A descoberta da Outra
Um leitor que se diz assíduo, numa longa conversa telefônica, estranhou
o pós-conciliar. O leitor entende o termo como se significasse a mesma Igreja
Católica, na era pós-conciliar. Bem sei que nesse período conturbado continua a
existir, na terra, a Igreja Católica dita militante. Ora, minha sofrida e firme
convicção, tantas vezes sustentada aqui, ali e acolá é que existe, entre a
Religião Católica professada em todo o mundo católico até poucos anos atrás e a
religião ostensivamente apresentada como "nova",
"progressista", "evoluída", uma diferença de espécie ou
diferença por alteridade. São portanto duas as Igrejas atualmente governadas e
servidas pela mesma hierarquia: a Igreja Católica de sempre, e a Outra. E note
bem, leitor: quando acaso der a essa outra o nome de Igreja pós-conciliar não
quero de modo algum insinuar a infeliz idéia de que, após o Concílio, a Igreja
de Cristo se teria transformado a ponto de tornar-se irreconhecível, devendo os
fiéis de bem formada doutrina católica acreditar nessa nova forma visível da
Igreja, por pura disciplina, ainda que a maioria das pregações e dos novos
ensinamentos sejam ostensivamente diversos e as vezes opostos à doutrina
católica. Não! A Igreja Católica e Apostólica continua a existir na era
pós-conciliar, submetida a duras provações, mas sempre permanente e fiel
guardiã do depósito sagrado.
Se o leitor me perguntasse agora quais são as essenciais diferenças que
separam as duas religiões, eu responderia: diferença de espírito, diferença de
doutrina, diferença de culto e diferença moral. Como terei chegado a tão
assustadora convicção? Com muito sofrimento e muito trabalho, são milhares os
católicos que chegaram à mesma convicção.
Começamos por confrontar os novos textos, as novas alocuções, as novas
publicações pastorais com a doutrina ensinada até anteontem. A começar pelos
textos emanados dos mais altos escalões, citemos alguns daqueles que mais
dolorosamente e mais irresistivelmente nos levaram à conclusão de que se
inspiram em outro espírito e se firmam em outra doutrina. Entre os textos
conciliares, citamos os seguintes: Constituição Pastoral sobre a Igreja e o
Mundo Atual (Gaudium et Spes); Decreto sobre o Ecumenismo (Unitatis
Redintegratio); Declaração sobre a Liberdade Religiosa (Dignitatis Humanae);
Discurso de Encerramento do Concílio, 7 de Dezembro de 1965; Institutio
Generalis do Novus Ordo Missae: Ponto 7 (na primeira redação, de
1967, e principalmente a segunda redação de 1970). Além desses documentos dos
mais altos escalões, poderíamos encher as páginas deste jornal com obras e
pronunciamentos de cardeais, arcebispos, bispos e padres que eram bisonhos,
retraídos e discretos quando tinham vaga consciência de suas deficiências
filosóficas e teológicas e que subitamente descobrem que na "nova
Igreja" podem dizer tudo o que lhes vem à boca que fala ou à mão que
escreve. O que menos se conhece é a Teologia, mas o que mais abunda na Nova
Igreja são os "teólogos da libertação".
Devemos dar especial atenção aos pronunciamentos das Conferências
Episcopais que rarissimamente dizem coisa parecida com a Santa Religião
ensinada por Jesus Cristo. Basta prestar atenção, ler, e comparar toda a
prodigiosa logorréia dos reformadores com o que já lemos dos santos doutores,
dos santos Papas, e de toda a Tradição católica. Eles não falam a mesma língua
de nossa Mãe Igreja, não usam o mesmo léxico, não seguem o mesmo espírito.
Evidencia-se com brutalidade dolorosa o fato de ter sido a Igreja invadida, ou
de ter se deixado seduzir pelos mesmos inimigos que combatia. Uma das notas
mais características do novo espírito é a da tolerância erigida em máxima
virtude, e o correlato horror por qualquer espécie de luta ou combate. Os novos
levitas corrompem a juventude, destroem as famílias, mas quando alguém ergue a
voz pedindo punição severíssima para os seqüestradores e para os traficantes de
drogas, logo começam a esganiçar gritinhos: Violência, não! Violência, não!
E aqui encerro a concisa resposta que dou ao leitor escandalizado: foi a
atenta observação desses fatos, foi a paciente leitura de himalaias de
mediocridade e foi a comparação gritante entre o que ensinam e o que ensinaram
os santos, e creio que foi principalmente a graça de Deus certamente pedida
cada dia, cada hora, nessa especial e gravíssima intenção, que nos levaram a
essas conclusões. Se é preciso usar o recurso dos gritos que tanto usam hoje,
gritarei eu também, e não esconderei a reação que tive em 1965 após a primeira
leitura da Constituição sobre a Sagrada Liturgia: corri ao telefone do amigo
mais próximo já chorando, já engasgado de soluços que me sacudiam o corpo todo.
