Santo Tomas de Aquino
“Dois pontos devem ser considerados acerca da boa organização do governo de uma cidade ou de uma nação. Primeiramente, que todos tenham alguma participação no governo, porque, segundo o livro II da Política, existe aí uma garantia de paz civil, e todos amam e guardam uma tal ordenação.”
“Por isso, a melhor organização para o governo de uma cidade oude um reino é
aquela em que à cabeça é posto, em razão de sua virtude, um chefe único
tendo autoridade sobre todos. Assim sob sua autoridade se encontra um
determinado número de chefes subalternos, qualificados segundo a
virtude. E assim o poder definido pertence à multidão, porque todos aí
têm, ou a possibilidade de serem eleitos, ou a de serem eleitores. Este é
o regime perfeito, bem combinado (politia bene commixta) de monarquia,
pela preeminência de um só, de aristocracia, pela multiplicidade de
chefes virtuosamente qualificados, de democracia, enfim, ou de poder
popular, pelo fato de que cidadãos simples podem ser escolhidos como
chefes, e que a escolha dos chefes pertence ao povo.”
A
afirmação da autonomia do político em relação ao religioso nada diz
ainda da questão sensivelmente diferente da melhor forma de governo que
convém a uma sociedade adotar. A bem dizer, Tomás jamais se estendeu
muito sobre esse assunto, mas vê-se de imediato que as duas questões não
existem sem relações. Não somente porque se trata de uma parte e de
outra do bem comum da multidão, mas também porque os dados de base que
comandam as opções nos dois casos são finalmente os mesmos. Tanto a
exigência do respeito mútuo das diversas competências da Igreja e do
Estado, quanto o apelo a uma ética de responsabilidade pessoal no
governo da cidade terrestre estão inscritos na autonomia do ser humano.
É
preciso saber que abordamos uma das questões mais discutidas da exegese
de Tomás. Como em muitos outros assuntos, e talvez mais ainda, numerosos
intérpretes quiseram encontrar no Mestre a teoria que eles mesmos
defendiam. Assim, na época da Ação francesa, uma corrente de teólogos
influentes tentou basear seu pensamento político em uma monarquia
absoluta, enquanto outros a situavam antes na linha de uma corrente
democrática e outros ainda aí viam uma teoria do governo “misto”. A
subjetividade dos intérpretes não foram, no entanto, a única em causa,
porque as divergências de interpretação não se limitaram ao território
francês; os autores de língua inglesa tinham também algumas vezes
posições bem diferentes.
Deve-se
reconhecer que é bastante difícil harmonizar as asserções do Mestre
quando comenta simplesmente Aristóteles, ou quando redige o opúsculo De regno – escrito de ocasião destinado a um soberano reinante e que ficou incompleto -, ou quando se exprime na síntese pessoal da Suma Teológica. O ponto de vista é diferente em cada um desses três casos, mas as coisas foram complicadas ainda pelo fato de que o De regno foi completado por Ptolomeu de Lucques, enquanto o comentário sobre A política o foi por Pedro d’Auvergne, e o foram nos dois casos, num sentido bastante diferente do de Tomás na Suma. O De regno sofreu uma desventura suplementar, uma vez que foi pilhado por Gilles de Roma em seu próprio tratado De regimine principium,
inspirado em um poder monárquico despótico, desfigurando assim a teoria
do poder político judiciosamente temperado que parece ser o pensamento
pessoal de Tomás.
Muitos
problemas poderiam ser resolvidos, nos parece, se se aceitasse
propô-los de uma nova maneira, mais atenta ao projeto de conjunto do que
ao teor doutrinal e imediato de certas proposições dos escritos em
questão. É importante distinguir o De regno e a Política do verdadeiro desígnio de Tomás; não se pode dar o mesmo peso a essas tentativas fracassadas e ao ensino da Suma. A análise cuidadosa do De regno
em especial, cujas particularidades havia muito intrigavam os
comentaristas, permite entender a questão. Se as circunstâncias levaram
Tomás a começar essas duas obras e se as abandonou tão rapidamente, foi
no fundo porque o gênero delas não correspondia ao que era sua
verdadeira intenção. Longe de querer escrever um tratado de filosofia
política, ele está fundamentalmente preocupado com uma visão teológica
da vida cristã, até em seus aspectos políticos. Por isso, pelo menos no
caso presente, é apenas na Suma Teológica que encontramos seu
verdadeiro pensamento, não sob a forma de um tratado de teologia
política independente, mas disseminado em fragmentos aqui ou ali,
segundo a exigência do projeto de conjunto.
Em todo caso, e por cuidado de método, citaremos aqui os textos da Suma,
escrito de síntese e o fruto mais maduro do gênio de Tomás. Não é um
acaso se as principais passagens que leremos vêm quase todas dos
tratados da lei, antiga ou nova. Seu autor se manifesta como “um firme
mantenedor da lei”, como sendo a garantia de uma sociedade justa.
Trata-se menos de saber se o melhor governo será assegurado mais bem por
um só, por alguns ou por todos, do que saber se os que têm o poder
governarão de acordo com a lei, esta sendo a expressão da vontade de
todo o povo:
A
lei propriamente, primeiro e principalmente, visa à ordenação ao bem
comum. Ordenar, porém, algo para o bem comum é ou de toda a multidão (totius multitudinis) ou de alguém que faz as vezes de toda a multidão (gerentis vicem totius multitudinis). E assim constituir a lei ou pertence a toda a multidão, ou pertence à pessoa pública que tem o cuidado de toda a multidão (quae totius multitudinis curam habet). Porque em todas as coisas ordenar para o fim é daquele de quem esse fim é próprio.
