Dos
grandes danos que nascem da tristeza
Esteja muito
longe de ti a tristeza, diz o Sábio, porque
a tristeza a muitos tem causado a morte, e não há nela proveito algum. [2]
Cassiano escreve um livro inteiro sobre o espírito da tristeza, porque para
curar, diz, e remediar este mal e enfermidade, não é necessário menor cuidado e
diligência que para as demais enfermidades e tentações espirituais que se nos
oferecem nesta vida, pelos muitos e grandes danos que traz consigo, os quais
vai ali apontando e fundando-os admiravelmente na Sagrada Escritura.
Guardai-vos, diz ele, da tristeza; não a deixeis entrar no vosso coração,
porque, se lhe dai entrada, e se começa a assenhorear-se de vós, logo vos
tirará o gosto da oração, e fará que vos pareça dilatada a hora que se dedica,
e que não a cumprais inteiramente, e algumas vezes fará com que totalmente
fiqueis sem oração, e que deixeis a leitura espiritual [3].
Em todos os
exercícios espirituais vos dará um tédio e um fastio que os não podereis
suportar. Por causa do tédio dormitou minha alma [4]. Neste
verso, diz Cassiano, declara muito bem o profeta estes males que se seguem da
tristeza. Não diz que se lhe adormeceu o corpo, mas a alma; porque a tristeza e
a acídia espiritual dão à alma um tão grande tédio e fastio de todos os
exercícios e de todas as obras de virtude, que fica adormecida e incapaz para
tudo o que é bom. Algumas vezes ;e tão grande este fastio que um sente para as
coisas espirituais, que o chegam a enfadar e aborrecer as pessoas que tratam de
virtude e de perfeição, e até às vezes procura retraí-las e estorvá-las de seus
exercícios de piedade e virtude.
Ainda tem
outro efeito a tristeza, diz Cassiano, e é que torna o homem desabrido e áspero
para com os irmãos. Diz S. Gregório: A tristeza traz consigo ira e enfadamento
[5].
E
assim experimentamos que, quando estamos tristes, facilmente nos zangamos
e enfadamos por qualquer coisa. A tristeza faz o homem impaciente nas coisas
que trata, fá-lo suspeitoso e malicioso; e às vezes perturba ao homem de tal
modo, que parece lhe tira o juízo, e o faz sair fora de si conforme aquilo do
Eclesiástico: Onde há amargura, não há juízo [6]. E assim
vemos muitas vezes que, quando reinam em um a tristeza e a melancolia, tem umas
apreensões tão fora de razão, e umas suspeitas e temores tão sem fundamento,
que aos outros que estão em seu juízo costumam causar riso, e disso fazem
pratinho nas conversas, como de loucuras.
E temos visto
alguns homens gravíssimos, de grandes letras e talentos, tão presos e dominados
desta paixão que era grande lástima vê-los umas vezes chorar como crianças e
outras vezes dar suspiros e gemidos tão descompassados que mais pareciam
bramidos. E depois quando estão em seu juízo, e sentem que lhes quer vir esta
loucura, que assim se pode chamar, fecham-se no seu quarto, para suspirarem e
chorarem a sós, sem perigo de perderem a sua autoridade e opinião para com
aqueles que os vissem fazer tais coisas.
Se querei
saber de raiz os efeitos e danos que a tristeza causa no coração, diz Cassiano,
o Espírito Santo no-lo diz brevemente pelo sábio: O que faz a traça no
vestido e o caruncho e a carcoma na madeira, isto mesmo faz a tristeza no
coração do homem [7]. O vestido roído pela traça não vale nem pode
servir para nada; o madeiro cheio de carcoma não presta para o edifício, nem se
pode colocar sobre ele peso algum, porque lodo se faz em pedaços. Assim também
o homem cheio de melancolia, triste e carrancudo, faz-se inútil para tudo o que
é bom. E não pára aqui o mal; mas o pior é que a tristeza no coração é causa e
raiz de muitas tentações e de muitas quedas. A muitos matou a tristeza [8],
fazendo-os cair em pecados. Para prova disso trazem aquelo que diz santo Jó
acerca do demônio, que dorme da sombra [9]. Nessa sombra e
escuridão, nessas névoas e trevas dessa confusão tendes, quando estais tristes,
aí dorme e se esconde o demônio; esse é o seu ninho e o seu covil; aí arma ele
melhor as suas redes; essa é a disposição que ele está aguardando para acometer
com quantas tentações quer.