E gritei: eles estão loucos! Eles estão loucos! E mais não digo.
Vejo em seguida nos meios católicos um dilúvio de calamidades pavorosas.
Nas melhores famílias católicas, tradicionalmente católicas, os jovens,
pervertidos pelos professores de colégios católicos, se transformam em anormais,
comunistas, criminosos seqüestradores, ou em inutilizados toxicômanos. Meu
Deus! Como pode? Como pode? Como Pode? O mistério da permissão divina nos traz
vertigens quando pensamos em tantos bons pais tão terrivelmente atingidos.
Mas quando pensamos que a crise de costumes que dissolve todos os
valores morais de uma civilização é principalmente gerada pela impiedade e pelo
orgulho dos homens, que reivindicam todas as liberdades e todos os direitos; e
principalmente quando pensamos que é exatamente nessa hora sombria que os
homens de Igreja julgam ter feito uma descoberta muito inteligente, e muito
oportuna – a de se abrir para o mundo e até a de nele procurar inspirações para
o novo humanismo que apregoam – então, com temor e terror, pensamos que a misteriosa
permissão divina, já nos foi profeticamente revelada na Sagrada Escritura, e
durará até o dia em que os homens descobrirem apavorados que desprezaram Deus,
que contrariaram Deus, que se riram de Deus. E, nesse dia de espantosa
desolação descobrirão "que não passam de homens" e que só Deus é o
Senhor.
Neste ponto da entrevista, o leitor me faz uma pergunta muito séria e de
importância capital:
— Qual é, na sua convicção, o traço principal, o conteúdo essencial
dessa Outra religião que o senhor vê nos recintos da Igreja Católica?
— Mais uma vez insistido neste ponto: a desordem que se observa nos
meios eclesiásticos e que produz tais malefícios, não pode ser
apenas uma pura desordem. A desfiguração da Igreja do Verbo Encarnado, isto é,
da religião do Deus que se fez homem, tem uma figura: a da religião do homem
que se faz Deus. Essa é a figura da desfiguração.
— Não foi o próprio Papa Paulo VI quem disse no discurso de
encerramento do Concílio que "a Igreja de Deus que se fez homem encontrou-se no
Concílio com a religião do homem que se faz Deus"?
— Exatamente. E se o amigo continuar a atenta leitura desse documento,
se convencerá de que não exagero nem me perco em fantasias se lhe disser que a
figura essencial da Outra é a de um humanismo que se torna uma nova religião
que difere do cristianismo por seu desolado naturalismo, isto é, pela ausência
da mais bela de todas as obras de Deus – a ordem da graça e da salvação.
Eles tentam disfarçar a chatice e a tristeza sinistra e feia, com
retalhos de cristianismo sem vida mas a anemia profunda do corpo sem
sangue está na visibilidade da Outra que só serve para eclipsar a Santa
Visibilidade da Igreja de Cristo.
— E como poderá a Igreja Católica desembaraçar-se desses equívocos
e voltar a ser visível, dourada, um pouco mais hoje, um pouco menos
amanhã, mas sempre anunciando aos homens, aprisionados no efêmero, um Reino que
não é deste mundo?
— O senhor espera ainda ver neste mundo a Igreja Militante em todo
o seu esplendor?
— Não. A desordem é profunda demais e chegou aos vasos capilares
dos membros da Igreja. Se ela não fosse obra sobrenatural de Deus eu diria, em
termos usados pelos físicos, que a desordem é sempre prodigiosamente
irreversível.
E, no caso, a improbabilidade de tal recuperação seria expressa por
números espantosos como dez elevado a menos mil (10-1000) que, na verdade, não
exprimem nada. Não são números concretos nem entes de razão; quando muito
diríamos que só são entes de giz no quadro negro. Emile Borel dizia francamente
que, diante de tais improbabilidades, é melhor dizer simplesmente que são
impossíveis. Mas nós aqui estamos falando da mais maravilhosa das
obras de Deus:
"Deus qui humanae substantiae dignitatem mirabiliter condidisti, et
mirabilius reformasti"
E o que a nós parece impossível, é possível para Deus. Mas nossa
esperança teologal não nos obriga a esperar acontecimentos neste mundo. No
ponto da vida em que me acho, só posso esperar, pela misericórdia de Deus e
pelo Sangue de Cristo, a felicidade de ver brevemente a Igreja do Céu em toda a
sua beleza eterna e fora do alcance dos flagelos humanos.
E é a alegria dessa esperança teologal que, nestes dias de transição
desejo aos meus leitores e companheiros de trabalho.
(O Globo, 29/12/1977)
Nenhum comentário:
Postar um comentário