quarta-feira, 23 de maio de 2012

Ateísmo Militante - Parte 3 e final.

 
O Ateísmo Militante
Expressão nova a designar uma realidade também nova. 
 

Veja a parte 1 e 2 Aqui.
 
I I
 Não há por que determo-nos longamente na crítica dos seus fundamentos doutrinais. Os postulados metafísicos que lhe constituem a subestrutura são de uma inconsistência insanável e Marx não trouxe em seu apoio nenhuma contribuição nova, digna de apreço.
 
Deus, Absoluto transcendente, é a condição mesma de inteligibilidade de todo o real. Só nele poderá descansar, de modo definitivo, todo o pensamento que se completa. A estrutura como o dinamismo do Universo reclamam-no com a necessidade imperiosa e a exigência essencial de sua própria razão de ser. Explicar a crença constante e universal da humanidade num Princípio de tudo o que é, como um jogo ilusório de ficções ideológicas, para conservar e defender a propriedade, é simplesmente pueril. São muito mais sérias e profundas as razões que nos levam a Deus. Marx dispensou-se de examiná-las. E foi um grande mal11.
 
O materialismo, outro postulado metafísico fundamental de sua sistematização ideológica, não apresenta maior consistência. É uma filosofia simplória de primitivos: suas explicações terminam onde começam os verdadeiros problemas da inteligência. Adolescente, respirou-a Marx na atmosfera tumultuária dos jovens hegelianos (Feuerbach, e, mais tarde, Vogt, Buechner e Moleschott), em reação violenta contra os excessos idealistas da geração postkantiana. Sua aplicação à interpretação da história, não obstante as aparências de uma análise fria e rigorosa, obedece às imposições aprioristas de uma visão preconcebida das coisas. O que devera ser historiador sereno, economista positivo, numa palavra, homem de ciência, está sempre a serviço do ideólogo apaixonado, infalível e prepotente. A sua perspectiva histórica não resulta de um exame objetivo dos fatos; os fatos são vistos através das lentes deformadoras de um sistema antecipado. Aos 27 anos, Marx ainda se não havia aplicado ao estudo da economia e já estavam firmadas as articulações mestras da sua construção ideológica. O Capital foi escrito depois do Manifesto.
 
Vista através desse daltonismo, uma realidade fluida, movediça e complexa como a história não poderia deixar de sofrer deformações essenciais. Onde atua uma multiplicidade real de fatores – geográficos, biológicos, psíquicos e ideais – ele viu apenas o imperialismo absorvente e exclusivo das forças econômicas de que todas as demais são apenas epifenômenos inconsistentes. Onde se manifesta uma evolução a processar-se sobretudo em continuidade orgânica, ele não apurou mais que um movimento dialético de negações e conflitos.
 
Transporta assim à história, o materialismo, se ganhou em dinamismo revolucionário que destrói, nada lucrou como verdade que salva.
 
Mais interessante se nos afigura sublinhar a significação e as ressonâncias culturais de um movimento social que se afirma com uma energia de conquista crescente e ameaçadora.
 
Da sistematização marxista não há uma só peça que tenha resistido vitoriosamente à análise científica. As suas principais doutrinas – postulados filosóficos e teorias econômico-sociais – estão hoje cientificamente superadas. Não suportaram o exame da crítica e o confronto dos fatos. Sobrevivem, porém, popularmente, com uma força de expansão formidanda. O partido comunista que se encarna, por uma conjunção acidental de circunstâncias favoráveis, empolgou o poder na grande e misteriosa e enigmática Rússia. Mobilizou os seus inesgotáveis recursos econômicos, galvanizou o messianismo secular do seu povo e pôs este imenso poder a serviço da mais hábil, mais tenaz e mais tecnicamente organizada das propagandas imperialistas. Destarte, o que há 30 anos, como doutrina era um sistema historicamente classificado, como força política era uma inexistência ou uma insignificância, assumiu, em nossos dias, o vulto da maior ameaça à civilização humana.
 
O comunismo, de fato, não é apenas um sistema econômico, é uma filosofia integral da vida. Não aspira apenas a reformas da estrutura social, baseadas numa redistribuição mais eqüitativa dos bens materiais, reclama o monopólio incontrastável das almas. Pretende implantar a ditadura do proletariado e a ditadura das consciências. Uma religião às avessas. Seu dogma: o materialismo histórico. Sua ética: nova hierarquia de valores aferidos pelo imperativo condicional da vitória do partido. Seu ideal messiânico que eletriza as massas numa grande esperança escatológica: conquista emancipadora da humanidade. Nunca um totalitarismo estadeou pretensões tão radicais!
 
