las, eliminando o materialismo passivo pelo materialismo dialético.
 
À “contemplação” do homem e da natureza, em atitude estática, alheia a toda evolução histórica, suceda uma visão do mundo essencialmente dialética, onde o homem real age sobre a natureza adaptando-a às suas necessidades.
 
Só assim se eliminará a alienação denunciada por Feuerbach, e que não é só religiosa, senão também moral, jurídica, política, numa só palavra, universal. Enquanto todas as realidades e os objetos sensíveis não passarem de pensamentos puros, de formas da consciência, a luta será fácil contra adversários etéreos, que se digladiam no mundo das abstrações. A vitória contra a alienação será ilusória. As condições trágicas da existência nem por isto se modificam. O triunfo só se obterá por uma transformação das condições reais de existência levada a cabo por uma revolução social. O materialismo, cumpre orientá-lo, de um sistema especulativo de metafísica, para uma doutrina prática de ação revolucionária. E a última das Teses sobre Feuerbach, publicadas em 1845, soa já como um clarim de guerra precursor do Manifesto de 1848: “Os filósofos não fizeram senão interpretar o mundo de diversas maneiras; o de que se trata, porém, é de reformá-lo”.
 
O marxismo será esta filosofia toda orientada para a praxis; em nenhuma outra, pensamento e ação se fundiram tão indissoluvelmente.
 
Seu ponto de partida será o homem, não a idéia abstrata de homem, mas o homem vivo, concreto, imerso na natureza, relacionado com os outros homens. A atividade humana, considerada como um todo, constituirá o primum philosophicum desta nova sistematização, que pretende dar-nos, numa síntese compreensiva, a noção verdadeira do homem, tal qual deve ser, e o caminho prático para libertá-lo das escravidões atuais e reintegrá-lo sem alienações diminuidoras, na plenitude de sua natureza.
 
A reflexão exercida sobre a realidade viva apontará as causas de sua desintegração e indicará ao mesmo tempo as condições de sua recuperação. O pensamento traça à ação rumos e normas, a ação assegura ao pensamento eficiência e fecundidade. Filosofia e revolução serão os aspectos indissoluvelmente complementares da nova Praxis.
 
Nesta arrancada, Marx, opta, sem discussões nem crítica, pelo materialismo da tumultuosa esquerda hegeliana. O homem é matéria e só matéria. “A História, escreve ele, é uma verdadeira parte da história natural, da transformação da natureza no homem”5. Assim sendo, toda a sua atividade reduz-se a um esforço de adaptação ao meio. Para satisfazer às suas necessidades, o homem age sobre a natureza e a natureza reage sobre o homem. O trabalho e o trabalho produtivo é a atividade essencialmente humana, a chave do grande enigma da natureza e da história, a síntese que liga o homem ao cosmos. Por este esforço da adaptação recíproca os indivíduos vinculam-se ao ambiente e prendem-se uns aos outros. O trabalho define o homem e a estrutura a vida social.
 
As relações dele decorrentes, relações puramente econômicas, tecem a trama real da história. Tudo o mais, a nossa vida intelectual, moral e política, não tem nenhum valor próprio, autônomo, nada mais é que reflexo das condições materiais da existência que variam com o tempo; “Em cada época histórica, escreve Engels, no Prefácio ao Manifesto Comunista, a forma dominante de produção econômica e de permuta e a organização social que necessariamente se lhe segue, constitui a base sobre a qual se eleva, e da qual unicamente, na sua explicação, depende, a história política e intelectual desta época”. As idéias não passam de produtos ou subprodutos da estrutura econômica.
 
Os grandes pensadores viram sempre, no drama histórico da humanidade, o resultado complexo, não só de fatores físicos, geográficos e econômicos, senão ainda de agentes espirituais, psicológicos, morais e religiosos, que se entrelaçam em tramas complicadas a desafiarem, por vezes, as análises mais esmiuçadoras. O postulado materialista impõe a evicção de todas as energias espirituais. O humano reduz-se ao econômico. O jogo das atividades livres cede o lugar ao determinismo inflexível das leis naturais. Só a ação das forças produtivas constrói e explica a história; é a sua base, a sua estrutura. O moinho de vento criou a civilização feudal, o moinho de vapor, a capitalista. Das condições modernas de produção nasceu o capitalismo, como a escravidão resultou das condições sob as quais foram construídas as pirâmides. A filosofia, a arte, a religião, as instituições jurídicas, políticas e sociais, não passam de superestruturas ideológicas, associações mais ou menos coerentes de idéias abstratas, a espalharem, num mundo irreal, as condições materiais existentes. Falta-lhes um conteúdo de realidade própria. E se por vezes lhes atribuímos uma tal qual autonomia de influência no curso dos acontecimentos, é porque perdemos a consciência de sua origem, esquecidos dos fatores econômicos que lhes deram nascimento. Engels não se cansa de o repetir: é “a necessidade econômica que em última instância sempre prevalece”; que “em última instância condiciona o desenvolvimento histórico”; “por mais influenciadas que pareçam pelas outras condições políticas e ideológicas, não deixam as condições econômicas de ser, em última instância, as condições determinantes”6.
 