(ST 1ª 2ae q.90 a.3)
Segundo
esse texto, não somente o poder legislativo pertence à multidão, mas
deve-se entender que o próprio soberano não tem o poder de fazer as leis
a não ser por delegação, e Tomás o diz muito explicitamente. Nessas
condições, não nos surpreenderemos ao aprender que a seus olhos a melhor
forma de governo é a que ele chama de “mista”, porque resulta de um
equilíbrio entre as diversas formas de poder descritas por Aristóteles.
Estando todos os cidadãos nisso interessados, ela é normalmente a mais
apta para assegurar a boa ordem desse caminho para o fim de todo o povo:
Dois pontos devem ser considerados acerca da boa organização do governo de uma cidade ou de uma nação. Primeiramente, que todos tenham alguma participação no governo,
porque, segundo o livro II da Política, existe aí uma garantia de paz
civil, e todos amam e guardam uma tal ordenação. Outro ponto concerne à
forma do regime ou da organização dos poderes. Sabe-se que são muitas
essas formas, diferenciadas por Aristóteles no livro III da Política,
mas as principais são a realeza, ou o domínio de um só segundo a
virtude; e a aristocracia, a saber, o governo dos melhores, ou domínio
de um pequeno número segundo a virtude. Por isso, a melhor organização
para o governo de uma cidade ou de um reino é aquela em que à cabeça é
posto, em razão de sua virtude, um chefe único tendo autoridade sobre
todos. Assim sob sua autoridade se encontra um determinado número de
chefes subalternos, qualificados segundo a virtude. E assim o poder definido pertence à multidão, porque todos aí têm, ou a possibilidade de serem eleitos, ou a de serem eleitores. Este é o regime perfeito, bem combinado (politia bene commixta)
de monarquia, pela preeminência de um só, de aristocracia, pela
multiplicidade de chefes virtuosamente qualificados, de democracia,
enfim, ou de poder popular, pelo fato de que cidadãos simples podem ser escolhidos como chefes, e que a escolha dos chefes pertence ao povo.
(ST 1a 2ae q.105 a.1)
A
vontade de equilíbrio é evidente, mas não é a única a justificar a
preferência pelo regime misto. Como se pode perceber prosseguindo a
leitura, Tomás tem da Sagrada Escritura a convicção de que é
precisamente esse regime misto que Deus quisera para o seu povo:
Moisés,
com efeito, e seus sucessores governavam o povo como chefes únicos e
universais, o que é uma espécie de reino. Eram escolhidos setenta e dois
anciãos pela virtude (Dt 1, 15) … Entretanto, era democrático que estes
tivessem sido escolhidos dentre todo o povo (cf. Ex 18, 21) … E também
que o povo os designava (cf. Dt 1, 13). Portanto fica claro que sendo
instituída pela lei [divina] essa organização dos poderes era a melhor.
(ST 1ª 2ae q.105 a.1)
A
autoridade dos Padres da Igreja reforça esse argumento da Escritura por
uma definição da lei tirada de Isidoro de Sevilha: “Há enfim um regime
misto (commixtum), composto dos precedentes, o qual é o melhor (optimum); ‘o que os maiores de nascimento de acordo com o povo sancionaram’, como diz Isidoro”.
Assim
o cuidado da eficácia de tal governo, obtida pela concentração de poder
num pequeno número, não exclui a insistência na participação de todos
no governo pela via da eleição e da elegibilidade de todos. Dominicano,
Tomás pertence a uma ordem religiosa na qual todos os cargos são
eletivos; sabe muito bem que o sentido da responsabilidade pessoal é
estimulado pelo compromisso efetivo na escolha dos responsáveis do
governo. Segundo o velho adágio, bem conhecido nos meios religiosos de
seu tempo: “o que concerne a todo mundo deve ser tratado por todo
mundo”. Quanto às passagens das outras obras que causam dificuldade a
seus intérpretes, é claro que textos como esses são pelo menos
portadores de “poderosos elementos democráticos” (a expressão é de R.
Imbach, Démocratie ou monarchie?). Jacques Maritain lembrara
outrora oportunamente a verdadeira importância desses textos diante de
algumas deturpações. O pensamento de Tomás é o de um redescobridor do
pensamento político grego, e sua síntese aparece como uma combinação
original entre o pensamento antigo, a patrística e o pensamento
medieval, enquanto sua maneira de ler a história de Israel como a de um
povo com governo misto, mesmo se é um pouco forçada, é também
profundamente nova.
Esses
textos podem ser lidos e compreendidos de maneira levemente diferente
segundo a sensibilidade própria do leitor, ou talvez segundo sua
nacionalidade ou sua pertença social. Mas trata-se de outra coisa e não
da divergência de interpretações lembrada no início desse parágrafo;
todas não são boas. A opção clara de Tomás pelo regime “misto”
corresponde à maneira pela qual vê o homem como um ser social, que não
pode se desinteressar do corpo ao qual pertence e do qual ele deve, ao
contrário, ser um membro ativo e comprometido. Quando esse homem é um
cristão, sua fé o proíbe de se ater a uma interpretação individualista,
demasiado “privada”, de sua relação com o outro. Uma “espiritualidade”
na escola de Tomás implica necessariamente sua repercussão no campo
público.
(Fonte: Jean-Pierre Torrel, OP, Santo Tomás de Aquino, Mestre Espiritual)
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