Na propaganda deste programa, os postulados metafísicos, que já não se discutem, ficam em planos mais afastados da perspectiva. Concentrando as atenções imediatas, figuram a exploração hábil de ressentimentos históricos das classes sofredoras, as críticas contundentes das injustiças e desumanidades do capitalismo, a pintura risonha da sociedade futura, colorida com um otimismo ingênuo e sereno em contraste com o pessimismo azedo que projeta as suas negruras sobre todo o passado histórico do homem alienado e decaído. Assim se hipnotizam as massas. Assim se cria a mística do comunismo, e se mobilizam as energias religiosas da alma a serviço de uma ideologia atéia. Fé e esperança, dedicação e sacrifício, amor da justiça e da liberdade, todo este patrimônio de riquezas humanas, que só têm valor numa ordem ontológica de realidades espirituais, são exploradas para acelerar a implantação de uma nova concepção da vida que as declara ficções sem conteúdo e abstrações malfazejas.
 
Eis a grande tragédia do comunismo: a mobilização das melhores energias humanas para a construção de um porvir que será o maior desastre e a decepção total da humanidade.
 
Este mundo que a revolução marxista prepara para a felicidade do homem será um mundo sem Deus. Um mundo em que se verificará o que Chesterton chamou “anomalia suprema dos tempos anormais, a derradeira negação que, para além de todos os dogmas, fulmina a crença mais necessária à alma: a de que existe uma razão das coisas”12. A inteligência já não poderá encontrar respostas às interrogações supremas sem as quais não lhe é possível viver. À vontade, com a negação do Infinito Bem, faltará a mola insubstituível do seu dinamismo metafísico. A consciência, reduzida a reflexo de condições sociais, perderá a sua dignidade de norma racional de ação. Os supremos valores da ordem ideal – a Verdade, o Amor e a Beleza – sem o único fundamento ontológico que lhes assegura realidade e vida, eclipsam-se numa noite sem esperanças. A morte impossível de Deus precipitaria a existência universal na negação eterna do nada. Não podemos prever o caos em que se desconjuntaria uma estrutura social em que fosse possível a extinção de Deus nas consciências humanas.
 
Ateísmo e materialismo são solidários no sistema de Marx. Este mundo que se pretende elevar sobre tantas ruínas será ainda o mais inumano dos mundos. O problema central em qualquer estruturação da sociedade, o problema da pessoa foi, pelo marxismo, não só preterido, nos aspectos que lhe são próprios, mas de todo em todo falseado na natureza dos seus dados fundamentais.
 
No homem não se viu senão a atividade econômica, característica de sua essência e plasma de sua sociabilidade. Os domínios mais nobres de sua vida individual e social – a cultura, o direito, a moral, a religião – foram anexados ao primado da economia. Onde convinha libertar o homem da hegemonia crescente e humilhante das forças de produção, consumou-se, como definitiva e ideal, a sua ditadura incontrastável. O homem já não deve dominar e disciplinar as relações econômicas para dirigi-las aos fins superiores da realização plena de sua personalidade, curva resignado o colo à tirania do seu jugo. A escravização ao econômico em vez de emancipação do econômico consuma a alienação irreparável e desumanizante.
 
Com esta inversão de valores desnatura-se e avilta-se a dignidade do trabalho. O esforço humano já não tem outra razão de ser senão aperfeiçoar a matéria e criar utilidades. O trabalho é isto, mas não é só isto. O que o constitui uma atividade especificamente humana, é, antes de tudo, ser uma obra viva interior das almas sobrelevam em qualidade as riquezas materiais que multiplica. Trabalhando, o homem desenvolve harmoniosamente as suas mais nobres faculdades, colabora com a realização dos planos divinos da criação e procura transfigurar este mundo, de que foi constituído senhor, numa habitação em que possa desenvolver as suas energias e realizar a nobreza de seus destinos.
 