Esta interpretação materialista da evolução humana, pelo simples jogo das forças da produção, tem uma importância central no marxismo. Nela verá Marx a chave de uma explicação econômica da alienação denunciada por Feuerbach; nela ainda, encontrará o ponto de inserção da dialética hegeliana que progride à força de antagonismos fecundos e conflitos libertadores.
 
A alienação, origem da desintegração e diminuição do homem, é um fruto natural do regime econômico em que vivemos. Não só da religião, simples superestrutura ideológica, deriva ela mas, também e principalmente de toda a situação social criada pelo capitalismo. “A alienação religiosa como tal só se processa no domínio da consciência, no foro interior do homem, mas a alienação econômica é a da vida real”. A propriedade privada dos meios de produção é a primeira responsável da grande decadência. A consideração do trabalho como fator único do valor e a teoria mais valia, propostas por Marx, explicam facilmente, a seu ver, esta desumanização progressiva das grandes massas.
 
Aplicando as suas forças, intelectuais e manuais, o homem modifica a natureza, dá aos produtos de sua atividade um valor que antes não tinham, e transfere, ao mesmo tempo, ao fruto de seu trabalho algo de si mesmo, de sua inteligência e de suas forças. Para que não fique diminuído ou mutilado, fora mister que todo o valor do produto, unicamente devido ao trabalhador integralmente revertesse. No regime capitalista, ao invés, só lhe toca o salário, isto é, por via de regra, o indispensável para uma subsistência precária, muito abaixo do valor conferido pelo trabalho ao objeto produzido. O mais, esta sobrevalia que vai aumentar o capital, fica definitivamente alienado de sua humanidade empobrecida. O progresso do trabalho, produzindo mais riqueza, não fará senão agravar o mal. Quanto mais trabalhar o assalariado, mais desagregará a sua personalidade. Multiplicando as suas obras, empobrece. Tudo o que de sua vida e de sua substância cristaliza na coisa produzida, cessa de lhe pertencer, aliena-se em proveito de outrem, constitui uma realidade estranha, uma dominação estrangeira que lhe é inimiga. A lei de concentração do capital, sua conseqüência espontânea, importa necessariamente na lei da proletarização crescente das massas. E a alienação, diminuidora do homem, ampliará inelutavelmente a esfera de sua ação nefasta.
 
A produção privada é, portanto, a causa primeira desta diminuição, “a expressão material e sensível” da alienação universal. A religião, a família, o Estado, o direito e a moral, a ciência, a arte não passam de reflexos do regime econômico por ela caracterizado. Assim, o que ao socialista francês se afigurava um roubo, na perspectiva marxista aparece como uma expropriação contratual do homem.
 
A diagnose do mal aponta-lhe o remédio. E este é único: a supressão total e completa da propriedade privada. Revoluções parciais, simples reformas econômicas, conseguirão apenas um transfert de riquezas. A reintegração definitiva da natureza humana não será uma realidade senão quando se socializarem todos os meios de produção. Só o comunismo, integral e absoluto, libertando o homem de todas as alienações, o restituirá a si mesmo, plenamente livre e independente.
 
E para esta emancipação final, marchamos sob o impulso de uma fatalidade inelutável. O discípulo de Hegel, que Marx nunca deixou de ser, aplica à evolução econômica da humanidade o determinismo dialético a que o mestre, com rigoroso ritmo lógico, submetera o desenvolvimento, racional e real, a um tempo, da Idéia. Também aqui o compasso temário de posição, negação e reintegração, cadencia a marcha dos acontecimentos. Num primeiro tempo há uma espécie de organização coletiva do trabalho; cada membro da comunidade consome o que produz – tese. Pouco a pouco, a divisão de tarefas provoca a apropriação e as permutas. Nasce a propriedade privada que, através de mil vicissitudes, avulta até o zênite do capitalismo moderno. Antítese ou negação, que por sua vez provocará a negação da negação ou a síntese final. A propriedade passará das mãos de poucos para a coletividade.
 