Assim como
as serpentes e bestas feras estão esperando que chegue a escuridão da noite
para saírem das suas covas, assim o demônio, serpente antiga, está esperando
essa noite e escuridão da tristeza, e então acomete com toda a espécie de
tentações [10]. Têm preparadas suas setas na aljava para na escuridão
ferirem aos de coração reto [11].
Dizia S.
Francisco de Assis que o demônio se alegra muito quando vê um homem de coração
triste, porque tão facilmente o afoga na tristeza e na desesperação ou o leva
para os prazeres mundanos. Note-se muito essa doutrina, pois é de suma
importância. Ao que anda triste e melancólico, umas vezes o demônio o faz cair
numa grande desconfiança e desesperação, como fez a Caim e a Judas; outras
vezes, quando lhe parece que por aí não faz boa entrada, acomete-o com deleites
mundanos de divertimentos e vaidades; outras vezes com prazeres carnais e
sensuais, com pretexto de que com aquilo se livrará da pena e tristeza que o
aflige. E daqui vem que, quando está triste, lhe costumam vir graves tentações
contra a vocação, porque lhe representa o demônio que lá no mundo viveria
alegre e contente: e a alguns tem tirado já da Religião esta tristeza e
melancolia.
Outras vezes
o demônio costuma acometer ao homem triste trazendo-lhe pensamentos carnais e
desonestos que dão gosto à sensualidade e procurando que detenha neles com
pretexto de que assim lançará de si a tristeza e se aliviará o seu coração.
Isso é coisa muito de temer nos que andam tristes e melancólicos, porque neles
costumam ser muito ordinárias essas tentações. E isso mesmo adverte muito bem
S. Gregório. Diz ele que, como todo homem deseja naturalmente ter algum gosto e
contentamento, quando o não acha em Deus, nem nas coisas espirituais e do céu,
logo o demônio, que sabe muito bem a nossa inclinação, lhe apresenta coisas
sensuais e desonestas, e lhe oferece gosto e contentamento nelas, com as quais
lhe parece que se mitiga e alivia a tristeza e a melancolia presentes. Ficai
sabendo, diz o Doutor, que se não tendes contentamento e gosto nas coisas altas
e de Deus, o ireis buscar nas coisas baixas e vis, porque o homem não pode
viver sem algum contentamento e satisfação [12].
Enfim, são
tantos os males e danos que nascem da tristeza, que diz o Sábio: Com a
tristeza vêm todos os males [13]; e noutra parte: A tristeza
apressa a morte [14], e até dá a morte eterna, que é o inferno. Assim
declara S. Agostinho aquilo que disse Jacó a seus filhos: Com a dor que
me causais levareis minhas cãs ao inferno [15]. Diz que temeu Jacó não
fizesse tanta impressão e causasse nele tanto dano a tristeza de ficar sem o
seu filho Benjamin, que lhe pusesse em dúvida a salvação, e desse com ele no
inferno dos condenados. E por isso diz que nos avisa o apóstolo S. Paulo que
fujamos da tristeza, para que não suceda talvez que com a tristeza demasiada
venhamos a perder nossa alma [16]. Por serem tão grandes os danos da tristeza,
por isso é que nos previne e avisa tanto a Sagrada Escritura e os Santos que
fujamos e que nos acautelemos dela. Não é pela vossa consolação, nem pelo vosso
gosto, pois se não houvesse mais que isso, pouco importava que estivésseis
triste ou alegre. E pela mesma razão deseja e procura tanto o demônio que nos
domine a tristeza, porque sabe que é a raiz e a causa de muitos males e
pecados.
[1] Pe.
Afonso Rodrigues. Exercícios de Perfeição e Virtudes Cristãs, Segunda
Parte, Tomo IV, 3a. ed. Lisboa: União Gráfica, 1933, p. 157.
[2] Eccli.
XXX, 24.
[3] Cass. 1.
9 instit. renunt.
[4] Sl.
CXVIII, 28.
[5] Mor. 1.
31, c. 32.
[6] Eccli.
XXI, 15.
[7] Prov. XXV, 20.
[8] Eccli. XXX, 23.
[9] Job. XL, 16.
[10] Sl. CIII, 20.
[11] Sl. X,3.
[12] Mor. 1.
18, c.8.
[13] Eccli.
XXV, 17.
[14] Eccli. XXXVIII, 19.
[15] Gen. XLII, 38.
[16] II Cor. II, 7.
Fonte: Grupo São Domingos de Gusmão
Fonte Origem:
Tratado da Alegria da Alma Cristã - Padre Ambrósio de Lombez, O.F.M. Cap. - Ed.
Pinus.
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