No horizonte das esperanças humanas o comunismo acena com felicidades sonhadas de um paraíso perdido. Mas são estreitos estes horizontes  e falazes estas promessas. No indefinido em que se perde o olhar perscrutador do futuro, não se distingue senão riqueza e mais riqueza, conforto e mais conforto. Uma cúpula de chumbo, imensa e pesada, cinzenta e fria, não permite que se elevem as vistas acima dos bens materiais. O surto para o infinito, que constitui a essência mesma da personalidade, estará para sempre condenado a cair sobre si mesmo, no tantalismo de um desespero mortal. O homem transformar-se-á num animal de vista baixa: a terra estreitará para sempre o horizonte de suas perspectivas: o vôo de suas aspirações como o termo de suas atividades. Quando o trabalho se degrada à simples força criadora de valores econômicos, o homem, preso à matéria, verá alienado o melhor e mais nobre de sua natureza.
 
E esta alienação vai ainda mais longe. Quando se desconhece a dignidade do espírito, o homem já não tem um destino próprio, essência da personalidade. Decai à categoria da coisa ou do instrumento à serviço da sociedade. Na fórmula de Marx, o ser humano “na realidade, é o conjunto das relações sociais”13. Os vínculos que, num dado momento histórico. O ligam ao meio, definem-lhe a natureza e esgotam-lhe a razão de ser. Já não há em cada homem uma vocação original que importa respeitar, uma fonte de direitos que não podem ser postergados, uma autonomia de atividades realizadoras de uma finalidade moral, indeclinável. Cerceiam-se assim, pela raiz, todas as liberdades humanas. O indivíduo é sacrificado à comunidade, o cidadão ao Estado, que lhe impõe o mais absoluto conformismo de idéias, de vontades e de sentimentos. Compreende-se que Marx ridicularize: “o inevitável estado-maior das liberdades de 1848: liberdade pessoal, liberdade de imprensa, de palavra, de associação, de reunião, de ensino, de cultos etc”. Compreende-se que seja imolada a geração presente à felicidade quimérica do futuro. O homem, totalmente alienado de sua excelência natural, não passa de joguete sem dignidade nas mãos dos que encarnam a falsidade de uma ideologia na tirania de uma ditadura.
 
A grande tarefa da hora presente é dissociar do marxismo a obra imensa da elevação das classes operárias à participação mais eqüitativa em todas as riquezas da cultura. Ele não é nem pode ser o agente das transformações sociais por que suspiramos.
 
A tentativa comunista, se realizada, comprometeria a civilização e mergulharia o homem, para sempre transviado dos seus destinos, na desgraça de uma catástrofe irreparável.
 
Não é possível combater a Deus sem ferir o homem de morte.
 
Ateísmo militante, humanismo inumano.
 