A luta de classes constitui o âmago deste antagonismo criador de progresso. E o impulso dinâmico que há de acionar e acirrar o movimento revolucionário, dá-lo-á o proletariado, vítima principal da alienação que a todos escraviza. Atirando-se contra a burguesia, numa concentração de forças irresistível, os grandes esbulhados do regime presente construirão amanhã, sobre as ruínas da nossa, outra sociedade, sem classes, em que os dois termos dos contrastes passados se fundirão numa ordem superior, e o homem, finalmente alforriado de todas as sujeições desumanizantes e deprimentes mas passageiras, só se pertencerá a si mesmo.
 
Como sistematização de idéias e como programa de ação, o pensamento marxista atingiu a sua maturidade. O Manifesto de 1848 podia ser lançado a todos os quadrantes. Nele os comunistas “declaram abertamente que seus desígnios se não podem realizar senão pela subversão violenta de toda a ordem social. Ante a eventualidade de uma revolução comunista tremam as classes dirigentes! Os proletariados, nada terão a perder senão suas cadeias; e a ganhar um mundo! Operários de todas as nações, uni-vos!”
 
Não esquecemos o nosso fito principal. Sem ter, porém, diante dos olhos uma visão panorâmica da ideologia marxista, dificilmente se poderá situar nela o relevo central do ateísmo. O comunismo não é ateu porque ateus, pessoalmente, foram Marx, Lenin e Stalin7 A negação de Deus entranha-se organicamente na doutrina de Marx, articulando-lhe toda a estrutura lógica e inspirando-lhe todo o dinamismo revolucionário.
 
Já em 1844 na Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel escrevia Marx: “Para a Alemanha, a crítica da religião está substancialmente terminada. Esta crítica condiciona toda a crítica... A abolição da religião, como felicidade ilusória do povo, é exigida pela sua felicidade real”. Este preconceito, fundamente enraizado no seu espírito, penetrará visceralmente na elaboração definitiva de todo o sistema. Partindo de uma concepção da história rigorosamente materialista, toda a realidade humana será reduzida ao jogo das forças produtivas ou relações econômicas. A religião, como as outras ideologias, não passa de um reflexo ilusório, no mundo das abstrações, das condições materiais de existência. É um produto histórico, sem consistência nem autonomia, transitório como as formações sociais do regime que lhe deram origem. Nasceu da necessidade que experimentou o homem de explicar a si e aos seus semelhantes as desigualdades criadas pela apropriação dos bens, por parte de alguns com detrimento dos outros. Seu efeito natural será reforçar e perpetuar o regime de que provém, sancionando estas desigualdades e injustiças. E como este regime é, por hipótese, um regime de exploração de uma classe por outra, a religião, tanto pela sua origem como pela sua finalidade, afigura-se ao marxista um instrumento de exploração, com seu indissimulável caráter de classe. Nas mãos da burguesia, a idéia de Deus e a esperança da vida futura com as suas compensações remuneradoras, são habilmente manejadas para manter, resignadas e submissas, as massas dos trabalhadores. A religião é o ópio do povo8. O poderoso narcótico, de um lado, provoca sonhos e fantasias de prazer que, na volta à realidade, se resolvem em desenganos e tristezas, de outro, paralisa as atividades orgânicas. A religião embala a humanidade em vãs quimeras e entorpece a pugnacidade libertadora dos proletários. Ilusão e ilusão malfazeja.
 
Destes pressupostos sistemáticos sobre a natureza da religião, estabelecidos sem nenhum exame crítico do seu conteúdo e sem nenhum respeito à verdade da história, decorre espontaneamente a atitude prática do comunismo. Atitude de hostilidade total e inexorável. As necessidades estratégicas da luta poderão sugerir, aqui e ali, tolerâncias temporárias, condescendências aconselhadas por um oportunismo contemporizador. As exigências internas do marxismo imporão sempre uma guerra de extermínio e de morte. O marxismo combate e deve combater a religião, como combate a propriedade privada, a existência da burguesia, a sociedade sem classes. Todos esses objetivos, que consubstanciam a íntima razão de ser do comunismo, entrelaçam-se, indissoluvelmente, na textura ideológica do marxismo, com a idéia de Deus e a vida religiosa. Por isto, enquanto em prol da religião apenas se assegura a liberdade de culto, a liberdade ilimitada de propaganda anti-religiosa é garantida como um direito constitucional da Carta Orgânica que estrutura “a ditadura do proletariado” nas repúblicas soviéticas9. A emancipação do homem, finalmente libertado de toda a alienação, como a entrevê Marx, está condicionada pelo eclipse total e definitivo da idéia de Deus na consciência da humanidade. É mister chegar a esta aniquilação para que o homem entre “a mover-se ao redor de si mesmo e, assim, ao redor de seu verdadeiro sol. A religião é um sol ilusório que se move em torno do homem, enquanto o homem não se move em torno de si mesmo”10.
 
O marxismo é essencialmente um ateísmo militante.
 
[Continua]
 

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