Por um Cartuxo anônimo - Intimidade com Deus
Quando nos incorporamos no Filho, uma perfeita intimidade com Ele é o legítimo objeto da nossa esperança, a finalidade dos nossos desejos e dos nossos esforços. Ele cresce em nós e dilata o nosso ser, de maneira a tornar-nos cada dia com mais capacidade para o divino.
O homem renovado pela graça tira todas as suas faculdades das riquezas abundantíssimas do Verbo, enquanto se despoja de si próprio para se revestir da santidade de Cristo. A incorporação inunda-nos de dons sempre novos: a força do Espírito Santo, o poder divinizante da graça, a glória de que esta vida de união está já secretamente cheia. «Vós, pois, como escolhidos de Deus, santos e amados, revesti-vos de entranhas de misericórdia, de benignidade, de humildade, de modéstia e de paciência» (Col., III, 12). «Embora se destrua em nós o homem exterior, todavia o interior vai-se renovando de dia para dia» (II Cor., IV, 16).
A fusão da alma com Cristo opera-se no próprio fundo do ser e no princípio do tempo: os símbolos tirados da união de substâncias criadas não pedem traduzir esta unidade incomparável e sempre nova forjada pelo amor. «Para que sejam todos um, como tu, Pai, o és em mim, e eu em ti, para que também eles sejam um em nós» (João, XVII, 21).
Deus não põe de parte o que começou; pelo contrário, não cessa nunca de o aperfeiçoar na alma: Ele quer que Cristo cresça em nós até à plena harmonia da idade adulta. O Seu Espírito aproxima-se constantemente do Pai para nos unir mais intimamente a Ele. «Porque todos aqueles que são conduzidos pelo Espírito de Deus, são filhos de Deus. Porque vós não recebesses o espírito de escravidão para estardes novamente com temor, mas recebesses o espírito de adoção de filhos, mercê do qual chamamos, dizendo: Abba (Pai)» (Rom., VIII, 14-15).
À medida que o conhecimento de Deus cresce dentro de nós, torna-se mais viva a nossa fé no Pai. Quanto mais clara é para nós a evidência de que Deus é caridade, mais pronta fica a nossa alma para se perder nos abismos desse amor. Participamos do amor do Pai pelo Filho, e é com Cristo que repousamos no seio do Pai. «Livrou-nos do poder das trevas e transferiu-nos para o reino do Filho do seu amor» (Col. I, 13). Deste modo, a vida partilhada com Cristo introduz-nos na pátria da Sua eterna glória.
«Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu conheci-te; e estes conheceram que tu me enviaste. Eu fiz-lhes e far-lhes-ei conhecer o teu nome, a fim de que o amor, com que me amaste, esteja neles, e eu neles» (João, XVII, 25-26).
Todos os homens podem viver desta inebriante verdade se se deixarem libertar por ela, se, deixando de fazer das criaturas objeto do seu desejo, as atravessarem a correr como frágeis degraus, como meios inteiramente ordenados para a finalidade divina. «Nós conhecemos e cremos na caridade que Deus tem por nós: Deus é caridade» (I João, IV, 16).
Deus procura arrancar-nos cada vez mais a nós próprios, a fim de que já não vivamos para nós, mas d'Ele e para Ele. A minha vontade, o meu coração, o meu espírito foram substituídos pela vontade, pelo coração, pelo espírito de Cristo; eu e Ele somos um em espírito, e eu estou identificado com Ele pelo amor: é esta a experiência e a alegria dos santos. «Já não vivo, é Jesus que vive em mim!» (Gál., II, 20).
Nada encoraja e fortifica o coração como esta verdade: «Todas as coisas são vossas, o mundo, a vida, a morte, presente e futuro; tudo é vosso; mas vós sois de Cristo e Cristo de Deus» (I Cor., III, 22-23).
É esta, com efeito, a herança de Cristo, a obra que Ele realizou livremente morrendo por nós. «Eis-vos purificados, santificados e justificados em nome de Jesus Cristo, pelo Espírito de Deus» (I Cor., VI, 11).
Tudo devemos à graça e somos apenas o que ela permite que sejamos, mas podemos torná-la ineficaz com as nossas infidelidades. Velar pelo seu crescimento dentro de nós é o objeto digno do nosso esforço. «O vosso trabalho não é vão no Senhor» (I Cor., XV, 58). «Vigiai, permanecei firmes na fé, sede viris e fortes» (I Cor., XVI, 13).
As fraquezas terrestres hão-de pesar sempre sobre nós enquanto vivermos neste mundo. Os heróis e os gigantes da santidade suspiraram sempre sob a lei do pecado, que, como nós, nunca deixaram de sentir. «Infeliz de mim! Quem me livrará deste corpo de morte?» (Rom., VII, 24). O remédio para a nossa fraqueza é o realismo da fé: um olhar franco sobre a nossa própria miséria e sobre as riquezas de Deus. Cristo operou em nós uma obra sublime - a infusão de uma outra vida.
A fé ilumina-nos com uma luz infinitamente mais brilhante que o dia, a caridade abre-nos um horizonte que a natureza não pode sequer suspeitar. O cristão é um homem novo e o ar que ele respira interiormente não é deste mundo; a sua existência foi recomeçada segundo um plano divino. Embora ele continue a arrastar o peso do corpo e das suas inclinações inferiores, revestiu-se já de outra Pessoa. «Despojai-vos do homem velho com todas as suas obras, e revesti-vos do novo, daquele que renovando-se continuamente à imagem daquele que o criou, atinge o conhecimento perfeito. Nesta renovação não distingue entre o escravo e o homem livre, é Cristo que «é tudo em todos» (Col., III, 9-11). «O homem que está em Cristo é uma nova criatura; passaram as coisas velhas; eis que tudo se fez novo. E tudo isso vem de Deus» (II Cor., V, 17).
O coração é novo, são novos o espírito e a vontade; sim, o homem é novo a partir do momento em que se abriu inteiramente para a graça. E aquilo que Deus lhe dá, a vida divina, não pode ser-lhe arrancado por nada que tenha sido criado, se ele o não consentir. «Quem nos separa, pois, do amor de Cristo? A tribulação? A angústia? A fome? A nudez? O perigo? A perseguição? A espada? Mas de todas estas coisas saímos vencedores por aquele que nos amou. Porque eu estou certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as virtudes, nem as coisas presentes, nem as futuras, nem a força, nem a altura, nem a profundidade, nem nenhuma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Jesus Cristo nosso Senhor» (Rom., VIII, 35-39).
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