 
  1. 1. O estudo destes escritos, compostos alguns em colaboração com Engels, é de importância capital para o conhecimento da filosofia de Marx, que orientará mais tarde, como um a priori dominante, as suas teorias econômicas, expostas n’O Capital. Os mais importantes destes trabalhos são: Economia Política e Filosofia, 1844; a Sagrada Família, 1845 (contra Bruno Bauer); Teses sobre Feuerbach (1845); a Ideologia Alemã (1845-46); Miséria da Filosofia, 1847 (redigido em Bruxelas contra a Filosofia da Miséria de Proudhon), o Manifesto Comunista, em 1848. Estas obras encontram-se na primeira edição de obras completas de Marx-Engels, iniciada em Berlim em 1927.
  2. 2. L. Feuerbach, Essence du christianisme, trad. Roy, Paris, Lacroix, 1864, p. 241, 124.
  3. 3. La Sainte Famille, em Oeuvres philosophiques, t. II, p. 250.
  4. 4. Karl Marx-F. Engels, Gesamtausgabe, I, I, 1. Feuerbach, como é sabido, significa em alemão “torrente de fogo”.
  5. 5. Écnomie politique et philosophie, em Oeuvres philosophiques, t. VI. p. 36, Lenin, fiel à ortodoxia da escola, sublinhará ainda mais este monismo materialista: “A eliminação do dualismo de espírito e corpo pelo materialismo ... consiste em professar que o espírito não tem existência independente do corpo, o espírito é apenas um fator secundário, uma função do cérebro, a imagem do mundo exterior”. Materialisme et empirio-criticisme, p. 66.
  6. 6. Études philosophiques p. 160,158,162,150,151,163. Lenin observa que Marx, no Capital, restringe as suas análises “só às relações de produção entre os membros da sociedade, sem recorrer uma só vez, para explicar as coisas, a fatores estranhos a estas relações de produção”. Du matérialisme historique, p. 16-19. Já na Ideologia alemã escrevera Marx: “O que são os indivíduos, depende das condições materiais da sua produção”. Oeuvres philosophiques, VI, 138.
  7. 7. Marx ateu, foi ainda um ‘inimigo fanático do cristianismo e no seu fanatismo perdeu toda a medida crítica’. F. Mauthner, Der Atheismus und seine Geschichte im Abendlande, t. IV, p. 113. Lenin, aos 16 anos, arranca do pescoço o crucifix que costumam trazer os jovens russos e o calca aos pés, declarando-se para sempre inimigo de Deus e da sociedade.
  8. 8. A expressão famosa é de Marx e encontra-se no trecho citado na nota precedente. Lenin traduziu-a para consumo russo: “a religião é o vodka do povo”
  9. 9. Constituição soviética de 1936, arts. 2 e 125.
  10. 10. E os outros documentos oficiais e os grandes orientadores do partido sublinham este caráter essencialmente anti-religioso do comunismo. Zinoviev, quando presidente da III Internacional, assim explicava em 1923 a atitude oficial do Estado soviético: “Nosso programa é baseado no materialismo científico que inclui pura e simplesmente a necessidade de propagar o ateísmo”. A senhora Krupskaya, viúva de Lenin e herdeira de seu pensamento: “É uma necessidade imperiosa que o Estado retome sistematicamente sua ação anti-religiosa entre as crianças. Devemos tornar os meninos e as meninas não só arreligiosos, mas ativa e apaixonadamente anti-religiosos”. Lunacharsky, ministro da Instrução pública, declarou textualmente: “Nós odiamos o cristianismo e os cristãos: ainda os melhores dentre eles devem ser considerados como os nossos piores inimigos. Pregam o amor ao próximo e a misericórdia, o que é contrário aos nossos princípios. A caridade cristã é um obstáculo ao desenvolvimento da Revolução. Abaixo o amor do próximo! É do ódio que precisamos. Devemos aprender a odiar; só assim chegaremos a conquistar o mundo”. O Programa do Partido estatui em seu § 13: “O Partido comunista da União Soviética é guiado pela convicção que só a realização de um plano metódico e uma consciência viva em toda a atividade social e econômica das massas conseguirão o desaparecimento completo dos preconceitos religiosos”. No programa da Internacional comunista lê-se: “Entre as tarefas da revolução cultural que deve abraçar as maiores massas, ocupa um lugar especial a luta contra o ópio do povo, a religião, luta que deve ser levada a cabo de modo sistemático e sem desfalecimentos”. Cfr. Orientalia Christiana, vol. V, fasc. I, n° 18, La législation soviétique contre la Religion; C. Dumont, O.P., L’irreligion marxiste, em Vie Intellectuelle, t. XXVIII (1934), 9-36; N.S.Timasheff, Religião na Rússia soviética, (1917-1943), Rio, 1943.
  11. 11. Dificilmente se deixará de encontrar nos professores de ateísmo uma deficiência moral que lhes explique a decadência da razão, envolvida na negação do Absoluto. Marx foi de um raro orgulho intelectual. Desde os bancos da universidade a sua atitude era, não de discípulo que aprende, mas de mestre que impõe sem transigências o seu modo pessoal de ver. Aos 23 anos quando defendeu em Berlim a sua tese de doutorado já tomara posição pelo ateísmo. E não voltou mais a uma revisão crítica deste gesto de adolescente cioso de independência. Dos colegas e amigos o seu dogmatismo alaneiro não tolerava as menores observações. Bakunin, que o admirava, escreve: “Marx ama a sua própria pessoa mais que seus amigos e apóstolos, para ele nenhuma amizade resiste à menor ferida do amor próprio... para que ele seja vosso amigo é preciso que o adoreis, que ele seja o vosso único ídolo”. Otto Ruehle, Karl Marx, Trad., Paris, Grasset, 1933, p. 296-297.
  12. 12. Chesterton, The Everlasting Man, trad. franc. Paris, 1927, p. 295.
  13. 13. É a sexta das Teses sobre Feuerbach.

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