quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Macbeth.


 
(Macbeth e seu amigo Banquo encontram as três bruxas)
 
Neste artigo, que decididamente não é o de um especialista, quis simplesmente expor algumas anotações feitas durante a leitura de algumas das peças de Shakespeare, especialmente de “Macbeth”.
 
Uma primeira pergunta que, desde o início, se poderia suscitar: Que interesse pode ter semelhante artigo para nossa formação católica, não seria melhor tratar de algum outro tema mais relacionado com a vida espiritual? Pergunta que poderia formular-se de modo mais geral: Que benefício podemos tirar da leitura dos clássicos?
 
Os clássicos não são um tratado sistemático de filosofia, mas nos ensinam, de modo mais acessível e artístico, relações muito importantes da alma humana, ajudam-nos a compreender melhor o que é o homem, o mecanismo real de sua psicologia, a estimar virtudes naturais, como a amizade, a honra, a coragem, assim com as conseqüências do pecado, etc. que são a base de todo o possível trabalho da graça em nós.
 
Na raiz dessa desconfiança ou desinteresse pela cultura clássica está, segundo me parece, um erro de dicotomia característico da nossa época moderna, como se a ordem sobrenatural fosse algo quase que a margem da natureza, e não seu aperfeiçoamento. Se a graça aperfeiçoa a natureza, a natureza também “ajuda” o desenvolvimento da graça.
 
Assim, por exemplo se não podemos ou não somos capazes de compreender a beleza de uma poesia, não saberemos compreender a beleza dos salmos e, muito menos, a beleza das operações da graça em nossas almas. Se não compreendemos o valor da amizade, não poderemos apreciar a caridade sobrenatural, amizade de outra ordem que Deus infunde em nossas almas. E assim em tudo o mais.
 
Shakespeare situa-se num período de transição entre dois mundos: traz toda a herança de séculos de civilização cristã, que floresceu na Idade Média, mas é homem da renascença. Seu drama distingue-se do drama medieval por um enfoque mais psicológico e introspectivo (que o tornaria quase um precursor da novela psicológica de Dostoievksy), mas nem por isso está destituído do aspecto moralizante medieval; ao contrário, é altamente instrutivo.
 
Os críticos, em geral, dividem a obra literária de Shakespeare em três épocas. A primeira época, que abarcaria o período que vai de 1592 (quando começou a escrever) até 1603 (morte da rainha Isabel), e que inclui obras como: Love´s labour´s lost, As you like it, The Merchant of Venice, entre outras. Caracteriza-se pode uma confiança fervorosa no homem, cujas contradições existenciais são sempre resolvidas pelo equilíbrio e pela virtude.
 
Numa segunda época, de 1603 a 1606, Shakespeare se confronta com o problema do mal na natureza humana e, apesar de colocar este problema com grande clarividência, não chega a resolvê-lo, pois não o coloca da maneira católica. Mons. Williamson assinala, em um interessante artigo publicado em “Sel de la terre” que Shakespeare era católico, mas vivia em uma Inglaterra que perseguia violentamente os católicos, e não se atrevia declarar-se como tal e, por isso, sua obra se ressente desta atitude.
 
Numa terceira época, desde 1606 até sua morte, Shakespeare encontrará um princípio de solução para o problema. Em obras como King Lear ou The Tempest, não é pelo assassinato do mau ou pelo suicídio desesperado que se resolverá o problema, mas pela entrega de si mesmo em espírito de sacrifício e pela superação das paixões baixas que nos escravizam. Shakespeare, com efeito, como assinala Mons. Williamson, reencontra a paz, morrendo piedosamente depois de receber os últimos sacramentos das mãos de um monge beneditino.
 
Estas etapas na obra literária de Shakespeare certamente refletem seu processo de conversão interior, processo que se repete muitas vezes em nosso próprio itinerário espiritual. A primeira etapa corresponderia ao homem que põe a confiança em suas próprias forças, pensando que pode tudo por si só. Mas que, em seguida, confronta-se com o pecado em sua natureza mesma, dá-se conta, por experiência, de sua debilidade, de sua incapacidade, para finalmente encontrar a solução em uma maior entrega à ação da graça, movido por humildade e confiança.
 
Macbeth é, talvez, a obra mais característica da segunda época e apresenta, de maneira muito viva, a degradação da natureza humana, o homem frente ao mal, o lado escuro da alma humana, as conseqüências últimas da entrega total ao pecado. Fixemo-nos na fina descrição psicológica da tentação ao largo de toda a obra.
 
A peça começa já numa atmosfera tenebrosa, e umas bruxas planejam semear a tentação no coração de Macbeth, nobre que volta vitorioso e cheio de honra da batalha. As primeiras palavras das bruxas já anunciam essa contradição e dissolução extrema a que levará o pecado: “Fair is foul, and foul is fair”, “bom é mau e mau é bom”. As bruxas, ao se encontrarem com Macbeth, predizem que, sendo já duque de Glamis, será também de Cawdor e, enfim, rei. O primeiro (ser duque de Cawdor) cumpre-se em seguida, e aí reside a primeira tática do tentador, como observa Banquo, “os instrumentos das trevas nos dizem verdades, nos ganham com insignificâncias, para nos trair depois mais profundamente”.
 
A idéia de ser rei fica como uma tentação latente no coração de Macbeth, para a qual teria de matar o rei atual, Duncan. Seus solilóquios revelam uma intensa luta interior: os avisos da consciência contra os sentimentos de ambição que o inflamam. Macbeth chega a rechaçar a idéia quando diz à esposa: “Não insistiremos mais neste assunto (de matar o rei)”, mas a vontade não está suficientemente determinada e cede às instâncias de Lady Macbeth, que faz o papel do tentador. Segue, então, o ato trágico: o assassinato do rei, depois do que, como se estivesse descendo por uma espiral, seguem-se uma série de crimes para encobrir o inicial.
 
A entrega para o mal segue in crescendo, passando por tentativas de sufocar a consciência, até o ponto de legitimar o pecado: “Pelos piores meios, os piores, para meu próprio bem, todas as outras coisas devem ceder lugar”, diz Macbeth.
 
Isso leva ao patético solilóquio da última cena, em que Macbeth expressa a visão da vida de um homem totalmente entregue ao mal, um homem que chegou ao fundo do poço de degradação da natureza humana: “Apaga vela! A vida é só uma sombra: um mau ator que grita e se debate pelo palco, depois é esquecido; é uma história que conta o idiota, toda som e fúria, sem querer dizer nada”.
 
O clima de desolação é extremo: Lady Macbeth se suicida sem que ninguém se importe ou se ocupe dela; a sociedade está em caos pela insegurança gerada pelo reinado do tirano.
 
Tudo isso contrasta fortemente com a visão “hollywoodiana” da escória cinematográfica que predomina em nossos dias, que apresenta uma visão totalmente ilusória e ignara da psicologia humana, em que os piores crimes e baixezas são cometidos, aparentemente sem conseqüências significativas, terminando tudo habitualmente num irreal “happy end”.
 
É preciso dar-se conta do quanto nossa cultura moderna está impregnada de valores antinaturais. Vivemos o culto do feio. E o homem, em sua formação integral, necessita de uma cultura sã, que o permita contemplar a beleza em todos seus aspectos, “para que o homem se volte a Deus pelos mesmos vestígios que o afastaram d´Ele; de modo tal que, se por amar a beleza da criatura privou-se da forma do Criador, sirva-se da mesma beleza terrena para elevar-se novamente à beleza divina.”.
 
(Iesus Christus, revista do Distrito da América do Sul da FSSX – Ano XV – no. 96)

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